Luanda -  Frente a frente com o seu antigo chefe e com alguns dos seus colegas, Augusto Viana conta tudo o que sabe os contornos do caso Quim Ribeiro, naquele que deverá ser o depoimento mais longo de um julgamento que leva já mais de oito meses. Se no primeiro dia de audiências Augusto Viana pediu protecção, já na quarta-feira, 04, queixou-se de ofensas morais que estava a receber dos réus, mesmo em pleno julgamento. “Aqui onde estou sentado”, disse a testemunha dirigindo-se ao juiz Cristo Alberto, “toda a vez que falo tenho sofrido fortes agressões verbais dos réus que me chamam todo o tipo de nomes” feios.

Fonte: A Capital

Mas disse, também, ao juiz que como homem não se sentia mais em condição de aguentar tantos impropérios.   A reacção do juiz foi pronta. Com a firmeza que lhe tem sido característica, Cristo Alberto pediu às pessoas que assim procediam para terem um comportamento mais digno sob pena do tribunal tomar as medidas previstas na lei para tais situações.

Só então se deu início à sessão. Dos alegados 3 milhões e 700 mil dólares retirados da família de Fernando Gomes Monteiro, às mãos de Viana chegaram, apenas, 1 milhão e 800 mil dólares. Este dinheiro foi, então, encaminhado para a direcção provincial de investigação criminal por volta das 09 horas do dia 17 de Agosto de 2009. Os portadores eram, nomeadamente, Sebastião Palma e Jubal, ambos réus presos, que se fizeram transportar numa viatura caracterizada da Polícia Nacional.

Viana disse que, por precaução, ligou posteriormente para António João, então chefe da Direcção Provincial de Investigação Criminal (DPIC), hoje réu preso, que confirmou, por sua vez, a recepção dos valores na totalidade. “O António João, com quem tive sempre uma relação de cordialidade, me disse para ficar descansado, que o dinheiro chegou e completo”. Nesta altura, referiu, “fiquei mais calmo”.

No dia seguinte, em parada, o então comandante da divisão de Viana informou, aos demais membros do seu efectivo, sobre a acção de um grupo de colegas que culminou na apreensão de uma avultada soma em dinheiro. Mas não mencionou os valores. Agora em tribunal, ele esclareceu que, por ordem do comissário Joaquim Vieira Ribeiro, estava proibido de falar sobre a moeda e o valor apreendido. “Por este facto, não mencionei se eram dólares ou kwanzas”.

Num certo sábado, Viana recebeu no seu gabinete o superintendente chefe Fernando Jesus a dar conta de que efectivos da Polícia Nacional entraram na residência do seu cunhado Fernando Gomes Monteiro e levaram de lá 3 milhões e 700 mil dólares. O mesmo oficial acusava, ainda, Lutero José, hoje réu preso, de exigir o pagamento de 100 mil como contrapartida da devolução, para a família, de documentação importantes.

O superintendente chefe Jesus não foi, apenas, fazer uma denúncia. Segundo Augusto Viana, ele fez-lhe uma proposta que, na altura, achou imoral.“Disse-me que se eu recuperasse o dinheiro poderíamos devolver uma parte à família e a outra dividir entre os dois”. Perante tal proposta, disse ter reagido de forma severa contra o colega. “Avisei-o para nunca mais voltar a fazer-me tal proposta porque na Polícia não era local de comércio”.

Viana disse não ter ficado por aí. Chamou o seu comandante adjunto e pô-lo ao corrente da situação, assim como a Lutero para que, este, explicasse o que se estava a passar. “O Lutero apenas me disse para Jesus provar o que estava a dizer. No entanto, Jesus saiu e foi buscar os moços que disseram que o Lutero cobrava 100 mil dólares. Todavia eles, curiosamente, não reconheceram o Lutero”.

Jesus entrou em pânico e disse que sabia onde estava o dono da residência, isto é, algures no Zango. Lá foi com o Lutero e mais outros colegas à busca do visado. Horas depois, Viana conta que recebeu um telefonema de Jesus a dizer que o Lutero o havia prendido na sua unidade. Não fez mais que ligar para o seu comandante adjunto para entender o que se passava de concreto. “O meu adjunto estava na unidade e disse-me que ele estava bem e na sala do seu irmão, mas ainda assim fui para lá e encontrei os três jovens, que diziam-se familiares das vítimas presos e o Jesus disse-me que foi fotografado e humilhado pelo Lutero”.

Por este facto, Jesus fez uma exposição para o Comandante Provincial de Luanda, reclamando dos maus tratos que sofrera. Na quarta-feira, 24 de Agosto, Quim Ribeiro chamou Viana ao seu gabinete. Conhecendo como “pensava conhecer” Quim Ribeiro, ele disse que previa a sua demissão, pois estava perante um acto de indisciplina grave e esperava encontrar no gabinete do comandante os dois adjuntos dele e mais o director da inspecção. Quando lá chegou, o quadro era diferente. Encontrou António João, Paulo Rodrigues, Caricoco  e Lutero.

Para o referido encontro, Viana levou o seu comandante adjunto, identificado por Silveira. Mas, ao que parece,  Quim Ribeiro não gostou muito disso. Ficou bastante revoltado com a presença do mesmo e, segundo Viana, ameaçou-lhe. “Doutor Viana, se você falou ao seu adjunto sobre o dinheiro, estás demitido”. A seguir mandou o adjunto retirar-se da sala.

Na reunião, Quim Ribeiro não admoestou a Lutero pela atitude negativa que teve contra um superior hierárquico. Apenas disse-lhe: “tu tens de ter mas calma nestas situações, pois não deves se alterar”, por outro lado, reiterou, “ninguém pode saber sobre apreensão desses valores”, contou Augusto Viana Mateus.

Por volta das 17 horas desta quinta-feira, 04,  a pedido do representante do ministério público a sessão teve que ser suspensa para continuar na segunda-feira, 8, ainda com audição de Augusto Viana, que deverá falar sobre a divisão do dinheiro e sobre como Joãozinho e Mizalaque foram executados.  

A grande mentira

“Fui enganado pelos meus subordinados”, disse Augusto Viana ao prestar declarações na passada terça-feira, 02, na sala de audiências do Supremo Tribunal Militar que julga o caso Quim Ribeiro. Aguardado com alta expectativa, dada a sua condição de testemunha fundamental, o antigo comandante da divisão policial ainda está a ser ouvido, e assim será por muito mais tempo dada a importância das revelações que se espera que faça para o esclarecimento, em definitivo, das circunstâncias ao redor do “assalto” à residência de Fernando Gomes Monteiro e do assassinato de Domingos Francisco João e do amigo daquele Domingos Mizalaque.

O engano a que se referiu Viana está relacionado com a informação a si prestada pelos seus subordinados que participaram da operação, a que Viana agora chama de “intervenção”, por não ter sido autorizada, de que resultou a apreensão de vários bens, incluindo de uma mala alegadamente com 3 milhões e 700 mil dólares, da residência da família de Fernando Gomes Monteiro, cuja esposa, Teresa Pintinho, e o filho, Gomes Pintinho, já foram ouvidos como declarantes por esse mesmo tribunal alem dele próprio.

Sobre os factos de que tem conhecimento, Augusto Viana, que já foi director do gabinete de Joaquim Vieira Ribeiro, a maior patente entre os 21 réus em julgamento, lembrou que soube da investida à residência do casal no dia 14 de Agosto do recuado ano de 2009 depois de receber uma chamada telefónica de José Couceiro, hoje réu em julgamento. Couceiro, segundo Viana, informou ao seu superior que elementos afectos aos serviços de sector tinham detido, na via pública, uma cidadã que se fazia transportar de elevadas somas em dinheiro.

Viana adiantou que Couceiro disse-lhe, na altura, que estava acompanhado do réu Sebastião Palma quando fez o telefonema a si destinado. Ambos, segundo Viana, caminhavam para a esquadra número 46, localizada no seu antigo município de jurisdição, onde tinha sido montando uma espécie de posto de comando avançado. Foi esta a informação, assim transmitida pelos seus subordinados, que Augusto Viana, segundo o próprio, tratou de encaminhar para o seu superior hierárquico, no caso para então comandante provincial da Polícia de Luanda, Joaquim Vieira Ribeiro, hoje réu preso.  “Liguei logo para o comandante provincial a dar-lhe a conhecer o caso”, explicou-se a testemunha, ante a indagação do representante do Ministério Público, Adão Adriano.

“Para o meu espanto, ele (Joaquim Vieira Ribeiro) nada disse”, acrescentou para dizer que, em face disso, telefonou para António João, réu preso, antes director provincial da investigação criminal, pedindo que ele mandasse, para a esquadra, o Paulo Rodrigues e o João Lango Caricoco, ambos réus presos. E assim foi feito.

Estas foram, na última terça-feira, 02, as declarações mais relevantes de Augusto Viana Mateus que, ao iniciar a sua audiência, fez um comovente apelo por protecção. Passa-se que, até ao momento, o endereço da testemunha era desconhecido. Porém, por imperativos legais ele teve de revelar a localização da sua nova residência em plena audiência. Em alto e bom som, ele insistiu: “preciso de protecção porque tenho família para sustentar” e lembrou aos presentes que, por estar desprotegido, desrespeita-se “uma orientação presidencial” no sentido de protegê-lo.

Um pedido igual, lembramos, tinha sido feito por Teresa Pintinho, em casa de quem foi, alegadamente, retirado os 3 milhões e  700 mil dólares. Até hoje, o seu pedido de protecção ainda está por atender.

Seja como for, lá a audiência começou. Sob questionamento do juiz, Viana disse que, entre os réus em julgamento, não tinha familiares, amigos ou inimigos. Pelo contrário. Antes da explosão do caso, “tinha uma relação privilegiada e de confiança com Joaquim Ribeiro, Paulo Rodrigues, Sebastião Palma, João Caricoco e José Couceiro”.

Mas tal, segundo afirmou em tribunal, não o impedia de, ali, dizer apenas a verdade. Afinal, como militar que é, tem de se reger pelas normas castrenses. E a lei militar “diz que um militar não pode encobrir um criminoso”, referiu, no mesmo momento em que cessaram os burburinhos que, antes, dominavam o local.

Foi, pois, um Viana confiante que passou a responder às questões do procurador Adão Adriano que, até ao momento do fecho da presente edição, ainda se cingiam apenas à operação realizada numa residência sem número do quilometro nove, em Viana. Aliás, ele tratou de corrigir que, na verdade, não houve uma operação propriamente dita. Foi mais uma intervenção. E explicou: “uma operação tem como base um mandado e nesta não aconteceu porque eu, como comandante de Viana, não recebi nenhum documento sobre a mesma”.

Este facto, desde já, fez Augusto Viana Mateus pensar que na reunião operativa do Comando Provincial de Luanda, então prevista para aquele dia, seria “enxovalhado” por Joaquim Vieira Ribeiro. O comandante, segundo referiu, tinha fama de ser severo em situações do género, de incumprimento das normas estabelecidas. Porém, naquele recuado dia, “ele não disse nada” sobre o caso.

Viana decidiu, então, deslocar-se à esquadra 46. Mas não o fez sozinho. Antes, fez-se acompanhar do comandante daquela mesma unidade policial. Quando lá chegaram, ambos encontraram  três dos 21 réus: João Caricoco, Paulo Rodrigues e Sebastião Palma. Eles estavam a contar o dinheiro que se encontrava dentro de uma pasta. “Era muito dinheiro”, referiu Viana. Mas, como ele disse, para não interferir no trabalho do efectivo da direcção provincial de investigação criminal retirou-se do local, não sem antes ouvir do agora réu Paulo Rodrigues a garantia de que o dinheiro seria encaminhado para o comando provincial tão logo acabasse de ser contabilizado.

Horas mais tarde porém,  Couceiro e Palma entravam pelo gabinete do comandante Viana com o dinheiro dentro de uma pasta. Ele ainda perguntou sobre o paradeiro dos outros, nomeadamente, de Caricoco e Paulo Rodrigues. Sobre eles, os presentes responderam que já tinham regressado às respectivas residências. Ele revelou que tentou ainda convencê-los a voltar para que testemunhassem a entrega dos valores. Em vão. Antes recebeu uma proposta de Paulo Rodrigues para que fosse o próprio Viana a entregar o dinheiro ao comando provincial. Mas não foi possível. “Apenas comuniquei ao comandante provincial e ao director da dpic, com os quais combinei levar o dinheiro apenas na segunda-feira ao comando provincial”.

Com o dinheiro já em sua posse, havia que tratar de guardá-lo. Para começar, Couceiro e Palma foram encarregues de comprar fita cola para, depois, João Caricoco envolver a pasta com a mesma. Os valores  foram, então, guardados na casa de banho anexa ao antigo gabinete de Augusto Viana. O nariz de Augusto Viana voltou a torcer, quando solicitou, seguindo a norma, o auto de apreensão. Para o seu espanto, porém, o seu subordinado recusou fazê-lo, alegando que tinha sido assim orientado pelo comandante provincial. Deste, segundo Viana, Sebastião Palma recebeu, alegadamente, de Joaquim Vieira Ribeiro, a orientação para a elaboração de um único relatório, que ficaria sob a sua guarda, mas que não mencionaria a operação policial, tão pouco os montantes achados na residência do casal Pintinho.

Viana recordou, ainda, que no mesmo dia ainda alertou os três funcionários civis do seu gabinete sobre a existência do dinheiro. Confirmou, como suas, as declarações segundo as quais o dinheiro ali guardado era tanto que nem a geração dele, nem a dos seus subordinados conseguiriam pagá-los, mesmo trabalhando juntos.