Luanda - O Comandante Bakalof era, desde a independência, membro do Comité Central do MPLA. Sendo Comissário Nacional das Forcas Armadas, era, portanto, em termos hierárquicos, a quarta figura da hierarquia militar. Todo o processo de detenção, tortura e morte de Bakalof acusa o desejo de o tornar um caso “exemplar”: o MPLA quis mostrar que nem os grandes e influentes estavam imune ah sua “justiça”. Alias, os agentes Carmelino Pereira, Carlos Jorge, Inácio e Cansado passaram a ter preferência pela ameaça: “Queres ir para onde foi Bakalof?”.


Fonte: Angolense


A presença do Comandante na prisão impressionou sobremaneira os outros detidos porque continua a ser para estes um guerrilheiro, um herói. O Comandante foi preso a 9 de Novembro de 1977. Os vinte portugueses que ai se encontravam souberam desta presença e da tragédia que o acompanhava. Foi de imediato internado na Casa de Reclusão de Luanda. Encerraram-no na tristemente celebre cela 14. Sem agua, sem luz – natural ou artificial -, sem instalações sanitárias, e na companhia dos mais diversos parasitas que nestas condições se desenvolvem. Nunca teve uma visita. A sua mulher, essa estava na cadeia de São Paulo, numa secção apelidada de Comboio, onde se situavam também as salas de tortura.


Nesta cela, também chamada cela da morte, Bakalof experimentou o pior dos sofrimentos e as mais cruéis humilhações. Nestas circunstancias, muitos dos prisioneiros com quem ali conviveu enlouqueceram.


Mais tarde, transferiram-no para uma das celas resultantes da divisão da capela. Mas continuaram a recusar-lhe qualquer assistência medica, e o seu pedido de autorização para escrever a Agostinho Neto foi mesmo motivo para maus-tratos físicos.


Porem a situação de total isolamento a que foi votado eh, com certeza, o aspecto mais desumano da tortura de que foi vitima. Apenas saia da cela para tomar banho e para lavar o seu prato num tanque sito defronte da capela. Quando tal acontecia, todos eram obrigados a recolher às suas celas e as portas destas tapadas com cobertores. Em virtude de tais medidas, muitos dos prisioneiros nunca o chegaram a ver.


Os episódios de encontros esporádicos foram objecto de severa punição. Como aquele em que, por não terem fechado um dos corredores de que Bakalof se servia para ir a casa de banho, o português Brígida e o são-tomense Tibério, regressando das casas de banho às suas celas, o puderam ver, quase nu, e receber dele uma saudação: - “Como vão? Estão fines?”. Esta saudação foi motivo para rudes ameaças e particular vigilância daqueles presos.


Segundo pude apurar, a partir de certa altura, Bakalof começou a revelar indícios de loucura. Uma semana antes da sua morte, ocupava as noites cantando hinos invocadores da protecção divina, canto que impressionava deveras os outros reclusos e veio a revelar-se premonitório. Os acontecimentos seguintes faziam já parte de um quase ritual vitimário. Todas as luzes da cadeia se acenderam. Os agentes eram em grande numero, de SP (São Paulo) a CR (Casa de Reclusão). Entre outros: Ambrósio, Silva, Limão, Inácio, Pereira, Cansado, Talahady, Carmelino Pereira, Tira Ranho. Ouvem-se gritos:


- Bakalof, Bakalof?

Alguns prisioneiros acabam por responder:

- Está na capela, esta na capela!

Ouvem-se portas a abrir, tiros, gritos e ordens no sector de Bakalof:

- Levanta… veste.

- O que eh?

- Já vais saber.

- Levo as minhas biquatas?

- Não te preocupes. Isso não eh preciso para nada.


Depois deste dialogo, conduziram o Comandante pela pátio interior do sector ate lá fora, junto do campo de jogos da guarnição, onde já estavam cerca de vinte prisioneiros. Ouve-se chorar: “Cala”. Ali estão já muitos jipes, pelo menos duas ambulâncias e camionetas da policia das fronteiras. Sobem ao comando. Bakalof eh objecto de escárnio: - “Reaccionário… Bandido…”, gritam Carmelino, Pitoco e outros oficiais. Começa então a “festa” da DISA. Ouvem-se gritos no pátio superior, para onde foram escoltados. Os outros detidos reconhecem as vozes dos que são torturados. Fernando Luís, que ia já quase moribundo, implora que não lhe batam mais.


Passada meia hora, regressam ao local das vitimas. Os reclusos que tinham janela para o campo de jogos puderam observar, então, junto da camioneta que havia sido confiscada ao Juca, que os torturados foram conduzidos para dentro das ambulâncias, e de outras viaturas, de mãos atadas. O 1º  Tenente Nelson Pinheiro (Pitoco) tinha sido designado para comandar a execução. Tira Ranho conduzia a ambulância da CR. Veloso, Procurador Militar, mandou atestar de combustível a ambulância e colocar dentro quatro latas de um galão com gasolina.

Na manha seguinte, nenhum dos oficiais apareceu, tal era a “ressaca”. Por volta das seis da manha, na CR, os carros já tinham sido entregues para serem lavados.

A ambulância percorrera 36 Km e praticamente não tinha combustível. Portanto, o massacre deve ter-se concretizado a uns 18 Km da CR. O combustível que faltava deve ter sido usado para queimar os cadáveres, como era pratica habitual. No fim dessa cremação foram, com certeza, enterrados. Alias, nas Palmeirinhas havia já uma escavadora para abrir as valas para os corpos dos executados.

Por volta das 10 horas, estas noticias chegavam já ah SP (São Paulo). Eh que os disas ainda não tinham descoberto que os seus próprios veículos eram usados como transporte de mensagens entre CR e SP. Frequentemente essas informações iam escondidas, entre outros lugares, nos pára-choques e, como os mecânicos era de confiança, conseguíamos estabelecer contacto com alguma segurança e regularidade. José Mingas e Kilombelombe tinham participado, por varias vezes, naquelas estratégias de comunicação.


Em concreto, os presos que foram encarregados da lavagem das ambulâncias e das outras viaturas usadas no massacre encontraram nelas sangue, o crucifixo do Santos, restos de pensos, mordaças, e ainda um chicote ensanguentado, roupa interior, muitos cabelos, sapatos e vários amuletos. Os relatos feitos por alguns militares confirmavam que aqueles presos  foram maltratados de forma indescritível antes de encontrarem a morte. Alias, esta era a prática habitual: o preso que ia ser executado passava a ser propriedade dos seus algozes.


A esposa de Bakalof, que vi passar diversas vezes no pátio, não sabia de nada. Contou-me que só muito mais tarde tomou conhecimento da morte do marido.


Soube, depois, que também Ludy (Kissassunda) e Xietu ali tinham permanecido horas, naquela noite, antes de seguirem para o local de execução de Bakalof.

Ref.:

BOTELHO, Américo Cardoso, HOLOCAUSTO em Angola, pp. 118- 121, Nova Veja, 2007