Luanda – Hoje estou de luto profundo, morreu o meu amigo (o irmão que a vida me deu): Aguiar dos Santos. Não sei o que escrever! Para além de lágrimas o que tenho para te dar agora depois do telefonema do Nandito (Fernando Pacheco), a anunciar-me a tua morte. Não tenho nada, só tristeza e choro! Aos nossos amigos comuns do "Lares Kandimbas" deixo a grave notícia e para sempre o poema que te dediquei, já faz algum tempo e que to mostrei há cerca de dois anos.

Fonte: Club-k.net

Hoje, a nossa viagem pára aqui! Nunca mais vamos viajar no comboio de Malanje, nem no caminhão do progresso que levantava "bôo no Luchuchu" (como dizia o tuga camionista que nos negou boleia nele dia, dos idos de 1970). A nossa revolução social fica sem mais uma voz. Jamais poderei contar com a tua memória infalível para pormenores da nossa vivência. Kandandu eterno!

Eis o poema:

Kunimita, dikota e voz
Ao meu amigo Joaquim Manuel Aguiar dos Santos


I. Foi no tempo em que todos os comboios iam dar a Malanje e o ASA, montado na magia das pernas arqueadas do brinca-n’areia, era campeão absoluto do Girabola. Chegou com a sua mala de folha de flandres colorida de flores de todas as cores. Desde então partilhamos a paixão pela Virinha mas deixei a porta aberta ao seu modo desajeitado, tropeçando nas próprios pés, para o empurrar para frente na hora do terço, quando ela se ajoelhava diante do crucificado, e ele, apoiado em mim, a esperava no pátio da igreja da Maxinde, aproveitando a espera para compor os chinelos de praia que na algazarra de vir do Lar Académico se haviam desarticulado.

Pela minha mão sentiu o cheiro da fêmea, dançou de braço trocado e fez a primeira viagem de boleia numa MAN. Partilhamos o gosto das viagens e a ânsia de conhecer o país Dividimos as sopas da mana Helena, em Ndalatando, a tontura da garapa na fazenda do pai Kapipi e da mãe Todinha, as insónias nas estradas escuras, a aventura das lonjuras do vasto território nacional, montados em todos os camiões que o cruzavam.

(Mais tarde deixei que os cães rosnassem e me mordessem, inscrevendo a dor na carne profunda para que o seu nome não fosse revelado). Fomos por aí! Nesse tempo em que a nossa cidade se vestia de sul e o betão galgava degraus para o céu sob os olhos kandengues de nós. O meu amigo Joaquim lá estava, na sua estatura meã, empurrando o progresso bem alto.

II. Nesse tempo em que o café agressivamente se transformava em betão apressado e a cidade perdia o pitoresco do velho burgo colonial, o meu amigo Joaquim lá estava, contando os trabalhadores de tronco nú, Virados de costas para o mar, Fazendo crescer a cidade e nossas pernas a acompanhar.

Ao domingo, Luanda era uma festa feita De muitas festas: a cidade Se vestia de cores, brilhantinas e perfumes E nós (eu e o meu amigo Joaquim), antes dos sunkuras da Rádio Reparadora do Bié, Ficávamos presos ao vermelho Correndo nas pernas dele e dos outros No quintalão de São Paulo ou dos CTT e guardávamos no ouvido a histeria do treinador que gania, submergido no fumo de cigarros repetidos: “leva, leva, leva a bola, leva... ...para a mãe que te pariu” – e o Dudu pela lateral a leva para os fundos das redes.

Depois, Batíamos a fubada e nos dávamos à leitura de Kilandukilu - tudo isto acontecido e contado por Óscar Ribas – perpassado pelos nossos olhos ao ritmo do Tio Zeca - revisor da imprensa nacional - que nos dava a oportunidade de alimentar a nossa angolanidade de todos os dias.

Mais tarde - entre um e outro jogo do Calumbuze, O célebre Sport Calumbuze e Benfica, do Varzim do 48 ou do Futebol Clube do Mazozo lemos juntos “Bola com Feitiço”, de Uahenga Xitu. Como se víssemos um filme, no San Dumas, eu e o meu amigo Joaquim, um calulito dikota e voz - que é hoje uma das vozes da indignação nacional – levantamos âncora em busca do país interior. Era terra e mais terra, chuva boa e celeiros cheios, caminhões levantando voo, O mugido das vacas, o abacaxi suculento, o café em cereja E o verde do sisal em bandeira. O progresso se estendia por aí com muito peixe seco à mistura e xima de milho entre os dedos.

Um dia, eu e o meu amigo Joaquim, ainda havemos de voltar ao caminhão do progresso, levantando voo no Lussusso porque tudo isto nos está na alma, Faz parte de nós, Nada nos é estranho!
Nós somos aqui!

(in "Um sonho de kalunga", livro inédito)