Luanda  - Quando se deu o «27 de Maio», Eunice Alves Bernardo Baptista, uma das três filhas de Nito Alves, tinha apenas 4 anitos.  Por isso, ela só foi sabendo dos assuntos políticos que resultariam na morte do pai e de milhares de outros cidadãos desse país através de terceiros e do que ia lendo aqui e ali, à medida que se foi tornando mulher.

* Salas Neto
Fonte: Semanário Angolense

Quer saber onde o seu  pai está sepultado

Nestes particulares, sublinha a obra «Nuvem Negra», do jurista Miguel Francisco «Michel», um sobrevivente da repressão que se seguiu à «intentona», com quem tem alguma aproximação, da qual extraiu interessantes ilações sobre o que aconteceu naqueles dias cinzentos e sobre o papel desempenhado pelo seu pai na história.


Aliás, foi este nosso amigo, antigo  colega da «fao» do signatário  destas linhas, quem facilitaria o contacto com a «filha do meio» de Nito Alves, para a sua primeira aparição pública nessa condição, que, se diga, não foi fácil de se concretizar, por reserva pessoal sua, que só agora conseguiria quebrar. Ela diz a razão. «Como parece termos agora mais liberdade de expressão, já dá para nos apresentarmos à sociedade », explicou a «pérola» desta edição do Semanário Angolense.


De estatura mediana, esbelta e sobretudo muito linda (mais ainda com as lentes de contacto azuladas que exibia - «mas são mesmo de vista», explicaria depois), ela irrompeu pelo nosso humilde gabinete na manhã desta quartafeira, com um ligeiro atraso sobre a hora acordada (10), ao que disse, devido a constrangimentos que teve com o trânsito, quando se dirigia, à boleia, aos nossos escritórios, sitos à Vila Alice.


Enquanto nos acomodávamos, ia reiterando a pré-condição que estabelecêramos para a conversa: «Nada de política». Como a querer dizer que poderíamos falar doutras coisas e não essencialmente do papel do seu pai no «27 de Maio», nem do desastre que se lhe seguiu, assuntos sobre os quais, como enfatiza, aliás, nada sabe por aí além, à excepção das «histórias» que ouviu das pessoas e do que ia extraindo dos livros que foi lendo acerca. Ainda assim, por compreensível inevitabilidade, fomos obrigados a determinados espaços da nossa conversa de fazer alguma ligação a «nível político» entre ela, o pai e o «27».


Começamos então pela sua apresentação. «Sou a Eunice Alves Bernardo Baptista, nasci no Piri, Bengo, e tenho 39 anos. Sou filha de Alves Bernardo Baptista (Nito Alves) com a senhora Arminda Venâncio Alberto», disse.


«És filha única?», perguntamos. A resposta: «Não. De pai e mãe, somos duas. Eu e a minha irmã mais velha, a Marília Alves Bernardo Baptista, que também nasceu no Piri, tem 42 anos e vive em Lisboa neste momento».


Porém, como disse, há uma terceira filha de Nito Alves reconhecida pela família, a senhora Oliva dos Santos, que, nascida já em Luanda, de uma outra companheira do pai, terá aí uns 35 anos ou está a caminho disto. Mais também não poderia ter, já que, segundo a Eunice, a sua irmã caçula não leva o nome do pai por ter nascido depois do «27 de Maio», numa altura em que ele já tinha sido «levado », sendo registada pelo senhor com quem a mãe dela se juntaria a posterior. Mas, como a nossa interlocutora (não gosto nada de usar este «palavrão») faz questão de sublinhar, é reconhecida como sendo filha pura do seu pai. Sem nenhuma dúvida. O seu avô paterno, o velho Bernardo Panzo, fazia tenção nisto.


De resto, para cogitarmos o título que faz a nossa manchete desta semana - «As filhas do Nito» - tínhamos sido embalados pela garantia de que ela também viria à conversa com o SA, algo que, infelizmente, não chegou a acontecer devido a compromissos laborais da senhora, segundo a irmã. Oliva é enfermeira, com formação obtida no estrangeiro.


Depois da apresentação, passámos então à conversa propriamente dita. «Vocês já tiveram problemas por serem filhas de Nito Alves?», arriscou o jornalista de rompante. «Não propriamente. Mas, desde que ele desapareceu, sempre passamos por muitas dificuldades, algumas inimagináveis.


Já passamos muito mal e continuamos sem estar bem até  agora», conta a «rapariga», dando como exemplo o facto de ter sido obrigada a desistir dos estudos em 1987 (ao fim da 8.ª classe, feita na «Ngola Kiluanji»), por não ter como, em face dos extremos problemas financeiros por que passava a família mais directa, então constituída por ela, a mãe e a irmã mais velha. «Nessa altura, para entrares para a 9.ª classe era muito difícil sem se pagar a ‘gasosa’, pelo que, como não tínhamos aonde tirar dinheiro para isto, fui obrigada a desistir dos estudos pura e simplesmente», recorda com alguma amargura.


A situação existencial se complicaria depois do falecimento da mãe, em 2001, vitimada por um ataque cardíaco, o que levaria as duas irmãs, então órfãs de pai e mãe, a emigrarem para Portugal dois anos depois, em busca de melhores condições de vida.


Lá, ao contrário do «el dorado» que contavam encontrar, seriam obrigadas a trabalhar no duro, sobretudo como domésticas, entre outros empregos menores e de ocasião, para poderem sobreviver. A tal ponto que estudar se converteu num sonho adiado a cada ano, dos vários que passaram pela Tuga (uma continua por lá).


Daí a explicação para o facto de não se ter formado na altura certa, algo que, como confessou, está empenhada em conseguir corrigir agora, pois a esperança é a última coisa a morrer. Eunice Baptista está no momento a estudar a 10.ª classe no Colégio Bethânia, com «inspiração» bastante para vir a acabar o «médio», após o qual espera ingressar numa faculdade de Direito, que sonha terminar, custe o que custar.


Entretanto, em Lisboa ficaria a irmã mais velha, que continua a dar no duro para sustento dela, das suas duas filhas e da sobrinha, filha de Eunice, que esta preferiu que ficasse por lá, enquanto, de regresso ao país, v ai tentando reunir condições para que a família venha depois a reunir-se na terra-mãe, onde, afinal, é o seu lugar. «Mas, até isto está difícil, meu irmão, porque não tenho ainda como arranjar o dinheiro para os bilhetes de passagem», lamenta.


A outra, a Oliva, teve melhor sorte. Conseguiu formar-se, tendo hoje um emprego que lhe dá para ir se safando com alguma dignidade. «Mas isto foi à custa de muito sacrifício dela», atesta a sua irmã Eunice, feita a «portavoz » das filhas de Nito Alves para esta conversa específica e especial com o Semanário Angolense.


Está desempregada e mora em casa de renda com três «primas»


Eunice Baptista está desempregada.  Neste momento, segundo ela, sobrevive do que vai dando um velho Hiace seu que está no «processo », se bem que em meio a muitas dores de cabeça, decorrentes de avarias constantes do «equipamento».


Aliás, como garantiu, no momento em que conversava connosco, tinha mais uma avaria a arreliar-lhe a paciência. «É próprio. É só coragem, minha mana», brincamos nós. Aos parcos rendimentos que provêm do «processo», junta algum dinheiro resultante de um pequeno negócio de venda de roupa à «kilapi» importada de Lisboa, que o faz em duas ocasiões do ano, quando consegue ir à capital lusitana: na quadra festiva e por altura das férias de Verão da filha.


Ainda em termos de dinheiros, tem contado com o apoio do pai da sua filha, cuja «contribuição» é enviada para Lisboa, a fim de ajudar nas despesas da irmã que lá ficou com as crianças. «Sabe nê?, a vida está dificílima por lá», reforça. De facto, assim é, corroboramos. Sabemos bem disso, porque temos lá a mamã, a mana, o cunhado e os sobrinhos (dois).


«A Eunice tem marido?», adiantamos. «Marido, marido, bem, quer dizer, tenho noivo. Ele já fez o pedido», respondeu, com um sorriso malandro, animada certamente com a perspectiva do casamento. Para quando, não perguntamos.


Mas, perguntamos onde ela vivia. «Vivo numa casa de renda no Bairro da Coreia, com três primas, para melhor repartirmos as despesas, o que sempre facilita as coisas», revelou. As «primas» são na verdade amigas que a vida juntou nesta difícil luta pela sobrevivência.


Disse antes que jamais a família teve apoios institucionais dignos desse nome


Ainda sobre dinheiros e a uma pergunta sobre se a família mais directa de Nito Alves tem ou já recebeu algum apoio de instituições do Estado, Eunice Baptista revela que, à excepção de um «subsídio» de 47 mil kwanzas por mês que tem ido, desde 2006, levantar no BPC, do Fundo de Pensões, em nome do pai, que ostenta a patente de brigadeiro, honra que lhe foi atribuída a título póstumo, nunca ouvi falar ou viu algo mais. Nada.


E sobre este dinheiro, repartido pelas três irmãs, já alguém da caixa social das FAA, que ela não conseguiu identificar direito, a quem Eunice Baptista havia recorrido para lhe ajudar a obter um crédito bancário, chegou a dizer que era atribuído a  ítulo extraordinário, porque as três manas já eram bem «mais-velhas», pelo que até corriam o risco de ficar sem ele. «Eh, eh, eh, issunji!», diriam os maisvelhos lá do Piri, admirados com tanta desconsideração à figura do homem.


É nesta parte que Eunice Baptista manifesta algum desagrado em relação às autoridades, porque, segundo ela, pelo que ouviu sobre o verdadeiro engajamento do pai à causa do MPLA, que é o partido no poder, ele não merecia ser tratado como o tem sido até aqui por muitos dos seus antigos companheiros que agora mandam no país.


«Queremos apenas que ele seja reconhecido como uma figura que, a despeito das diferenças que originaram o tal ’27 de Maio’, deu tudo por este povo», disse a segunda filha de Nito Alves, assegurando que sente muito orgulho pelo que ele representa ou representou para o povo angolano.


«Gostávamos também que as portas não se fechassem mais como sempre aconteceu desde o seu desaparecimento», apela Eunice Baptista, que diz ter apenas recordações muito vagas do pai, que era o esteio da família, decorrendo, por isso, do seu trágico destino, a má sorte dos descendentes que deixou, antes de explicar que já recorreu a certas instituições, como o próprio MPLA, em busca de algum apoio, mas sem sucesso algum.


Curioso, porém, é o facto de Eunice Baptista não ligar directamente as dificuldades pelas quais a família passa com o destino trágico que a política reservou ao seu pai.


Prefere pensar que é apenas porque o «homem de casa» desapareceu muito mais cedo do que se esperava, o que poderia ter acontecido noutras condições. É algo complicado o seu raciocínio, mas, para ela, o «27 de Maio» e o seu cortejo de desgraças serão conversa para se esquecer de algum modo.


Será por isso que Eunice Baptista garante que em momento algum ela e as irmãs pensaram em «vingança » ou coisa do género, embora tenham uma reivindicação a fazer, inerente à cultura dos africanos e de muitos outros povos do mundo  em matéria de óbitos: conhecer o lugar onde os seus entes são sepultados.


A propósito, disse: «Queremos apenas conhecer onde o nosso pai foi sepultado, para que possamos também, quando der, ir para lá depositar uma coroa de flores ou coisa do género, como as outras famílias fazem em relação aos seus mortos». Esta era, aliás, uma reivindicação do seu avô, velho Bernardo Panzo, que andou às voltas, chegando mesmo a recorrer às mais instituições do país, para que lhe dessem este «direito» muito caro à sua e às outras famílias que seriam atingidas pela repressão à «intentona», mas sem sucesso. O velho viria a falecer em 2003.


Ainda sobre apoios, num outro sentido, perguntamos a Eunice Baptista se já alguma vez recebera fosse o que fosse, por exemplo, da Fundação 27 de Maio, que esgrime o nome do seu pai como bandeira, e ela disse redondamente que não. Nem pó. «Fundação 27 de Maio?! Sim, já ouvi falar vagamente dela, mas nunca ninguém de lá já veio ter connosco», afirmou.


Como não podíamos entrar mais profundamente na política, tal qual combináramos, acabamos a conversa praticamente aqui. Mas, ainda deu tempo para que ela confessasse que é militante do MPLA (com cartão e tudo), aliás, doutra forma não podia ser com o pai que teve, confessa, garantindo que está registada, pelo que vai exercer o seu direito de voto com a devida maturidade. E anseios também. «Não queremos tirar o pão de ninguém. Gostávamos apenas que o MPLA nos apoiasse tal como o faz com os filhos de outras figuras do nível que o nosso pai atingiu neste partido. Ele deu tudo pelo povo», reiterou Eunice Baptista, uma das três filhas de Nito Alves, que nos deu o privilégio de a «apresentarmos à sociedade»,
como sublinhou. «Sem políticas», é claro…