Luanda INTRODUÇÃO. As terceiras eleições gerais em Angola estão às portas. Para o efeito assistimos a uma mobilização geral da sociedade angolana em vários níveis de participação (partidos políticos, associações cívicas, organizações não-governamentais, instituições do Estado, igrejas, autoridades ditas tradicionais, etc.). Cresce cada dia o nível de expectativa em relação ao dia D. O número de eleitores registados, cerca de oito milhões, promete eleições disputadíssimas. Nota-se que existe uma vontade geral dos povos de Angola em participar desse pleito eleitoral com consciência patriótica e cívica bastante acentuada.

 

Fonte: Club-k.net

Entretanto, embora tenhamos de registar estes aspectos positivos, existem ainda muitas sombras sobre o processo de preparação, mormente no que concerne às garantias e liberdades políticas. Este aspecto preocupa obviamente os cidadãos mais atentos que seguem sistematicamente o desenrolar do ambiente político interno neste período preparatório. Por isso, o grupo de reflexão da sociedade civil para as eleições, sob a égide da Open Society, promove esta mesa redonda no intuito de avaliar os níveis de eficácia da preparação das eleições, medir o termómetro do ambiente político interno, acautelar os aspectos polémicos que podem influir negativamente na lisura e transparência das eleições, comprometendo isso facto os resultados das urnas.

Neste sentido, a minha comunicação vai ser orientada dentro dessas balizas e pretendo apresentar uma reflexão pessoal sobre os desafios gerais que se apresentam hoje na preparação das terceiras eleições em Angola tendo como pano de fundo alguns princípios fundamentais que enformam a teoria e a prática democrática.

1. Democracia: uma exigência da natureza social do Homem

A democracia vai-se impondo nos nossos dias não apenas como a forma mais moderna de governo, mas ainda como aquela que mais se adequa à natureza e vocação social do homem, na medida em que é o sistema que melhores garantias oferece ao exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos. Todavia, do ponto de vista da filosofia política podemos interrogar se a democracia é uma exigência fundamental ou apenas uma forma possível de governo dentre tantos outros. Noutros termos, pode-se justificar a democracia como o único modelo e o ideal político-social eticamente mais conforme à dignidade da pessoa humana?

A democracia encontra a sua legitimidade última na sua finalidade que é ajudar o homem a ser feliz e a realizar-se plena e solidariamente como animal político. Neste sentido, o senso comum da gente e a aspiração dos povos, as reflexões da filosofia política e as pesquisas da ciência política coincidem hoje nesta tese: A forma democrática de Estado e de governo é conforme à natureza do Homem; é a que melhor protege e promove a dignidade da pessoa dentro da comunidade política; pelo contrário, regimes totalitários, tirânicos ou ditatoriais são a negação da essência do Homem. Neste sentido dizia o autor Reinhold Niebuhr:  «A capacidade humana de justiça torna possível a democracia, mas a inclinação do Homem para a injustiça torna a democracia necessária» (in Children of Light and Children of Darkness)

Entretanto, não podemos assumir a democracia como modelo exclusivo, perfeito e insubstituível. Seria de algum modo limitar a inteligência humana. O que se pretende dizer é que por enquanto é o sistema mais consentâneo com o Homem e a sua vocação social, mas não se exclui a possibilidade de outros modelos. Aliás, a própria democracia não é um modelo prêt-à-porter; ela constrói-se segundo a dinâmica socio-política e cultural de cada povo.


A democracia, tal como a conhecemos hoje, é produto de alguns eventos importantes que marcaram o curso da História da humanidade entre o século XVIII e o século XX como a Revolução Francesa (1789), a Revolução Americana, as duas Grandes Guerras Mundiais, etc. A revolução francesa de algum modo foi inspirada nas ideias dos filósofos do iluminismo (Jean-Jaques Rousseau, Voltaire, Lacordaire, Descartes, etc) sobre a liberdade política e sobre os direitos civis.

Essas ideias iriam constituir então os pilares da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão. Nasce assim o princípio da cidadania participativa e da "respublica" enquanto espaço do interesse de todos e não mais de uma elite de privilegiados como no ancien regime. A política sai definitivamente do domínio privado (elites) para o público.

Quanto à revolução americana, em 1775, as colónias inglesas da América do Norte revoltaram-se contra o regime fiscal imposto por Londres; assim, sob a liderança do carismático George Washintgton, as forças americanas desencadearam uma guerra contra as tropas da coroa britânica.

Esta guerra durou seis anos e no final foi proclamada a independência americana (1783). Entretanto, os fundadores da independência americana desde logo ergueram o estandarte da liberdade de cada indivíduo (até dos escravos negros: todos os homens nascem livres e iguais!), criaram uma república constitucional moderna, baseada no respeito dos direitos humanos, tal como tinham sido definidos pelo movimento iluminista europeu: uma república alicerçada na Declaração de independência, redigida por Thomas Jefferson em 1776, e na constituição federal elaborada em 1787.

Depois das experiências trágicas das duas Grandes Guerras (1914-1918 e 1939-1945), o mundo ocidental mobilizou-se em favor da construção de sociedades democráticas em detrimento dos regimes tiranos e totalitários. A famigerada era da guerra fria (1945-1990) foi nada mais nada menos que o conflito entre dois modelos de sociedade política diametralmente opostos, para além de outras causas geopolíticas e geoestratégicas que animavam então as duas superpotências da época.

Enquanto o ocidente reivindicava o papel de paladino das sociedades democráticas e liberais estruturadas dentro de um estado de direito e de igualdade social, para o bloco do leste, capitaneada pelo império soviético, sobrava o epíteto de sociedade socialista estruturada dento de um estado totalitário.

Por força das alianças estratégicas conjunturais e geopolíticas, Angola enveredou desde os primórdios da sua independência pela via do socialismo, tendo edificado um estado monolítico, monofásico e monocórdico em torno de um partido político.

Porém, os ventos da perestroika de Gorbachov (finais da década de 80), a queda do muro de Berlim e o conflito interno entre a GOVERNO e UNITA trouxeram o advento das reformas políticas em Angola. Era a consagração da democracia e do estado do direito, não só em Angola, mas também noutros países africanos, pelo menos formalmente.

Há um aspecto curioso que devo aqui realçar. As reformas políticas quando são engendradas pelo mesmo poder político da situação e não por uma mudança revolucionária ou golpista têm pelo menos o condão de reconhecer que o seu arquétipo está ultrapassado e já não serve. Neste sentido, se Angola está hoje a trilhar o caminho da democracia significa de algum modo que os angolanos acreditam na democracia e investem nela como modelo politicão que melhor responde aos seus anseios de liberdade, igualdade, justiça e desenvolvimento.

Entretanto, a democracia tem, a meu ver, seis pilares fundamentais: 1) Pluralismo; 2) Participação; 3) Representação; 4) Separação de poderes; 5) Alternância do poder; 6) Eleições.

1. Pluralismo. É um princípio-chave do sistema democrático que pela sua natureza se contrapõe ao monolitismo político dos sistemas autocráticos abrindo-se à diversidade de opiniões e de correntes, às contradições filosóficas ou políticas, etc. A génese das democracias liberais contemporâneas fundamenta-se justamente no princípio de base de que a diferenciação, e não a uniformização, constitui o fermento e a seiva vital da convivência humana. Os poderes totalitários e autocráticos suspeitam de tudo o que acham ser ideias diferentes ou contrárias. Criam logo fantasmas de ameaças contra a segurança do Estado, fonte de desordem e de discórdias, etc.

2. Participação. A palavra participação evoca por definição um ´´tomar parte de´´, uma presença consciente e activa.  Trata-se de um direito natural do cidadão que o Estado apenas reconhece, promove e tutela. A participação permite construir uma cidadania activa e actuante. Sem participação popular não há democracia.

3. Representação. As democracias de hoje já não se compadecem com as práticas democráticas atenienses onde o poder era exercido directamente pelo povo (cerca de 320 mil habitantes no tempo de Péricles). As mulheres, os menores, os estrangeiros e os escravos não tinham direito de voto. A democracia nesse contexto era uma espécie de auto-governo do povo (demos). Nas democracias contemporâneas, muito mais complexas, o princípio da representação passou a ser a ´´única´´ expressão da soberania popular. O povo, ao eleger, delega o poder aos seus representantes. Estes devem agir em nome do povo, pelo povo e para o povo. 

4. Separação de poderes. Este é um dos instrumentos indispensáveis para o controlo do poder dentro dos limites democrático-constitucionais. Essa divisão de poderes tem duas raízes: a primeira procede da ´´engenharia´´ do próprio governo, da necessidade de levar a cabo uma separação entre as diversas funções e competências na divisão do trabalho. Neste aspecto, Aristóteles teve o mérito de classifica-las em: função legislativa, executiva e da administração da justiça. A segunda raiz procede do estado formado por corporações; trata-se de uma exigência segundo a qual as decisões do governo e da administração preparam-se e controlam-se de forma corporativa. Nos regimes democráticos põe-se um acento forte sobre a divisão dos poderes. Por um lado, porque se evita a confusão das funções políticas e, por outro, porque serve de regulador de competências nos órgãos do poder (Parlamento, Governo, Magistratura). É consabido que o poder absoluto corrompe absolutamente.

5. Alternância do poder. Na democracia não existe nem poder vitalício nem poder dinástico ou hereditário. O poder é limitado no tempo da sua duração com mandatos bem definidos. Esta é uma regra de ouro para que a democracia não se transforme em caricatura, como está acontecer em Africa. O princípio da alternância do poder é um antídoto eficaz contra o mito dos  "salvadores da pátria", "fundadores da nação", "arquitectos ou engenheiros da paz"; estes fizeram do poder uma recompensa pessoal pelos sacrifícios heróicos "consentidos", servindo-se da adulação para alimentar a sua megalomania e o culto de personalidade.

6. Eleições. O exercício eleitoral é um instrumento fundamental do regime democrático através do qual os cidadãos são chamados a escolher quem deve governar, exercendo assim a sua soberania através do voto. Em quase todo o mundo hoje passou a ser um dogma da democracia a eleição universal, igual, livre, secreta e imediata. Esta técnica remonta aos monges medievais que nos seus conventos se viam no dever de eleger os seus superiores. Uma vez que não se podia recorrer ao principio dinástico-hereditário nem ao principio da força, não restava outra solução que a de eleger votando. Mas o superior era um chefe absoluto por isso a escolha era grave. Assim, aos monges devemos o voto secreto e a elaboração de regras precisas do voto maioritário que se estendem até hoje aos conclaves da eleição papal.


Estes princípios devem servir de barómetro de observação e de avaliação sobre os actuais níveis de democraticidade da sociedade angolana.


2. Eleições em Angola: garantias e liberdades políticas.

Tudo quanto disse acima deve levar-nos a deduzir que as eleições são o ponto de partida e o ponto de chegada da democracia. O voto é de algum modo uma sanção positiva ou negativa em relação ao poder vigente e uma aposta num novo projecto. Neste sentido, os angolanos estão a preparar-se para sancionar a legislatura de 2008 a 2012 onde pontifica o MPLA como partido maioritário que governa o país e ao mesmo tempo fazer uma aposta ou na continuidade ou na mudança.

Entretanto, o processo eleitoral tem conhecido algumas polémicas que colocam em causa a sua transparência e a garantia de serem justas e livres. Menciono aqui apenas algumas das polémicas mais acirradas entre a oposição e o executivo angolano: denúncias de falta de transparência do processo de actualização do registo eleitoral, acusação da recolha de cartões eleitorais pelo Partido no poder, o caso Suzana Inglês que se arrastou por muito tempo, a exigência da oposição de uma auditoria ao FICRE, a controversa exclusão de formações politicas conceituadas da corrida eleitoral (PP e BD) e, nos últimos dias, o voto antecipado e o voto no exterior (felizmente descartados).

Por tudo isto, o ambiente que antecede as eleições está eivado de desconfianças por parte das forças políticas da oposição e da própria sociedade civil em relação ao partido-governo que tem na mão a faca e o queijo, como sói dizer-se. Vai-se tornando moda em África que quem organiza as eleições é quem as deve ganhar…

Quando isto não acontece, então inventam-se mecanismos de partilha do poder ou governos de unidade nacional. O espectro da fraude paira já na cabeça dos “iluminados” criando cepticismo e até descrédito em relação aos resultados do próximo pleito eleitoral. Os próprios membros do partido-governo não escondem o seu triunfalismo exacerbado: «somos um partido de milhões e não precisamos da fraude para ganhar as eleições».

Entretanto, para além desses aspectos ligados ao processo eleitoral, registam-se problemas muito graves em termos de liberdades políticas. De algum tempo a esta parte, assiste-se a manifestações populares de descontentamento em relação ao desempenho do executivo, protestos contra a longevidade política do actual PR e uma chuva torrencial de críticas e denúncias da imprensa privada e das organizações da sociedade civil sobre os abusos do poder, a violação sistemática da constituição em matéria de garantias e liberdades fundamentais dos cidadãos, etc. O que se constata é que a intolerância política cresce na mesma proporção em que cresce o movimento de contestação ao regime.

Este ambiente está a criar preocupações e inquietações na opinião pública nacional e internacional. Existem receios fundados de um ambiente de violência pós-eleitoral, pois se a preparação está a decorrer num ambiente tenso é bem provável que o desfecho venha a descambar nas típicas violências estúpidas que já temos assistido em vários países africanos (Zimbabwe, Quénia, Cotê D’Ivoire, RDC, etc).

Neste sentido, esforços estão em curso no sentido da educação cívica e eleitoral dos cidadãos. Entretanto, a minha preocupação não está nestes, mas nos actores políticos que vão disputar o poder. Estes é que deveriam merecer acções de educação cívica e eleitoral. São esses os verdadeiros mentores das convulsões políticas que degeneram normalmente na violência gratuita quando não se respeita o veredicto do povo, defraudando as suas expectativas.


Conclusão

Estas são as primeiras eleições que se realizam dentro do novo contexto constitucional de Angola. Pelo facto, as responsabilidades institucionais dos órgãos do Estado na preparação e realização do pleito eleitoral são acrescidas sobretudo em matéria de transparência do processo e de imparcialidade.

Refiro-me aqui sobretudo ao papel Conselho Nacional Eleitoral (CNE), do Tribunal Constitucional, da Comunicação Social e de todos os outros órgãos que têm o papel de assegurar a realização do processo sem sobressaltos.

Entretanto, a sociedade civil tem um rol importante que não pode ser descurado. A nível da participação, como já disse anteriormente, a sociedade civil tem o direito de estar engajada e comprometida directamente neste processo porque não é um corpo estranho. Com efeito, o nível de participação política dos cidadãos muito depende da força e do dinamismo das organizações da sociedade civil. Aqui estamos exactamente para este exercício: promover eleições livres, transparentes e participativas.

*Texto apresentado durante a mesa redonda sobre “O estado do processo eleitoral em Angola”, realizada pela fundação Open Society, em Luanda, nos dias 24 a 25 do mês em curso.