Lisboa – Diz o poeta mexicano Renato Leduc que quando se fala do tempo perdido algumas pessoas acreditam que os santos choram. Que choram principalmente diante dos espelhos da memória povoados de monstruosidades.


Fonte: Público

Não sei se isto é verdade, só os santos o podem confirmar. O que sei é algo de muito concreto. Algo sobre um país chamado Angola que se mira diante de um espelho de grandes horrores — os sinistros acontecimentos de 27 de Maio de 1977; um país onde milhares de pessoas protestam e choram os parentes que um dia foram desterrados para a morte marcados a fogo por altos funcionários do Estado.


Choram por não saber sequer o nome do pedaço de terra que cobre os despojos dos seus entes queridos; mas choram sobretudo de revolta ante a indiferença dos detentores do poder político que persistem em não dar nenhuma satisfação acerca do desaparecimento forçado de tantos cidadãos, ao mesmo tempo que fazem do silêncio a táctica com que pretendem apagar o passado e não se pense mais nele.


É realmente chocante esta face por trás do espelho: o comportamento dos governantes angolanos que se obstinam em ignorar a insistência do protesto nacional na expectativa de que a verdade sobre o 27 de Maio se evapore para sempre. Nada menos do que o contraponto da “sábia virtude de conhecer o tempo”, assim diria o mesmo poeta hispano-americano.


Durante aproximadamente dois anos — de 1977 a 1979 —, o Estado e o Partido, por obra de monstros e obcecados instalados nos mais altos patamares do poder, derramaram sobre Angola um verdadeiro inferno de terror que se traduziu em golpes de sequestro, atrocidades e torturas contra milhares de cidadãos. A repressão foi tão violenta que ainda hoje o país estremece sacudido por espasmos de comoção.


Os principais assassinos simbolizam o que eu chamo de as Cinco Bestas do Apocalipse. São eles: Agostinho Neto (Presidente da República), Lúcio Lara (secretário do Bureau Político do MPLA), “Iko” Teles Carreira (ministro da Defesa), João Lopes “Ludy” e Henrique Santos “Onambwe”, estes dois últimos chefões dos serviços secretos, a DISA. Nenhum dos brutais crimes que se cometeram deixou de ter a sua chancela. Guiados por um revolucionarismo puramente sanguinário e barbaresco, estes homens congeminaram a mais negra carnificina de que há memória nos anais da História angolana.


É um facto: sob o reinado de Neto, o país transformou-se num deserto de sofrimentos e de profunda tristeza. Aos órgãos de Segurança, às Forças Armadas e às forças paramilitares confiou-se o papel trágico e hominizo de disseminar o Terror. Muitos dos seus servidores deixaram-se converter em mercadores da morte, em delinquentes criminais.


As vítimas foram tratadas sem qualquer limite nos métodos. Cada um tinha carta-branca para moer os miolos e os corpos dos presos e para os reduzir a “poeira do campo”, segundo uma expressão favorita de Lavrenti Beria, o todo-poderoso chefe do aparelho repressivo da União Soviética na era de Stalin. Em nenhum momento se observaram normas ou procedimentos de respeito pela vida humana; brutalizava-se com requintes de malvadez.


Negou-se aos acusados o acesso aos tribunais. Os extremos de violência foram tais que se mataram as pessoas da mesma forma que se mata um piolho. Causando lhes os maiores sofrimentos. A vingança do Grande Chefe tinha de ser exemplar e terrível: abater a esquerda pró-soviética do regime que se mostrava crítica em relação aos desvios da Revolução; abater os militantes menos ortodoxos e aduladores de Neto e também os arautos mais destacados de políticas reformistas dentro do Movimento. Um cenário protofascista e maniqueu.


É censurável a linguagem utilizada nos últimos anos pelas cúpulas do MPLA que procuram isentar de responsabilidades os figurões envolvidos nas matanças do 27 de Maio. Argumentam que a tragédia acabou por ser produto de excessos de zelo e de erros praticados pelos cães de fila da DISA e por militares isolados. Uma explicação capciosa. Tão pusilânime e tão maligna como a montanha de cadáveres que ensanguenta a memória nacional.


Não se pode “esquecer” que o desaparecimento forçado é um crime que, à luz das leis internacionais, não se extingue. Quer dizer, não prescreve enquanto se continuar “a ocultar a sorte e o paradeiro” das pessoas desaparecidas. Não Creio ser arriscado desculpar Agostinho Neto. Isso equivalia a emparelhá-lo com líderes frágeis que mandam pouco importa quem desfechou os tiros ou quem escondeu corpos em locais incertos para fazê-los desaparecer.


Na extensa cadeia de crimes, todos são culpados, do topo à base. Uns por serem os autores ideológicos das chacinas, outros por serem os autores materiais. Por conseguinte, o argumento sobre o excesso de zelo é abominável e logo ganha direito a enfileirar ao lado das afirmações mais torpes produzidas por ex-ditadores.


Um dos melhores exemplos é o general Videla, da Argentina. Confrontado com os quesitos de acusação no tribunal que o julgou, refugiou-se de maneira taxativa no mesmo argumento. Ele não tinha culpa, a responsabilidade recaía naqueles que em baixo, na hierarquia do poder, haviam incorrido em excessos isolados.


Creio ser arriscado desculpar Agostinho Neto. Isso equivalia a emparelhá-lo com líderes frágeis que mandam pouco, pelo que seria de supor que ele não sabia das atrocidades. Neto de modo algum se ajusta a tal retrato. Ele assemelhava-se a Argos, personagem da mitologia grega, um gigante de cem olhos que, mesmo a dormir, se conservava vigilante com metade dos olhos.


Nada lhe escapava. Encerro com esta pergunta: doravante qual vai ser a posição dos dirigentes de Angola a respeito do 27 de Maio? Vão continuar a amortalhar no silêncio a memória desse passado tenebroso e a ser cúmplices de tantos crimes, ou vão ter a coragem política de finalmente redimirem o país e o MPLA de tantos opróbrios? Senão se fizer isto, a nossa História, será — parafraseando Günter Grass, escritor alemão — como uma retrete entupida: “Puxamos o autoclismo, puxamos, mas a porcaria continuará a vir para cima.”

*Historiador angolano