Talvez se imponha a apresentar alguns dados biográficos deste grande teólogo, filósofo, docente, sacerdote, jurista e jornalista Congolês, para que os leitores compreendam o nosso interesse por ele.
 
O homem Vincent Mulago. É de etnia shi. Para evidenciar a erudição e a grande desenvoltura pensante de Mulago, o seu povo apelidou-o por mushi, que significa o instruído, o culto…
Mulago nasceu em Bukavu, República de Democrática do Congo, em 1924.De 1940 a 1949, passou por vários Centros de Estudo do Congo e Ruanda, fez os seus estudos médio e superior de Filosofia. Depois, foi a Roma, onde estudou Teologia na Universidade Urbaniana da propaganda, no âmbito do seu itinerário para o sacerdócio. 1952 foi ordenado sacerdote na cidade eterna. Em 1955, Mulago obteve o seu grau de doutor em Teologia com a seguinte tese: «A união vital bantu entre os Bashi, os Banyarwanda e os Barundi, face à unidade vital eclesial».

Obteve, também, uma licenciatura em Direito Canónico em 1956, na Universidade Gregoriana, e o diploma de jornalismo na Universidade de Ciências Sociais de Roma. Fez também um curso especial sobre o pensamento Aquinate. Durante este último curso, foi ladeado de grandes especialistas em Tomás – Cornélio Fabro, Monsenhor Pietro Parent e o famoso canonista jesuíta, Felice Capelo.

Tanto em África como na Europa Mulago teve o contacto com grandes gurus do pensamento filosófico, sociológico, teológico ya xicatela, Alexis Kagame (Ruandês) e Monsenhor Sastre do Benin.Ainda em 1956, Mulago regressa ao Congo, sua paróquia genealógica, onde é nomeado vigário paroquial de S. Francisco Xavier de Katatu. Na altura era o único padre indígena e instruído naquela geografia. Ali mesmo foi encarregado também para a pastoral dos círculos intelectuais e da escola civil de Katatu.

Mulago manifestou-se, também, muito interessado pelas questões políticas do seu povo, é assim que, em 1956, proferiu uma conferência na missão de Katatu diante de numerosos padres de cor, durante a qual fez duras críticas ao sistema colonial. A sua conferência foi considerada revolucionária e teve de enfrentar a cólera e a visita do então governador colonial de Kinshasa.A conferência de Mulago teve como titulo: «O futuro do Congo e nossa consciência cristã».
 
Importa frisar que, no mesmo ano, o nosso pensador participou na elaboração da obra «Os Padres Negros Interrogam-se», que hoje é considerada a carta fundadora da Teologia africana.
 
Em 1957, Mulago foi nomeado para o Seminário Menor de Mugeri.1959, fundou o Centro de pastoral litúrgica da arquidiocese de Bukavu. Pároco da Catedral em 1961, depois vigário para a cidade de Bukavu. No mesmo ano é chamado para leccionar na Universidade de Lovanium de Kinshasa. A partir de 1962 vive definitivamente na Universidade como professor associado e depois como catedrático, já em 1965.
 
No ano de 1966, Mulago funda o célebre Centro de Religiões Africanas de Kinshasa, de que foi o primeiro director; funda igualmente a revista «Cadernos das Religiões Africanas» em 1967 e mais tarde a Biblioteca do centro de estudos das religiões africanas (1973).
 
Jubilado em 1989, Mulago recolhe-se em Bukavu, onde lhe é confiada a Direcção do Centro Diocesano de Pastoral, Catequese e Liturgia, bem como a Universidade Católica de Bukavu, de que foi reitor até 1997. (Cf. Bujo, B, Vincent Mulago – Um apaixonado pela teologia africana, in Teologia africana…, Paulina, Luanda, 2008, pp.7-9).
 
Seu pensamento ético Bantu-africano…
    
Não existe abundante produção científica neste campo, particularmente na África Lusófona, muito pobre em produção das mais variadas temáticas. Mas graças a este Dom de Deus, Mulago, temos alguns pedaços escassos de pensamentos nesta linha. Eis a visão da nossa dádiva:
Para Mulago, a ética bantu não pode ser pensada nem vivida sem a ideia de comunhão nem participação com outrem. (La religion traditionnelle, cit. por Ibidem, p.26). O todo está centrado sobre a eclosão da vida e esta diz respeito ao próprio homem. Na esteira de Mujynya, Mulago conclui que a ética bantu, sem excluir Deus como fonte da vida é fundamentalmente antropocêntrica e vital. (Ibidem). Nesta moral, todo o bem remonta directamente a Deus, mas todo o mal tem por origem o próprio homem ou forças personificadas ao serviço do mal. (Ibidem).
Quando Mulago fala da moral cristã, compara-a à ética bantu, identificando os pontos de convergência, em que radicam as sementes do verbo.
Na ética bantu, ele releva os pontos positivos compatíveis com a revelação, e os aspectos negativos, por se desviarem dela.

Visionando os aspectos positivos, Mulago não vê por que não se há-de poder expurgar a magia, a feitiçaria, a adivinhação, ou as práticas para-religiosas de tudo quanto é erróneo e repugnante, para pôr os seus princípios fundamentais, bons, ao serviço da moral cristã. (Ibidem, p.27). Do mesmo modo, o culto dos antepassados, tão fundamental para a comunidade bantu, não contradiz o culto aos santos. Mulago vê, na veneração dos antepassados, uma das bases mais sólidas da ética bantu que pode servir para fazer passar um grande número de pontos da moral cristã. (Ibidem).

Mulago não para por ali, cita outros aspectos que acha positivos na ética bantu e podemos apresentá-los como referenciais, modelos para o mundo contemporâneo -1) o aspecto vital, não legalista nem jurídico da ética bantu, perfeitamente de acordo com Jo 10,10 (…); 2) a dimensão comunitária da ética bantu, na qual cada um está em relação com o outro, com o homem e com todos os elementos cósmicos circundantes vivos e não vivos. Tudo isso está perfeitamente de acordo com a moral cristã, fundada na comunhão e na co-responsabilidade; 3) o respeito pelos pais e pela vida humana, bem como pelos seus meios de subsistência, que não é senão uma realização e prolongamento do Decálogo. (Cf. Ibidem). Outro aspecto positivíssimo da nossa ética é o sentido profundíssimo que o homem negro tem da solidariedade, embora o nosso multisapiente não tenha referido, vale a pena fazer eco, acredito que ele sabia, e sabia bem!
 
Tal como ficou referenciado nas alinhas acima, nem tudo na nossa ética é boa, isto, Mulago também notou e fez questão de citar os aspectos que devem ser purificados no coração e na razão africana: 1) se bem que o carácter antropocêntrico da ética bantu não seja o «eo ipso» mau, será necessário pôr o homem no seu lugar, para que Deus permaneça Deus (Ibidem); 2) à luz da fé cristã, haverá de formar melhor o muntu, que na palavra dada não vê mais do que o útil e o eficaz, sem se preocupar com a mentira; 3) colocar o acento tónico no discurso sobre a vida e o seu prolongamento, pode favorecer a poligamia e, em certos casos, as relações estra-matrimoniais; 4) por fim, Mulago pensa que o ponto mais fraco da ética tradicional bantu é o problema da interioridade: no espírito de muitos bantu tradicionais não existe o pecado por desejo, enquanto este não se realize. Aqui a moral cristã é desafiada a formar as consciências para uma compreensão mais justa da interioridade e da intenção do agir moral. (Ibidem).
                                         
Reflexão Crítica. Em relação ao pensamento teológico-africano produzido por Mulago, tem sido alvo de críticas de destruição em massa, mas é normal, razoável e perfeitamente compreensível, porque todo o precursor se lança sem bases de referencia ao ingente labor cientifico, a única referencia é ele mesmo, por isso determinados erros são admissíveis... Por outro lado, não podemos deixar de reconhecer em Mulago aquele que hoje serve de fonte inspiradora de muitos investigadores africanos e aqueles que são apaixonados pelas questões africanas.
Em relação a tese segundo a qual os africanos tradicionais no seu agir são desprovidos da« intencionalidade moral no agir», hoje, esta tese já está destronada porque as análises dos contos, provérbios, fabulas, lendas…, mostram que, de facto, o africano tem um sentido intencional e livre no agir muito apurado, por exemplo, na filosofia tradicional Kimbundu, tem um provérbio que explicita bem isto – mutu muxima (a pessoa é coração), o que demonstra bem a importância que o coração joga no agir moral africano.

Finalmente, não se deve estudar teologia africana ou a crítica política à colonização sem olhar para a vasta produção do Monstro intelectual VINCENT MULAGO.. Daí a caracterização que Bujo faz a Mulago: «(ele) é para a geração que se lhe seguiu um gigante que apresenta os seus ombros para suportar os anões, a fim de que estes vejam mais ao longe do que ele próprio».
 
Fonte: Folha8/Club-k.net