Luanda. Introdução. Falar da corrupção hoje, mais do que nunca, passou a ser um lugar-comum. O termo corrupção ganhou plena carta de cidadania na sociedade angolana se atendermos à sua popularidade. Do ponto de vista da filosofia da linguagem é importante descortinar o que está por detrás das palavras, sobretudo, quando elas ganham consagração dentro de uma sociedade; noutros termos, a palavra ´´corrupção´´ já não pode ser usada hoje no nosso contexto como uma palavra qualquer, inócua e sem algum impacto social.

 

Fonte: Club-k.net

De facto, a sua omnipresença na nossa comunicação quotidiana desvela uma realidade tenebrosa que jaz na nossa forma mentis, talvez mais na esfera do subconsciente do que propriamente na esfera consciente. Ora, a nossa forma mentis molda de alguma maneira o nosso modus operandi.

O homem age segundo aquilo que pensa, acredita, deseja e observa no seu ambiente social. Em termos ontológicos (filosofia do ser) o agir humano é consequência do ser (agere sequitur esse). O que vem a significar esta premissa? Se a corrupção deixou de ser uma simples palavra, passando neste caso a ser uma realidade, deduz-se que a corrupção é um modus operandi e que existem pessoas que praticam (activa ou passivamente), promovem e arquitectam a corrupção. Noutras palavras, há corrupção lá onde existem corruptos. Na perspectiva sociológica, a corrupção em Angola hoje já é um fenómeno social. Fenómeno, na sua etimologia grega (phainômenon), significa o que se manifesta, o que aparece.

Mas quando dizemos fenómeno social aqui não é apenas porque é algo que existe e se manifesta na sociedade angolana (uma realidade constatável e quantificável através de estatísticas), mas também porque trata-se de uma realidade que vai assumindo formas subtis nos nossos costumes sociais do dia-a-dia, o que abre espaço para reflectirmos como é que o fenómeno se está a inserir na estrutura cultural, moral e politica da sociedade angolana.

Na origem da palavra corrupção temos corruptio (do latim) que poderíamos traduzir por degeneração. Ontologicamente seria a perda das características do ser (ontos) ou uma descaracterização da natureza das coisas.

Atendendo a todas essas premissas, este trabalho é acima de tudo uma reflexão sobre o fenómeno, suas incidências e seus desafios. Não é um trabalho de cunho sociológico, jurídico ou económico. Não são campos do meu domínio. Pretendo limitar esta abordagem num quadro antropológico e moral.


1. Status quaestionis.

O fenómeno da corrupção em Angola está a suscitar nos últimos anos alguma inquietação na sociedade tendo em conta as proporções alarmantes e os contornos perigosos com que se apresenta. Efectivamente, as denúncias de corrupção (sobretudo aquela da classe politica no poder) feitas por académicos, religiosos, políticos, jornalistas, activistas cívicos, organizações não-governamentais nacionais e estrangeiras multiplicam-se ad nauseam.

Nos jornais, na internet e na rádio vamos acompanhando a publicação de matérias relacionadas com a corrupção em Angola. Também já vão sendo produzidos alguns estudos sobre o fenómeno. Infelizmente, tendo em conta o carácter desta comunicação não vou aqui fazer uma revisão da literatura disponível sobre este assunto.

A minha preocupação é produzir aqui o meu próprio pensamento sobre o assunto. Por isso, coloco esta abordagem a nível de opinião e não de teoria científica. Mais do que trazer respostas ou receitas aos problemas que vamos esmiuçando trago mais ´´provocações´´ no intuito de contribuir para o debate que se impõe sobre a matéria. O mérito dos filósofos não está tanto nas respostas que nos dão, mas nas questões que levantam.


1. A Corrupção: entre o mito e a verdade no contexto antropológico angolano.

O mito nasce na história como uma concepção do cosmos baseada no pensamento pré-filosófico, segundo os gregos, ou pré-lógico para Levy-Bruhl ou ainda pré-cientifico para o positivista Augusto Comte. É um modo primitivo de explicar a realidade circundante. Neste sentido, o mito não é necessariamente um ens rationis (ente da razão) da metafísica, isto é, algo existente apenas na mente humana.

Ele está mesmo ligado com alguma realidade existente. Pensar que uma trovoada é uma gargalhada de Zeus ou uma tempestade é a fúria de Poseidon para os gregos é o mesmo para a nossa cosmovisão negro-africana quando se pensa que por detrás de vários fenómenos naturais estão os espíritos dos antepassados que interagem continuamente com o mundo dos viventes.

Por conseguinte, o vício não reside na realidade existente, mas no seu entendimento e na sua explicação. Chamo a isto como um vício gnoseológico (filosofia do conhecimento) da interpretação da realidade. Este vício acaba por provocar uma distorção da realidade pecando assim contra o princípio da veracidade que S. Tomás de Aquino definiu como adequação do intelecto com a coisa (adequatio intellectus ad rem). Quando falta essa concordância entre o intelecto e o objecto é claro que a verdade vira mito.

É neste sentido que a mentalidade mitológica difere substancialmente da mentalidade científica. Esta última permite-nos descortinar racionalmente a realidade e compreender os fenómenos segundo a sua natureza e tipicidade, enquanto o mito não passa duma abstracção não verificável da mente humana.

É aqui que coloco a pertinência do meu quesito: a corrupção em Angola é mito ou verdade? Como se pode compreender que se fale tanto disto, que se levantem tantas denúncias de supostos casos de corrupção e não se passe disso? Nem os denunciados vão as barras do tribunal nem os denunciantes são processados por calúnia contra aqueles.

Foram forjadas leis contra a corrupção e até aventou-se a criação da alta Autoridade contra a corrupção. Mas na prática há uma grande cortina de ferro entre as palavras e as acções. Isto significa que estamos diante de uma distorção da verdade: todos (inclusive o mais alto mandatário da Nação angolana) admitem a existência da corrupção, mas não há corruptos.

Estes não têm nomes, não têm rostos, não têm identidade. Provavelmente vamos ter que admitir como bons africanos zelosos dos nossos atavismos ancestrais que os que praticam corrupção em Angola são espíritos desencarnados (sereias, as kiandas, etc).


3. Incidências morais.

A corrupção é fundamentalmente um problema moral e como tal é um acto intrinsecamente mau. Existe um processo psicológico-moral no interior da pessoa que vai desde a intenção de praticar a corrupção ao acto propriamente dito. Neste sentido, temos o conhecimento prévio da matéria ou prévia advertência do carácter ilícito do acto, deliberação da vontade para realiza-lo (livre arbítrio) e finalmente a decisão consciente de o fazer sem qualquer coação externa.

Estes são os requisitos que levam a que um determinado indivíduo seja imputável moralmente. Diante deste processo está a determinação do carácter ilícito do acto que interpela a consciência do indivíduo. É partir da consciência onde se faz a ponderação da gravidade do acto quer do ponto de vista moral como legal.

Neste sentido, do ponto de vista moral, o indivíduo não é corrupto porque pratica a corrupção, mas, pelo contrário, pratica a corrupção porque é corrupto: agere sequitur esse. Quando a pessoa vai praticar actos dessa natureza supõe-se que a sua forma mentis e a sua vontade estão já plasmados numa dinâmica de degeneração de princípios e valores morais.

A degeneração moral atinge o âmago da dignidade da pessoa levando-o a perder virtudes sociais e humanas como a honestidade, a probidade, a solidariedade, o sentido de justiça distributiva, etc. Em seu lugar encontramos contra-valores como o egocentrismo, a desonestidade, a falsidade, a hipocrisia, a kleptomania, a ambição desmesurada, a perfídia, etc.  Por conseguinte, uma pessoa corrupta é alguém que deliberadamente decide colocar-se à margem da pauta deontológica (DEVERES) e axiológica (VALORES) que conformam a estrutura antropológica da sociedade.

Quando esta realidade é multiplicada por milhões de cidadãos de uma nação atingindo as instituições públicas ou privadas, passa a ser uma praga social que abala os fundamentos filosóficos e éticos da constituição do Estado como espaço de coabitação e de coexistência humana.

A corrupção lesa a justiça social e pode transformar-se num factor de instabilidade social e de conflitos ( violentos ou não ). O pobre não pode aplaudir quem lhe rouba o pão. Mas o poderoso quer ser adulado e temido pelo pobre.

Ele não combate a pobreza, combate o pobre que é um incómodo. Assim, nasce grande parte dos conflitos sociais que por vezes desembocam em convulsões políticas. Veja-se o caso da revolução francesa. É o clássico exemplo do perigo que corre uma sociedade dividida entre os privilegiados e os deserdados. A revolução torna-se nestes casos uma via quase inevitável.


4. Desafios sócio-antropológicos.

Todas as sociedades assentam numa base antropológico-cultural. Nenhuma sociedade nasce por geração espontânea. O homem está no vértice da origem da sociedade. Na História das Ideias políticas aparecem vários pensadores que se debruçaram sobre a origem da sociedade política. Dentre tantos, destaco aqui Jean-Jeacques Rousseau. Este não só explica com a sua tese contratualista a origem da sociedade política como também se debruça sobre a natureza moral do homem. Assim, a sociedade política é produto de um contrato entre os indivíduos da espécie humana que num determinado estádio evolutivo deixaram para trás o ´´estado natural´´ onde cada um agia em função dos seus interesses. Por conseguinte, a sociedade política ou o estado passa a ser a objectivação do interesse comum dos indivíduos marcados pela solidariedade de origem e pela solidariedade de destino.

O Estado assume-se então como o único com as prerrogativas do uso da força ou da coação para a salvaguarda do interesse de todos. É uma prerrogativa inalienável e intransmissível a outros entes. Entretanto, o mesmo pensador defende ainda que o homem não nasce mau (corrupto), mas é a sociedade que o corrompe. Será? Gostaria de saber quem corrompeu Caim para cometer o primeiro fratricídio bíblico. Se a sociedade é que corrompe o homem, então quem corrompe a sociedade?

Quero tirar daqui algumas ilações sobre o fenómeno em estudo. A primeira é que a sociedade é antes de tudo uma realidade antropológica por ser uma emanação da natureza bi-dimensional do ser humano: ipseidade (do latim, ipsis=próprio) e alteridade (do latim, alter=outro). A ipseidade responde pela identidade individual (única e irrepetível) de cada um de nós plasmada pela natureza.

A alteridade é o carácter social do ser humano aberto para os demais: o ser humano só se realiza com os demais por isso o seu viver é um “conviver” e a sua existência é um ´´coexistir´´. A segunda ilação deixa entrever que a verdadeira vocação (finalidade) da sociedade é a realização plena do ser humano em todas as suas prerrogativas ônticas e existenciais. Neste sentido, é um paradoxo filosófico o estado-leviatão ou titânico de Thomas Hobbes.

Na verdade, conceber o estado ou a sociedade política como um monstro que devora os seus próprios cidadãos não corresponde à verdade teleológica da existência desta. A existência da sociedade ou do estado só faz sentido quando concorre para a felicidade do homem. Ora, como pode uma sociedade corrupta concorrer para a felicidade do homem? Que tipo de felicidade se pode construir na base da corrupção? A corrupção é a negação da verdade sobre o homem autêntico.


5. Desafios políticos.

A sociedade angolana depara-se com o fenómeno da corrupção generalizada em quase todos estratos sociais: na política, na economia, no ensino, no desporto, nas esferas castrenses e, até, nos templos sagrados. Estamos então diante de uma de ´´sociedade corrompida´´ na medida em que é um fenómeno que cresce exponencialmente como cancro que corrói irreparavelmente todo o tecido social minando a sua estrutura sociológica.

Angola está hoje a dar passos no caminho da reconstrução nacional e supõe-se também que a reconciliação nacional está em marcha depois de longos anos de conflito interno. Na minha óptica, construir estradas, pontes, escolas, caminhos-de-ferro, portos e aeroportos; erigir universidades, cidades-satélites ou condomínios de luxo, convenhamos que é tudo necessário; todavia, a minha preocupação prioritária reside na reconstrução antropológica do Homem angolano.

Esta preocupação surge nas minhas análises de uma constatação: o Homem angolano vive uma crise existencial profunda e os reflexos são o seu depauperamento antropológico. A maior pobreza do angolano não está no TER, mas no SER. A corrupção é prova evidente desse esvaziamento ôntico-antropológico.

Durante as décadas perdidas do conflito interno angolano houve um desajustamento estrutural do tecido social angolano. Existe uma máxima que diz que o Homem deve ser a medida de todas as coisas. Isto significa que a medida de todas as reformas políticas, económicas e sociais em Angola deverá ser o Homem Angolano.

Na perspectiva da reconciliação nacional, a corrupção é um autêntico travão. Em primeiro lugar porque ela manifesta-se no enriquecimento fácil, rápido e ostensivo das principais figuras públicas que governam o país. Em segundo lugar porque estamos diante do problema de justiça social distributiva: a grande maioria dos autóctones de Angola sobrevive na mais abjecta miséria enquanto uma minoria do país controla e ostenta galáxias financeiras resultantes da delapidação do erário público.

Numa análise sociológica objectiva pode-se descortinar aqui um factor real de conflito e convulsão social que pode ser latente ou patente. De facto, a insatisfação material leva ao exacerbamento dos instintos lupinos que jazem no Homem e qualquer um de nós pode ser vítima disso.


6. Boa governação e os objectivos do Milénio

Angola é um país com imensas e fabulosas potencialidades em termos de recursos. Fala-se de um crescimento económico exponencial nos últimos anos, apesar da desaceleração relativa registada no ano de 2011.

Paradoxalmente, não me parecem ser animadores os indicadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em termos de qualidade de vida dos angolanos, longevidade, acesso aos cuidados primários de saúde, assistência médica e medicamentosa, acesso a água potável e usufruto da energia eléctrica, taxa de escolarização obrigatória, taxa de mortalidade materno-infantil, habitação condigna, saneamento básico, etc. Alguns destes aspectos constam dos Objectivos do Milénio (aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas), a serem atingidos até 2015:

a)Redução para metade da pobreza extrema e da fome;
b)Educação primária universal
c) Promoção da igualdade de género
d) Redução da mortalidade infantil em dois terços;
e) Redução da mortalidade materna em três quartos;
f) Inverter a tendência de disseminação da SIDA, malária e tuberculose;
g) Assegurar a sustentabilidade ambiental;
h) Desenvolver parcerias globais para o desenvolvimento, tendo estas como pontos principais o comércio, ajuda ao desenvolvimento e redução da dívida.


Das análises internacionais se infere que o desenvolvimento Humano tem dois eixos importantes: o crescimento económico e o bem-estar das populações. Quando existe crescimento, mas não há desenvolvimento, alguma coisa estará a falhar e no meu entender pode ser o vírus da corrupção institucionalizada. Este é um factor de estrangulamento de qualquer crescimento económico, funcionando como um freio ao desenvolvimento sustentável. Esta premissa coloca desde logo o problema da boa governação.

O conceito de boa governação tem certamente muitas nuances. Quando foi introduzido no vocabulário político no inicio da década de 90, estava intrinsecamente associado ao fenómeno da corrupção política. Nos nossos dias o conceito passou a ser definido pelos peritos como «a forma de exercício do poder num país caracterizado por aspectos como a eficiência, a prestação de contas, a participação da sociedade civil e o Estado de direito (Estado que funciona segundo o principio da separação dos poderes, do governo democrático eleito e respeitador dos direitos humanos), que revelam a determinação do governo em utilizar os recursos disponíveis em prol do desenvolvimento económico e social» (Elisabeth Cortes, Cultura, Desenvolvimento e Política Externa, 2006). Noutros termos, o conceito tem agora uma visão mais positivista e construtivista, pois boa governação não é apenas um problema de corrupção.

Todavia, na óptica da cooperação internacional, combater a corrupção, adoptar medidas macroeconómicas saudáveis e colocar em prática sistemas eficientes e responsáveis para utilização dos recursos públicos tornaram-se domínios de acção considerados fundamentais para os doadores de modo a assegurar que os recursos externos não sejam desperdiçados.

Para além da dimensão económica, o entendimento actual daquilo que é o desenvolvimento humano exige uma governação democrática, que corresponda às necessidades das pessoas mais carenciadas. A par de políticas e instituições que assegurem serviços públicos eficientes, são necessárias instituições e regras justas, bem como processos de decisão que dêem uma palavra às populações e lhes permitam responsabilizar as autoridades. Neste sentido, a nível regional estão em curso esforços tendentes a reforçar o papel dos governos no âmbito da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) adoptada pela União Africana em Março se 2001.


Conclusão

A corrupção é um mal que é preciso extirpar em todos os sectores da vida social, política e económica. Há quem defende que o fenómeno da corrupção não é apanágio de Angola. Concordo. Todavia, a diferença está em que noutros países o fenómeno está controlado na medida em que todos os casos de corrupção que vêm a público são encaminhados para os órgãos judiciais para seu tratamento, mas em  Angola não é o caso; porque os órgãos judiciais continuam ainda reféns dos “intocáveis”,  pelo que todas as denúncias acabam por ser engavetadas ou por alegada falta de provas ou por suposta incompetência em investigar aqueles que estão acima da constituição angolana: os deuses do Olimpo. A famosa lei da probidade administrativa de facto só tem um único mérito: a sua inovação. Daí em diante tudo continua na mesma.

Tenho certeza que o património declarado documentalmente pelos titulares de cargos públicos junto do tribunal supremo, passados cerca de dois anos, já não é o mesmo. Os negócios promíscuos continuam de vento-em-popa e os impérios financeiros engordam a cada dia. Neste sentido, deixo aqui esta questão: como podemos reconciliar uma sociedade dividida entre ricos e pobres, poderosos e deserdados da Angola profunda?

*Texto apresentado na II Conferência nacional sobre transparência e boa governação, sob a égide da AJPD, nos dias 25 a 26 do corrente mês, em Luanda.