Luanda - A partir de fontes recolhidas e seleccionadas de livros de Lúcio Lara, António Faria, Eduardo dos Santos e Edmundo Rocha, bem como de um texto recente, datado de 18 de Junho de 2011, assinado por este último investigador e subscrito por João Vieira Lopes, tornou-se possível elaborar o presente trabalho de memórias.
Fonte: Jornal de Angola
O seu objectivo é assinalar a passagem do 50º aniversário da fuga de cem estudantes universitários africanos de Portugal, em 2 de Junho de 1961, pouco tempo depois do início da luta armada em Angola a 4 de Fevereiro.
Com o final da II Grande Guerra (1945) ocorrem no mundo movimentações de teor político-ideológico.Em África nascem movimentos de forte pendor de carácter autonómico e ideológico.
Entre 1956 e 1960, vários países africanos chegava à independência: Marrocos e a Tunísia (1956), Ghana (1957), Guiné Conakry (1958), Nigéria, Somália, Gabão, Senegal, Mali, Costa do Marfim, Benin, Níger, Alto Volta (actual Burkina Faso), Chade, Madagáscar, Mauritânia, Togo, Camarões, República Centro Africana e o chamado Congo Belga (1960). Mas, 1960 é também o ano em que o Governo sul-africano ilegaliza o Congresso Nacional Africano (ANC) e o Congresso Pan-Africano (PAC).
Estudantes africanos
Criada por iniciativa do regime do Estado Novo, a Casa dos Estudantes do Império surge a partir da Casa dos Estudantes de Angola, fundada em 1943, em Lisboa, na Rua da Vitória, que reunia estudantes angolanos, maioritariamente filhos de grandes colonos e de destacados altos funcionários daquela colónia, que, em Portugal, davam continuidade aos estudos.
Devido à pressão governamental, aos apoios regulares dos governos-gerais das colónias e das empresas privadas, a Casa dos Estudantes de Angola transformou-se, em 1944, em Casa dos Estudantes do Império (CEI) e foi transferida para o Arco do Cego, também em Lisboa.
Entre 1948 e 1953, a delegação da CEI, em Coimbra, tinha um grupo de estudantes africanos muito dinâmicos que, ligados a organizações políticas portuguesas – como o Movimento de Unidade Democrática (MUD Juvenil) e o Ateneu de Coimbra – vieram a assumir uma postura menos conformista em relação aos dirigentes da CEI, em Lisboa. de 1958-1959 começou a chegar a Portugal um maior número de jovens negros.
Este fenómeno traduziu prováveis mudanças económicas e culturais no seio das pequenas burguesias africanas nas colónias e a percepção pelas elites nacionais de que a obtenção de um curso superior em Portugal correspondia a uma real ascensão social e económica, mesmo no quadro colonial.
Do grupo da CEI de Coimbra, destacavam-se Agostinho Neto, Lúcio Lara, Carlos Veiga Pereira, Orlando de Albuquerque, Jorge Nunes, Manuel Monteiro Duarte, João Vieira Lopes.
Também ligados à CEI, encontravam-se outros estudantes africanos, como Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade, Francisco Tenreiro e Marcelino dos Santos que, juntamente com o grupo de Coimbra, se constituíam na geração dos “mais velhos”.
Segundo Jorge Querido, o ambiente que se vivia na CEI, nos anos 50, era o de “um oásis de democracia e de liberdade”, inserido na conjuntura de um regime repressivo e obscurantista.
Nesta época, a secção cultural da CEI impulsionada por Carlos Ervedosa, Fernando Costa Andrade, Tomás Medeiros e Fernando Mourão (este último brasileiro), promoveu publicações de obras de uma plêiade de bons escritores originários das colónias portuguesas, dos quais destacamos, entre outros, Agostinho Neto, Alda Lara, Ernesto Lara Filho, Manuela Margarido, Gabriel Mariano, Noémia de Sousa, Viriato da Cruz, Alda do Espírito Santo, Mário António, Luandino Vieira, José Craveirinha, Alexandre Dáskalos e Ovídio Martins. A partir de 1957, as direcções da CEI foram caracterizadas por posições marcadamente antifascistas e anticolonialistas.
Organizações clandestinas
É, posteriormente, no seio da CEI, que surgem, em Lisboa, duas organizações clandestinas de luta antifascista e anti colonialista: o Movimento Anti-Colonial (MAC) formado pela geração dos “mais velhos”, em 1957, e o Movimento de Estudantes Angolanos (MEA), constituído pela geração da “nova vaga”, em 1959.
O MAC foi dirigido por estudantes das várias colónias portuguesas africanas, que tinham à cabeça quatro “mais velhos” – Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Mário de Andrade e Lúcio Lara – e mais três estudantes da “nova vaga” – Iko Carreira, Carlos Pestana (Katiana) e Edmundo Rocha. Esta organização clandestina foi desenvolvendo um profundo trabalho de consciencialização e de mobilização, quer junto dos jovens da Casa dos Estudantes do Império (CEI), quer junto dos embarcadiços ligados ao Clube Marítimo Africano (CMA).
Agostinho Neto foi preso duas vezes pela PIDE, em Lisboa. A primeira, em 1952, com alguns companheiros do MUD Juvenil, quando recolhia assinaturas a favor de um tratado de paz entre as grandes potências (Estados Unidos da América, Inglaterra, China, França e União Soviética).
A segunda, em Fevereiro de 1955, sob a alegação de ter participado na 5ª Assembleia de delegados do MUD Juvenil, onde fora eleito para o Comité Central. Acabou por ser julgado em 1957 e condenado à perda de direitos políticos por cinco anos.
Em Outubro de 1957, Lúcio Lara participava como observador e membro do MAC no V Congresso do PCP, algures na linha do Estoril, onde, pela primeira vez, se reclamava “liberdade e independência para os povos das colónias portuguesas”, sendo aprovada a seguinte declaração: “O V Congresso do PCP proclama o reconhecimento incondicional do direito dos povos das colónias de África dominadas por Portugal à imediata e completa independência. A causa dos povos coloniais identifica-se com a nossa própria causa. Não pode ser livre um povo que oprime outro povo!”
A 11 de Março de 1959, pressentindo a sua captura iminente pela PIDE, Lara decide exilar-se na Alemanha, acompanhado da esposa e do filho Paulo de dois anos.
Entre outros membros da CEI, já se encontravam exilados naquele país e em França, Marcelino dos Santos, Mário Pinto de Andrade e Aquino de Bragança. Optando por não dar quaisquer sinais de abertura, o regime português mantinha-se preocupado em fortalecer o seu sistema repressivo, prendendo dezenas de nacionalistas angolanos em Luanda e forçando os dirigentes do MAC ao exílio.
Com a saída de Agostinho Neto para Angola, em 1959, e de Lúcio Lara, no mesmo ano, para a Alemanha, o MAC acabou por perder alguma da sua vitalidade.
Surge então a necessidade de se criar uma outra organização política clandestina, mas de raiz angolana, o que levou à constituição do Movimento de Estudantes Angolanos (MEA) que tinha núcleos clandestinos em Coimbra (Manuel Videira) e no Porto (Lima de Azevedo) e como principais promotores os João Vieira Lopes, Gentil Viana, Manuel Bento Ribeiro, António Pedro Filipe, Graça Tavares e Edmundo Rocha.
Era também no seio dos estudantes da CEI e dos trabalhadores do CMA que aquele grupo desenvolvia a sua actividade política clandestina, mantendo, por outro lado, contactos com dirigentes do MPLA na Guiné Conacky, através da Embaixada do Egipto, em Lisboa.
Foi por este canal que, a partir de 1960, o MEA recebia vária documentação assinada pelos nacionalistas Mário de Andrade, Viriato Cruz e Lúcio Lara.
A fuga dos cem estudantes
Tendo sido enviado para o exterior pelo Movimento de Estudantes Angolanos (MEA), em Abril 1961, Edmundo Rocha, respondendo ao apelo da Direcção Provisória do MPLA, em Conacky, organizou na Alemanha, juntamente com Luís de Almeida, Desidério Costa e Luísa Gaspar, a fuga de cerca de uma centena de estudantes africanos de Portugal, que se concretizou em 2 de Junho de 1961.
Segundo Edmundo Rocha, após o início da luta armada, em 4 de Fevereiro de 1961, o MEA recebeu um apelo dos dirigentes do MPLA, então em Conackry, “para que alguns estudantes fossem reforçar as insípidas estruturas do MPLA”.
Face às dificuldades de comunicação com Conackry e após deliberação prolongada, o MEA decidiu enviar para fora de Portugal dois elementos da sua direcção, afim de mais facilmente se porem em contacto com os dirigentes do MPLA e organizarem a fuga de alguns estudantes universitários.
Foi assim que Graça Tavares e Edmundo Rocha saíram por Vila Real de Santo António, tendo, posteriormente, seguido para Niort, em França, onde foram acolhidos por um amigo chamado Marc Antoine Delanné.
Dali anunciaram a sua saída de Portugal aos camaradas do MPLA. Todavia, ainda de acordo com Edmundo Rocha, “a resposta do MPLA foi negativa, informando-nos de que não dispunham de capacidades logísticas e de meios financeiros para custear tal operação e que devíamos juntar-nos ao Luís de Almeida, então na Alemanha. Esta resposta foi um balde de água fria e uma enorme decepção”.
Luís de Almeida e Karen, sua esposa, receberam Graça Tavares e Edmundo Rocha na sua residência em Birkesdorf-Duren, tendo mais tarde sido alojados, em Frankfurt, em casa de uma simpatizante da causa angolana. Entretanto, Graça Tavares foi chamado a Conackry e Edmundo Rocha ficou sozinho com a responsabilidade de realizar a missão de fazer sair de Portugal os estudantes africanos, que, ali, esperavam, ansiosamente, pelo resultado dos contactos estabelecidos com a direcção do MPLA. Foi então que Desidério Costa e Luísa Gaspar, estudantes angolanos na Alemanha, abriram uma primeira porta: a do bispo protestante de Frankfurt.
Este fez seguir o assunto para o presidente da Assembleia Mundial das Igrejas protestantes, o bispo Black, em Genebra. Este tinha exercido o magistério em Angola, estava sensível ao início da guerra colonial e foi receptivo à solicitação para a fuga. Edmundo Rocha refere que transmitiu os contactos de João Vieira Lopes em Lisboa “e a operação Fuga estava lançada e… escapou-nos das mãos”.
O organismo operacional foi a CIMADE, uma organização francesa de apoio aos refugiados, à época dirigido por Jacques Beaumond e apoiado por três jovens operacionais americanos, David Pomeray, Howard Kimbal e William Nothingham, que conduziram os autocarros.
Esta operação, altamente secreta, foi dirigida por João Vieira Lopes, que coordenava o MEA e a equipa da CIMADE.
Em cerca de dez dias, vários grupos dirigiram-se para a fronteira luso-espanhola, aí embarcaram em dois autocarros conduzidos pelos operacionais americanos e dirigiram-se para a fronteira franco-espanhola e daí para a sede da CIMADE em Paris, onde foram albergados e apoiados.
Edmundo Rocha, no seu livro “Angola: Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano (período 1950 – 1964)”, editado pelo autor e pela Kilombelombe, em 2003 e, em 2008, pela Dinalivros, destaca do grupo dos cem estudantes evadidos de Portugal, os nomes de João Vieira Lopes, Gentil Viana, Alberto Bento Ribeiro, Manuel Videira, Tomás Medeiros, Rui de Carvalho, Higino Pedro Gomes, Henrique Carreira (Iko), Africano Neto, Augusto Lopes Teixeira (Tuto), Fernando Paiva, Henrique Santos (Onambwe), José Carlos Antoinete, António Salvador Ribeiro, Manuel Boal e esposa, Jorge Hurst, Osvaldo Lopes da Silva, António Assis, Aladino Vieira Lopes, Carlos Pestana, José Araújo, Lima de Azevedo, Pedro Sobrinho, António Pedro Filipe, França Van-Dúnem, Rubio, António Xavier, Rui de Sá, Irmãos Wilson, Eurico Wilson, Mário Clington, Manuel Pedro Gomes, Padre Chipenda, Elisa Pestana, Gina Vieira Lopes, Amélia Araújo, Ana Wilson, Baiana Carreira, Ana Maria Videira, Ângela Guimarães Viana, Teresa Pedro Gomes, Zélia Salvador, Ana Maria Sá, Tadeu Bastos, Fortes, Fernando Assis, Mário Alberto Assis, Fernando Octávio, Filipe Amado e esposa, Fernando Chaves, Samuel Abrigada, Tiko, Gingim, Daniel Chipenda, António França, Victor Afonso, Silvestre Lopes, Mateus Silva, Idalina Bamba, Carlos Dias da Graça, António Macedo Júnior, António Santos Pinto, Job de Carvalho, Maria Nascimento Graça Morais, António Manuel Rangel, José Ferreira, Fernando Van-Dúnem, Luís Monteiro, Jerónimo Wanga, Mateus Neto, Jerónimo de Almeida, Filinto Vaz Martins, Serafina Assis”.
Dirigentes angolanos, como Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade e Eduardo Santos e o guineense Amilcar Cabral foram a Paris e tiveram contactos com os estudantes, tentando orientá-los segundo os seus desígnios. Jonas Savimbi conseguiu aliciar os jovens estudantes protestantes.
Alguns deles, dr. Lihahuca e Pedro Sobrinho, juntaram-se à FNLA em Leopoldville.
Luís de Almeida, tendo visitado, nessa altura, o grupo em Paris, informa-os da urgente necessidade de se organizarem numa Associação de Estudantes das Colónias Portuguesas a fim de se conseguir obter bolsas de estudo.
Foi, no entanto, a viagem de uma delegação de um grupo de estudantes das colónias portuguesas, para participar, em Moscovo, no Fórum Mundial da Juventude, em Agosto de 1961, que lhes permitiu estabelecer contactos e apoio junto da União Internacional de Estudantes, das Associações Estudantis da África do Norte e da Federação de Estudantes da África Negra em França (FEANF), a fim de se realizar o Congresso Constitutivo da União dos Estudantes das Colónias Portuguesas (UGEAN).
Mandatado para a organização daquele histórico evento, em Marrocos, Edmundo Rocha para ali se dirigiu, tendo conseguido os apoios não só da recém-criada Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), dirigida por Marcelino dos Santos e Aquino de Bragança, como também dos dirigentes estudantis e de membros do Governo marroquino.
“Entretanto em Paris, alguns jovens decidiram encetar uma viagem rocambolesca que os levou ao Ghana, onde foram recebidos por Kwame N’Khrumah”.
A criação da UGEAN, cujo primeiro presidente foi Desidério Costa, foi muito importante para a obtenção de bolsas de estudo e outros apoios aos jovens estudantes fugidos de Portugal e que tinham absoluta necessidade de acabar os cursos superiores.
Foi assim possível obter esses apoios e bolsas de estudo em numerosos países de Leste (União Soviética e RDA) e em países ocidentais (Estados Unidos, Alemanha e Holanda).
Ao longo dos anos, outros grupos de estudantes foram saindo de Portugal, tendo sempre recebido da parte da CIMADE e da UGEAN um apoio significativo, tanto na obtenção de bolsas de estudo como na integração nos movimentos de libertação, reforçando as suas fileiras e elevando o nível da luta armada de libertação.
*Ph. D em Ciências de Educação e Mestre em Relações Interculturais