Luanda - Estimados senhores do Club-k, pertenço a família real de Oukwanyama, quer dizer, que sou da mesma linhagem dos reis de Oukwanyama: Mweshipandeka, Weyulu, Nande e Mandume.


Fonte: Club-k.net

Em reação a texto no Jornal de Angola

No dia 18 de Maio de 2010 o senhor Artur Queiroz publicou no Jornal de Angola, na secção da cultura, uma informação que considero muito insultuosa contra o rei Mandume e contra os povos que Mandume representou.


Sei muito bem que o referido jornal não publicará o meu direito de resposta e muito menos fará ouvir a minha voz.


Durante todo este tempo tenho comigo um escrito de esclarecimento sobre os equívocos do senhor Queiroz mas nunca encontrei um espaço que pode ajudar a publica-lo. Um amigo me falou da vossa página. Entrei nela e gostei muito. Me parece credível e imparcial. Lhes envio o que o senhor Queiroz publicou no JÁ. Se me podem ajudar a dar a conhecer as razões que me fazem discordar do senhor Queiroz por favor comuniquem-me e eu vos envio o meu escrito. Suplico-vos.


Tukondjeni ya Hitotelwa. -  Vos envio a matéria do senhor Queiroz para o vosso conhecimento. Mas também podem lê-lo no mesmo Jornal de Angola do dia 18 de Maio de 2010, secção da cultura.


Subsídios para o breve reinado de Mandumbe

À volta da figura de Mandume circulam lendas e estórias mais ou menos fantasiosas. A tradição oral costuma acrescentar sempre “um ponto” a cada conto. Os alemães, com quem Mandume conviveu e de quem foi fiel aliado, pouco ou nada relatam sobre a sua figura. Os militares portugueses, sim, têm muitas referências ao rei do Cuanhama. Mas curiosamente não descrevem uma única batalha travada contra ele. Quase todos os oficiais que combateram no Sul, Sudoeste e Sudeste de Angola publicaram as suas memórias da guerra. E nenhum, salvo o major Artur de Moraes, que trocou correspondência com Mandume, descreve sequer contactos com o rei.


A pesquisa que fizemos sobre a época através de relatórios militares e livros de memórias permitiu-nos obter importantes subsídios para melhor compreendermos o breve reinado de Mandume.


Em primeiro lugar interessa reter que ele chega ao poder em 1911, alguns meses depois do triunfo da revolução republicana em Portugal, que pôs fim à monarquia. O distrito da Huíla, que abrangia o território das actuais províncias do Kuando-Kubango, Namibe e Huíla, estava em guerra permanente. Depois do triunfo da República, os oficiais portugueses no terreno tentam resolver a guerra através de negociações de paz com os sobas da vasta região. Mas os oficiais monárquicos sabotam de todas as formas essas iniciativas. Eles apenas têm um objectivo: a ocupação pela força. Querem medalhas, condecorações, promoções por distinção, lugares bem pagos no regresso a Lisboa como “heróis”. Os militares do Quadro do Ultramar, tratados depreciativamente por “oficiais mandioca”, querem a paz a todo o custo porque já têm poucos laços com a “metrópole” e em Angola casaram e lhes nasceram os filhos.


A situação dos colonos é dramática. O major Artur de Moraes escreve no seu livro de memórias que estão “dispersos pelo interior de Angola e por falta de recursos e de auxílio do Estado se acham na maior miséria”. As guerras no Sul consomem largas somas de dinheiro e centenas de vidas humanas. “Angola está desguarnecida e é sobretudo a fronteira do Sul que está mais ameaçada”, diz ainda aquele oficial que viveu os últimos anos da sua vida, já como civil, na cidade do Kuito, onde faleceu.


Estudos dos alemães


Nesta época a fronteira de Angola era praticamente o rio Cunene e o último posto português estava situado no Humbe, então sede de concelho que foi chefiado, entre outros, pelo capitão Gomes da Costa, que mais tarde foi o líder do golpe fascista em Portugal do 28 de Maio de 1926. Morreu no posto de marechal. Outro administrador foi o capitão Artur de Moraes, republicano militante e que após o 5 de Outubro de 1910 ganhou algum protagonismo na região. Foi ele que assinou um tratado de paz e amizade com o rei do Cuanhama, Nande, em 22 de Fevereiro de 1909. Na realidade era um “auto de vassalagem”. Mas as condições no Cuanhama eram péssimas devido a uma estiagem prolongada à qual se seguiram dois anos seguidos de inundações. Artur Moraes fretou três carros bóeres puxados por dez juntas de bois, carregou-os de mantimentos, atravessou o Cunene e foi até a cidadela real de Nande a quem entregou os mantimentos. Na sequência deste gesto de boa vontade, o rei assinou o tratado.

 
Artur Moraes refere nas suas memórias que ficou provada a abertura de espírito dos cuanhamas e que era possível ocupar todo o território sem sacrifícios de vidas humanas. Ele escreveu que “é inadiável fazer-se a delimitação da fronteira Sul o que servirá de barreira à cobiça de estranhos”. Ele sabia do que estava a falar. Umas das testemunhas da assinatura do tratado foi o missionário alemão, Aray Woolfhorst, que imediatamente informou o alto comando germânico no Sudoeste Africano (Namíbia). Os alemães iniciaram de imediato acções que pusessem em causa o tratado. Eles tinham um plano ambicioso de ocupação do Sul de Angola cujo núcleo principal ficava no triângulo entre o Cuanhama, Humbe e Cassinga.

 

O governo alemão queria um porto de mar no Sul de Angola e colocou três hipóteses: Baía dos Tigres, a apenas 50 quilómetros da fronteira com o Sudoeste Africano, então território sob ocupação alemã, Namibe e Tombwa. Fez estudos sobre a viabilidade da construção de um caminho-de-ferro que ligasse esse porto de mar à Namíbia, Rodésia (Zimbabwe) e África do Sul. Os engenheiros alemães decidiram que a via-férrea devia ser feita ao longo do Paralelo 17º Sul entre o porto de mar escolhido e atravessando a Namíbia, o Zimbabwe e mergulhando no centro da África do Sul.

 

Conhecemos hoje pormenores do traçado da linha que acabou por não ser feita, dado que os alemães foram derrotados em 1915. A via-férrea passava ao longo do rio Cunene até aos rápidos de Sacavala, contornava o Morro de Capupito, seguia para Ediva, passava ao longo do rio dos Elefantes, atravessava o território dos mucubais seguindo a margem esquerda do rio Curoca e terminava na Baía dos Tigres (Namibe ou Tombwa).
Rendição dos alemães


Norton de Matos, que foi governador-geral de Angola entre 1912 e 1914, conhecedor dos planos dos alemães cria postos militares apetrechados com estações radiotelegráficas em toda a região, desde a Foz do Cunene até ao Tombwa.


Os alemães viram o seu sonho esfumar-se quando em Julho de 1915 foram obrigados a assinar a rendição ao general Botha. A I Grande Guerra começara um ano antes e as tropas da Alemanha na África Austral pouco aguentaram. Mandume ficou privado dos seus aliados e ainda viu apertar-se a vigilância na fronteira, o que dificultou as suas acções de guerrilha, que ele lançava desde o Sudoeste Africano, onde se refugiara quando o general Pereira de Eça (o Pêra de Aço) ocupou Ngiva (Ondjiva).


Só nesta altura foi definida a fronteira Sul de Angola, praticamente com o traçado que hoje tem. Portugueses e ingleses criaram uma zona neutra compreendida entre o Paralelo Ruacaná-Kubango, proposto pelos portugueses para fronteira e o Paralelo Cazambue-Kubango que havia sido proposto pelos alemães. A zona atravessava a região de Otchimporo, para onde os cuanhamas levavam o gado no tempo da estiagem, já que era abundante em água e pastos . Só no dia 1 de Julho de 1926 foi ultimado o acordo assinado na Conferência do Cabo entre delegados portugueses e sul-africanos sobre a fronteira que ficou fixada em linha artificial da catarata do Ruacaná ao encontro do rio Kubango.


Mandumbe ficou com os movimentos limitados e perdeu os fornecedores de armas e munições. Um ano antes da derrota do “Kaiser”, o último rei dos Cuanhamas pôs fim à vida. Mas ao contrário das lendas que ainda hoje circulam, ele nunca teve um grande combate com os portugueses. Essa glória cabe inteira ao rei do Cuamato Grande que infringiu às tropas portuguesas a sua maior derrota de sempre. Há quem atribua a Mandume a batalha de Pembe, mas é uma falsidade histórica. Quando aconteceu esse combate, Mandume era um menino e ainda nem sequer sonhava ser rei.
A batalha de Pembe

 

Os portugueses tentavam desesperadamente ocupar os vastos territórios a Sul do rio Cunene mas sucessivas colunas militares foram derrotadas e tiveram de recuar para o Humbe, a praça-forte das tropas de ocupação. O jovem conde de Almoster partiu para Angola à frente de uma unidade militar que depois de desembarcar em Luanda seguiu directamente para o teatro de operações. O rei do Cuamato Grande destroça a sua coluna e o jovem conde morre em combate. As autoridades coloniais ficam em estado de choque e em Lisboa chovem as críticas à administração colonial.


O governador da Huíla, capitão de engenharia João Aguiar, preparou nova coluna que ele próprio comandou. Mal passou o rio Cunene foi submetida a intenso fogo das forças do rei do Cuamato Grande. As forças da vanguarda, comandadas por Gomes da Costa, prepararam tudo para a tropa retirar “em boa ordem” para o Humbe mas as baixas foram muitas. Nada que se parecesse com o que aconteceu a seguir. Foi organizada nova coluna com a incumbência de submeter o Cuamato Grande e marchar para sul até Ondjiva. Esta coluna estava equipada com uma metralhadora pesada Hotchkiss que só atrapalhou. Também levava peças de artilharia 7 EBM (Bronze-Estriado-Montanha) que na hora do desastre matou muita gente com “fogo amigo”. O comandante era Pinto de Almeida, capitão de artilharia.


O vau do Pembe fica situado na margem esquerda do Cunene a dois quilómetros da confluência com o rio Caculovar. E dista do Humbe escassos oito quilómetros. Gomes da Costa e Artur de Moraes contam a batalha com grandes pormenores. Mais recentemente, Bento Duarte, que fez uma aturada investigação sobre as guerras do Sul de Angola, escreve que a batalha é “o quadro horrendo da formidável derrota dos portugueses, a maior e mais trágica que alguma vez lhe foi imposta na África Negra”.


A lista oficial das baixas é impressionante. Oficiais mortos: capitão médico Manuel João da Silveira, segundo tenente João Faria Roby Pereira (Armada); capitão Pinto de Almeida (comandante da coluna), alferes Joaquim Pinto Rodrigues (Artilharia); tenente Adolfo Ferreira, tenente Francisco Resende, tenente Freire Temudo, alferes Santos Nunes (Cavalaria); tenente Luz Rodrigues (Companhia Europeia); tenente José Maria Ferreira, alferes Manuel de Oliveira (Batalhão Disciplinar); alferes Albino Chalot, alferes Correia da Silva (VI Companhia Indígena); tenente Matias Nunes (XVI Companhia Indígena); tenente António Trindade (Administração Militar); alferes Pacheco de Leão, comandante dos “auxiliares indígenas”.


Na batalha do vau de Pembe morreram ainda 13 sargentos e 255 soldados. Ficaram todos insepultos e só dois anos mais tarde Artur de Paiva conseguiu resgatar as ossadas.


A guerra dos Bóeres


Lord Kitchner, em 1902, ao serviço da Grã-Bretanha, põe fim às repúblicas holandesas independentes do Transval e do Estado Livre de Orange, na África do Sul. Muitos bóeres refugiam-se em Angola e fixam-se no distrito da Huíla. Mas enquanto durou “A Grande Jornada” eles tiveram retumbantes vitórias sobre os ingleses e já sonhavam com um grande país que abrangia toda a Namíbia e o Sul de Angola até ao rio Cunene.


A vitória inglesa ajudou os portugueses a fazer a ocupação do sul de Angola. Foi neste quadro que o rei Iulo, do Cuanhama, assinou um tratado de amizade com os portugueses. Mas tudo muda quando Mandume sobe ao poder, sucedendo ao seu tio. Os portugueses classificaram-no como “um jovem irrequieto e sanguinário”.


O Cuanhama ficou dividido em relação ao novo soberano. Os poderoso lengas  Nekongo e Eválua abandonam o Cuanhama e fixam-se no Humbe, levando milhares de pessoas e os seus rebanhos de gado. Os lengas Kalola e Chiconhengue, fiéis a Mandume, fazem razias nas mucundas dos nobres cuanhamas “exilados”. O lenga Kalola é preso pelas tropas portuguesas quando atacava a mucunda de Kabongo, já depois de assinada a paz com o pequeno e grande Cuamato. Mais tarde foi preso Chiconhengue.


Nos primeiros meses do seu reinado, Mandume escreve uma carta ao major Artur de Moraes, comandante militar e administrador do Humbe, onde diz que quer viver em paz e harmonia com todos os vizinhos e reprovando as acções de Chiconhengue e Kalola no Cuamato e no Humbe. O major Moraes aceita a amizade oferecida por Mandumbe e através de um ofício oficial dá-lhe uma garantia: “pode estar descansado que o Chiconhengue e os outros cuanhamas presos no Cuamato não serão mortos, porque o Governo da República Portuguesa, não consentiria em tão grande barbaridade. Em Portugal não há pena de morte e fique certo que serão bem tratados”. Os republicanos querem marcar a diferença com os monárquicos, que passavam “o gentio a fio de espada”.


Mandume não respondeu ao ofício de Artur Moraes e as suas acções de guerrilha prosseguiram, agora com forte apoio dos alemães que lhe levam a Namacunde 19 carros bóeres carregados de armas e munições. Alves Roçadas fundou um forte na margem esquerda do Cunene e Pereira de Eça avança sobre N’giva. Milhares de cuanhamas fogem para o Evale e para Cuambi, já no Sudoeste Africano. Mandumbe faz o mesmo trajecto.


A sua guerrilha é letal mas as tropas inimigas aos poucos ocupam os seus domínios. Nem bóeres nem alemães, derrotados, lhe podem valer. O rei sabe que está perdido. Um ano antes do armistício que pôs fim à I Grande Guerra, assinado na floresta de Compiégne, em França, Mandumbe decide pôr fim à vida na cidadela real de Namacunde.