A vitória do MPLA nas eleições de 5 de Setembro não significa um cheque em branco. O futuro Governo, além de cumprir as suas promessas, terá de harmonizar o desenvolvimento, os direitos humanos e a democracia. O day after é dentro de quatro anos.

Defendo desde há muito que o Governo do MPLA, que agora fecha um ciclo, não foi durante este último consulado (1992-2008) tão mau como muitos dos seus críticos internos e externos defenderam, nem tão bom como eu e muitos como eu (angolanos ou não) desejariam.

Apesar de me assumir como um crítico do regime, não tenho nenhum preconceito em assumir tal opinião, porque a isso me obriga a minha honestidade política e intelectual. Entendo que só a má fé de uns e o preconceito de outros impediram o reconhecimento de feitos importantes num contexto tão difícil.

A enumeração de tais feitos é aqui desnecessária. Citarei apenas três dos seus efeitos. O primeiro foi a construção de um clima de reconciliação, paz e estabilidade política que dá confiança aos cidadãos em relação ao futuro e cria condições para o investimento no desenvolvimento.

O segundo é o prestígio internacional de que Angola desfruta, não apenas no campo político e diplomático, explicado pelo bom desempenho económico proporcionado pela actual conjuntura, mas também no desportivo e cultural, onde o papel do cidadão comum é mais determinante.

E, finalmente, o elevado nível de auto-estima de que até os críticos internos se orgulham, apesar de, por vezes, desaguar na arrogância, tão necessária para o desenvolvimento do capital social imprescindível para os desafios do futuro da Nação, seja qual for a sua perspectiva.

Lições da campanha

Porém, isto não constitui um cheque em branco para o novo Governo e o MPLA ainda tem muito que caminhar. A forma como decorreu a campanha eleitoral forneceu muita matéria para reflexão sobre os caminhos do desenvolvimento e da construção da democracia nos nossos países.

Numa época em que os mecanismos e instrumentos da chamada democracia ocidental são postos em causa por não estarem a conseguir resolver duas das doenças que a atingiram, a representação e a participação, o que faz com que os parlamentos percam cada vez mais protagonismo em favor dos poderes económicos e dos media por eles controlados continuamos a agarrar-nos aos aspectos formais da democracia.

Como entre nós os media, com o novo argumento de que é preciso escapar ao domínio da comunicação social pelos grandes grupos económicos – o que seria um bom argumento se não houvesse por trás objectivos perversos –, são controlados pelo Estado, o que quer dizer pelo Governo, o exercício da democracia fica condicionado e restrito aos actores escolhidos pelo poder político.

Independentemente da enorme fragilidade revelada pelos partidos da oposição no domínio da comunicação, foi chocante o modo como a informação e a propaganda durante a campanha, como já acontecia antes, foram manipuladas a favor de quem tinha o poder.
O contraditório foi evitado de forma inaceitável. Em vez disso, apresentavam-se comentários a elogiar um e a ridicularizar os outros. Este não é, claramente, um meio de ajudar a construção de uma cultura democrática. E não estou a dizer nada que um deputado como João Melo já não tenha dito. O MPLA não sabe lidar com a comunicação social em ambiente democrático e o futuro Governo angolano vai ter de aprender a fazê-lo.

Das promessas à prática

Uma segunda reflexão que se me oferece tem a ver com as promessas feitas durante a campanha eleitoral aos cidadãos e sua relação com a justiça social. Estamos habituados a ouvir promessas que todos, incluindo os que as fazem, sabemos que os políticos não cumprem.

Num país de tantas carências, onde a pobreza não é apenas explicada pela falta de acesso a serviços, mas também à informação, e onde ainda não há rotina na realização de eleições regulares, a tentação para as promessas demagógicas é enorme.

Desde que conheço o programa de Governo do MPLA, tenho feito um esforço para chamar as atenções do poder e dos cidadãos para o absurdo de algumas dessas promessas. O país não tem condições humanas e institucionais para alcançar as metas prometidas.

Tem-se gasto muito dinheiro com o «hardware», isto é com infra-estruturas, e pouco – pelo menos não o correspondente em termos proporcionais – com o «software», ou seja, com os recursos humanos e institucionais, e isso pode provocar desequilíbrios graves e obrigar ao recurso inusitado a pessoal qualificado expatriado, algo que o país não tem sabido gerir devidamente e provoca tensões.

Não basta construir escolas, institutos médios e universidades, é preciso que eles estejam dotados de professores capazes para darem às crianças e aos jovens uma visão sólida e adequada do país e do seu futuro.

Mas o maior desafio do Governo do MPLA será a forma de lidar com a necessidade urgente de promover mais justiça social, de encontrar caminhos para uma melhor distribuição da renda nacional, agora que as vacas estão gordas, de modo que a paz social seja uma realidade, num quadro em que o poder está assente em clientelismos que propiciam a corrupção.

Agora, o day after não será daqui a 33 anos, mas a apenas quatro, e, esperamos todos, não haverá guerra e bodes expiatórios para justificar vazios e desvios.

Desenvolvimento e democracia

Isto conduz-me a uma terceira reflexão que se relaciona com o modelo de desenvolvimento que estamos a seguir. Preocupa-me a ideia do primado do crescimento da economia sobre a democracia e os direitos humanos que subjaz às intervenções dos dirigentes do MPLA ao mais alto nível.

Com nova Assembleia Nacional e novo Governo, a tentação de dever cumprido com o aspecto formal e do apelo à «ordem» para que o crescimento não seja perturbado será enorme. Não importará que o crescimento seja feito através de «ilhas» como está acontecer com os condomínios, os shoppings, as aldeias novas, desde que o PIB esteja a crescer, ainda que à custa de muita desigualdade.

Não posso, pois, deixar de recordar uma frase emblemática dita por Julius Nyerere nos anos 70, em que substituo a palavra liberdade, por ele usada, por democracia: «desenvolvimento e democracia são como a galinha e o ovo; do mesmo modo que sem ovos não há galinhas, e sem galinhas não há ovos, também sem democracia não há desenvolvimento, e sem desenvolvimento não há democracia».

Isto só será possível se os direitos humanos em sentido amplo, o que significa um equilíbrio entre os direitos económicos e sociais (mais justa distribuição da renda e acesso a serviços, entre outros), por um lado, e os cívicos e políticos (cidadania e liberdade de expressão e de associação sem qualquer condicionalidade, por exemplo), por outro, forem encarados como questão nacional por todos, o que permitirá o crescimento dos partidos políticos e das organizações da sociedade civil, e a perda de privilégios por parte do MPLA.

Só assim a democracia poderá ser mais participativa e ganhar substância para se evitar aquilo que tem acontecido em muitas democracias tradicionais: democracia formal na política a dar cobertura a situações de despotismo e injustiça no social. A realização de eleições para o poder local poderia constituir um momento importante para se iniciar uma verdadeira mudança no modo de fazer política em Angola.

*Fernando Pacheco, angolano, assina coluna na edição de Setembro da Revista África 21
Fonte: africa21digital.com