Luanda - O senhor João Soares é um político português que se diz amigo de Angola e dos angolanos. Os seus discursos indicam exactamente o contrário, mas pode ser que seja eu que estou a ver e a ouvir mal. Afinal os anos já me pesam. Mas de uma coisa eu tenho a certeza. Ele está equivocado quando afirma que Savimbi foi o único líder dos movimentos de libertação que esteve sempre no interior de Angola.
Fonte: Jornal de Angola
O equívoco tem a roupagem de bravata e até de jactância ofensiva para a memória de Holden Roberto e Agostinho Neto. Nada que não seja desculpável, já que a amizade de João Soares com Jonas Savimbi é tardia, descuidada e até distraída. Mas em homenagem à sua propalada amizade para com Angola e os angolanos, vou revelar alguns factos que negam a afirmação do político português.
Jonas Savimbi, até ser líder da UNITA, fartou-se de passear, até porque foi ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo Revolucionário de Angola no Exílio (GRAE) liderado pela UPA de Holden Roberto. Um dia o estremecido amigo de João Soares abandonou o movimento e continuou a passear. Até teve tempo para arranjar um diploma na Suiça. Daí foi para a China aprender a manejar armas. Depois fundou a UNITA.
O amigo de João Soares andou pelo Leste de Angola até começar a cartear-se com o general Bettencourt Rodrigues, então comandante da Zona Militar Leste. As cartas estão aí, para quem quiser consultá-las. Rapidamente subiu de escalão e passou a tratar tu cá tu lá o general Luz Cunha, comandante em chefe das Forças Armadas Portuguesas em Angola. O conteúdo das cartas trocadas com os dois generais do colonial-fascismo deixa antever uma sólida amizade de Savimbi com os matadores do Povo Angolano e total sintonia com a ideologia dominante.
Quando Agostinho Neto e a direcção política do MPLA decidiram levar a guerrilha ao Planalto Central para a partir dessas bases abrir uma frente para o mar, Savimbi foi uma peça importante nas manobras da tropa portuguesa para impedir esse objectivo. Em 1969, quando a Zona Militar Leste estava a ferro e fogo, Savimbi deu ordens aos comandantes da UNITA Pedro e Satchilombo, seus companheiros de armas durante o treino na China, para irem reforçar os Flechas da Pide em Lumbala Ngimbo (Gago Coutinho). Ambos se destacaram no combate às forças de libertação. João Soares é capaz de ter razão, Savimbi esteve sempre no interior do país. Mas está muito enganado num ponto: nessa época, ele não era líder de um movimento de libertação. Era apenas o chefe de forças especiais ao serviço do colonialismo português. Se quiser, pode falar com o coronel Passos Ramos e com o general Pezarath Correia. Eles explicam-lhe em que circunstância Savimbi assinou o “cessar-fogo” com Portugal, logo em Junho de 1974.
E pode, se quiser, ouvir uma declaração de Savimbi, em Maio de 1974, sobre a situação em Angola. Ele defendeu abertamente uma “federação” com Portugal e renegou a independência. Por isso foi logo promovido a “muata da paz” e a UNITA passou a ser o “movimento dos brancos”. A gravação deve estar na Rádio Nacional de Angola. Mas se não estiver, há milhares de ouvintes que testemunham este facto.
Mais uma verdade. Savimbi só foi líder de um movimento de libertação angolano quando o Portugal de Abril e o MPLA o ajudaram a conquistar esse estatuto. Passo aos factos. Spínola, Nixon e Mobutu, em 1974, estiveram reunidos na Ilha do Sal, Cabo Verde, e aí decidiram que o poder em Angola tinha de ser entregue à FNLA, de Holden Roberto. Mas veio o 28 de Setembro em Portugal e tudo mudou. O MFA tomou as rédeas da descolonização de Angola. Para contrariar o que ficou decidido no Sal, o MFA fez tudo para que o MPLA e a UNITA assinassem um acordo de amizade e cooperação. Isso foi feito no Luena, em Outubro de 1974. E logo a seguir, MFA e a diplomacia do MPLA fizeram tudo junto da Organização de Unidade Africana (OUA) para que a UNITA fosse reconhecida como um movimento de libertação. O que veio a acontecer em Novembro. Só assim foi possível fazer a cimeira de Mombaça, onde os três movimentos de libertação – MPLA, FNLA e UNITA – adoptaram uma posição conjunta para apresentar na cimeira de Alvor.
Isto quer dizer apenas o seguinte: Savimbi, até Outubro de 1974 não era líder de nada. E a UNITA não era reconhecida pela OUA como movimento de libertação.
Sobre o que veio depois, penso que o político português João Soares está bem informado. Até muito melhor do que eu. Mas quero lembrar-lhe o seguinte. Um militar importante da UNITA publicou um livro onde afirma que a sua organização se aliou ao apartheid, porque estava no “fundo do poço” e só os racistas de Pretória lhe deram a mão.
O senhor seu pai, Mário Soares, sofreu as agruras do exílio, por se opor ao fascismo e ao colonialismo. Viveu em Paris com imensas dificuldades. O Professor João da Silva Terra conseguiu que ele desse aulas no Departamento de Português na Universidade de Vincennes. Mas comeu o pão que o diabo amassou, ao contrário do que afirmam os retornados e a extrema-direita portuguesa.
A senhora sua mãe, Maria Barroso, passou os mesmos trabalhos e as mesmas dificuldades para cuidar de si e da senhora sua irmã.
Imagine, senhor João Soares, que Salazar chegava ao pé de si e o convidava para trabalhar com ele, como seu braço direito. E o senhor aceitava! Quando Mário Soares, amargurado, lhe perguntasse porque cometeu um acto tão repugnante, vossa excelência respondia: - eu estava no fundo do poço e Salazar foi o único que me deu a mão!
Todos os factos aqui revelados são indesmentíveis. Seria desnecessário voltar a este assunto tão desprezível, se João Soares não insistisse, nesta sua viagem a um país pacificado e reconciliado, em glorificar quem tem tão triste passado. Por isso, espero que a partir de agora, os tome em linha de conta quando falar de Angola, dos angolanos e das suas amizades. Eu acredito que o senhor é uma pessoa de boa-fé.