Luanda – 1. A ESCOLHA PARA TE FAZER O ELOGIO FÚNEBRE. Aguiar dos Santos, nosso Kunimita querido, fui indicado para fazer este elogio fúnebre, seguramente porque mantivemos uma amizade infalível de 45 anos. Mas, tu sabes, porque to disse, eu não estava preparado para te perder tão cedo.

Fonte: Club-k.net

Queria manter esta amizade por mais anos, queria continuar a partilhar da nossa cumplicidade, baseada nos valores que construímos. Disse-te: isto ainda não acabou, nós ainda temos que continuar! Mais tarde, quando decidisses poisar a caneta, teria toda a honra em fazer um discurso de elogio, numa cerimónia de reconhecimento, do género “honoris causa”, para enfatizar o teu papel pioneiro no jornalismo interventivo e a tua condição de homem de convicções profundas e de jornalista incorrupto e incorruptível.

(Quantos milhares de dólares te foram oferecidos para mudares a tua linha editorial ou fazer favores à políticos ou empresários, publicando textos encomendados? Muitos! Mas tu negaste-os sempre, continuaste a fazer um jornalismo com base na ética e na defesa dos teus próprios valores!)

Avisei os que me escolheram que aceitava a grave missão com a condição de poder eventualmente não conter as lágrimas e chorar sem vergonha de ser um "homem que chora". Por ti, meu amigo querido, meu companheiro, meu irmão que a vida me deu, eu choro! Estou a chorar por dentro, estou destroçado, vou continuar a chorar até apaziguar a minha dor.


2. KUNIMITA UAFUÉ 

Quando o Fernando Pacheco (o Nandito, como tu sempre o tratavas) me telefonou a anunciar a tua morte comecei logo a chorar. Procurei transmitir a notícia a outros amigos comuns e não consegui fazer os telefonemas que queria. Decidi divulgar o acontecido nas redes sociais e quase nada consegui escrever. Queria ir ter com a Marlene (a Titi, como sempre a tratavas com muito carinho) e não consegui. Fiquei fechado no quarto o dia todo e a noitinha lá fui.

A Marlene recebeu-me à porta de casa, olhou para mim com um ar triste e disse: "Nelson, o Aguiar dos Santos já era!" Com as palavras da Marlene a ressoarem na minha cabeça, dei um kandandu ao Jacques dos Santos que me disse, com uma revolta profunda; "ainda não acredito que este gajo morreu!". Mas, a morte é irreversível, é um acto definitivo, e, neste sentido, a Marlene, na sua tristeza profunda, tem razão.

Porém, a memória pode nos salvar da morte. A memória vai nos permitir emendar vontades e regar a nossa árvore interior colectiva para dizer o que não pode morrer. E o Aguiar dos Santos está entre o que não pode morrer! Os filósofos isotéricos tinham razão quando diziam que àqueles que em sua vida constroem uma obra, atingem a imortalidade. É o caso do Aguiar dos Santos e nós somos testemunhas do seu percurso e da sua obra.

Através do nosso exercício de memória, uma memória que significa vida, que só pode ser uma memória apaziguada, o Aguiar dos Santos há-de ser sempre presente, mesmo se a partir de agora entregamos os seus olhos às formigas e passamos a conversar com ele à uma só voz: falando no nosso silêncio interior, e ele nos respondendo, através do eco da nossa memória, sendo assim, para sempre presente.


3. OS DOIS PERÍODOS DA SUA VIDA DE 57 ANOS

Podemos dizer que a vida do Aguiar dos Santos teve dois períodos; o primeiro de 1955 a 1975, e o segundo, de 1975 até hoje.

1. O primeiro período da sua vida durou 20 anos, correspondeu aos seus (e meus) anos verdes, de aprendizado da vida, de formação de sua personalidade, isto é, de uma autonomia de vontade. É claro que este período começa com o seu nascimento em Calulo (Aguiar dos Santos enchia a boca toda para pronunciar esta palavra, manifestando um orgulho desmedido pelo sua terra natal e acrescentava infalivelmente, o bairro do Mussafo) onde deu o primeiro grito de vida a 29 de Junho de 1955.

O ano do seu nascimento foi um ano de boa safra e de início de transformações sociais que caldearam as nossas vidas e tornaram decisivas as mudanças políticas, económicas, sociais e culturais que vão consolidar-se de forma definitiva na geração seguinte. Viriato da Cruz, teu poeta preferido (como tu te deleitaste quando descobrimos o poema "Namoro") dizia, Viriato percebeu isso com fina e distinta capacidade de observação, no seu poema "Makesu" quando diz que as novas gerações já não queriam mais o "Makesu" da vovó Ximinha e do "mano Felisberto" e só já tomavam café com pão ou comiam pão com chouriço.

Nós somos por isto da nova geração das ‘venida de alcatrão", mesmo se morávamos nos bairros escuros, lá onde não chegava a luz eléctrica (como diria o poeta Agostinho Neto).

Na verdade, do bairro do Mussafo, onde despontaram os teus primeiros dentes e deste os primeiros passos, vieste para Luanda, aos dois anos de idade, te instalaste no bairro dos Saiotes, acompanhando a tua mãe e o tio Zeca, teu querido padrasto que te encheu de carinho e te incutiu o gosto pela leitura. Alguns anos depois a família passou para as bês. A B4 devia, com todo o merecimento, receber o teu nome.

Aqui em Luanda fizeste a 4ª classe e o exame de admissão às escolas e ao liceu. Logo de seguida seguiste para Malanje, para o Lar Académico da Obra Social da Maxinde, onde aprendeste a ver o mundo com outros olhos e se enraizou em ti o amor pela nossa terra. A Maxinde era a nossa península, cujo istmo que nos ligava ao resto da cidade, era a rua 15 de Agosto.

Na Maxinde, o nosso mundo se alargou, incorporou outras realidades, conhecemos outras formas de estar e compreendemos a importância decisiva do saber. Ficamos a saber que havia o país Basco e que os bascos nutriam um forte sentimento de autonomia e, por isto, os padres bascos apoiavam facilmente a reivindicação independentista angolana.

Por outro lado, percebemos que o nosso Lar Académico integrava uma obra social que procurava dar aos mais pobres aquilo que o Estado colonial não lhes dava na educação, na habitação, na cultural, na formação profissional e no entendimento contextualizado do evangelho.

Na Maxinde havia integração social e a negação do racismo que grassava no resto da cidade. No Lar Académico encontraste uma nova família. Aí revelaste o teu talento para o futebol e te afirmaste como um médio armador lúcido e um pouco atrevido, dado que na tua estatura meã ousavas driblar mais-velhos corpulentos. Tu eras o orgulho de todos nós. Ninguém te conhecia pelo teu nome mas pela alcunha que te foi posta, logo a chegada: "Kunimita". Um nome que evoluiu, não sei bem por que caminhos, de Dikota e Voz, para Calulo e Voz. Tendo ganho estatuto permanente Kumina do Mussafo foi depois um dos teus heterónimos com que assinavas alguns dos teus textos no Agora.

Aguiar dos Santos abandonou o Lar Académico, na Maxinde, e voltou para Luanda, onde entrou na Escola Comercial e começou a trabalhar, aos 15 anos de idade, como apontador na construção civil. Ao mesmo tempo ingressou na equipa de juniores do Sport Luanda e Benfica. Era uma beleza vê-lo jogar, ao lado do Dudu Peres que era o goleador de então.

Nesse tempo, esta nossa capital se vestia de sul e o betão galgava degraus para o céu e Luanda perdia o pitoresco do velho burgo colonial e se transformava numa metrópole cosmopolita, empurrada pelo dinheiro do café que agressivamente se transformava em betão apressado. O amigo Aguiar dos Santos aí estava a empurrar o progresso bem alto.

Os fins-de-semana eram preenchidos pelo futebol, pela fubada habitual e pela leitura dos livros de Óscar Ribas, ajudando o padrasto, tio Zeca Amado, revisor da Imprensa Nacional e bom conhecedor da língua portuguesa, a fazer a revisão dos livros daquele escritor. Este exercício valeu-lhe um conhecimento maior da realidade angolana. Lembro-me, em particular, do Kilandukilo e de Tudo Isto Aconteceu.

Nas férias escolares era o período de conhecer o país interior. As viagens se repetiam e ia descobrindo a pluralidade que fazia o país. Outras terras, outras gentes e todas nossas! Nessas viagens aconteceram também alguns encontros decisivos e o contacto directo com a luta de libertação nacional. Escutar o programa "Angola Combatente" passou a ser quase obrigatório. Aquela emissão permitia sonhar com uma Angola melhor, livre da discriminação racial e social, permitia aspirar a um bem-estar colectivo e a uma maior integração social, traduzida no reconhecimento da nossa identidade cultural e na aceitação do nosso estatuto político próprio.

Quando se dá a Revolução dos Cravos, em Portugal, a 25 de Abril de 1974, Aguiar dos Santos já é escriturário dos Serviços Provinciais da Administração Civil, na cidade do Huambo. No ano seguinte, por razões de segurança, volta para Luanda e retoma os estudos.


2. Entretanto, é proclamada a independência e Aguiar dos Santos torna-se um dos construtores do novo país. Torna-se professor primário, na ideia de participar do processo de alfabetização. Entra para o jornal "Diário de Luanda", dando inicio a sua carreira de jornalista por mais de 36 anos.

Depois de ter feito uma formação intensiva de cerca de 11 meses, na Jugoslávia (fazendo parte do famoso grupo da Jugoslávia que a história do jornalismo nacional irá consagrar como uma das melhores fornadas de sempre) a sua escola foi, como ele próprio reconhecia, a ANGOP, a agência de notícias fundada na perspectiva da independência, poucos meses antes do 11 de Novembro de 1975.

Nesta agência, deu o seu saber no exercício das suas funções mas também formando novos e jovens jornalistas, tendo alcançado a função de chefe da divisão nacional, o que fazia dele responsável pela política nacional. Como todos os outros seus colegas, era voluntarioso e dedicado e trabalhava então sem horário, com muita dedicação e entrega e pouca recompensa material, embora fosse grande a satisfação e o sentido do dever cumprido.

Em 1982 (29/01/1982) Aguiar dos Santos casa com a Marlene e nesse mesmo ano nascem o Lukeni e a Naulila. A Marlene deu-lhe ainda mais duas filhas; a Sueli e a Adjane. Passa a trabalhar para a SADCC integrando a redacção que fazia a sua revista, aqui em Luanda.

Ainda antes do início do processo de transição para a democracia, no país, aproveitando os ventos de Moscovo (com a Perestroika e a Glasnost) e a queda do Muro de Berlim, juntamente com Maria Imaculada Melo, Luis Perinhas, Mateus Eduardo e eu próprio (a quem se junta depois Inglês Pinto), integra a comissão instaladora para a constituição da Associação Cívica Angolana (ACA) que viria a ser fundada a 25 de Janeiro de 1990, tendo como presidente, Joaquim Pinto de Andrade.

No ano seguinte participa do processo de fundação da Frente para a Democracia (FpD). Mas, a sua vocação não era a política partidária mas o jornalismo. Entra então no grupo que dá corpo ao surgimento do primeiro jornal privado, na Angola independente, o "Correio da Semana", depois de ter sido correspondente da RFI e de ter trabalhado na delegação da Agência France Press, em Luanda. Trabalhou também em alguns jornais portugueses e na revista Novembro e Jornal de Angola.

A partir de 1996 dá novos rumos a sua vida profissional e faz uma opção de fundo, deixa os órgãos públicos ou estrangeiros e dedica-se completamente ao projecto Global Média, a cooperativa de jornalistas associados que vai publicar o semanário Agora, de que se torna director, desde a sua fundação a 17 de Janeiro de 1997.

Vão ser 15 anos de muita labuta, sacrifício, porrada, ameaças de morte, coragem e persistência. O jornal Agora tornou-se um polo de atracção de várias correntes de opinião e de vários colunistas que sempre encontraram, sem nenhum tipo de censura, o seu espaço de afirmação. Aguiar dos Santos fazia questão de alimentar, no seu jornal, o debate contraditório que fosse capaz de contribuir para a formação do espaço público e para o progresso intelectual do país.

Todas as vitórias conseguidas por Aguiar dos Santos, na vida, foram por mérito próprio e era este exemplo que transmitia aos jornalistas da nova geração que passaram por ele. Aguiar dos Santos formou ou ajudou a formar muitos jornalistas da nova geração, entre os quais se contam os nomes de Ana Margoso (do Novo Jornal), Dani Costa (de O País), Francisco Tandala (director d’A Capital), Suzana Mendes (que foi directora do Angolense), Sebastião Panzo (jornalista e escritor), Júlio Gomes (jornalista do Agora), Jorge Eurico (do Semanário Angolense), Lucas Pedro (do Club-K), António Miguel (da Nova Gazeta), José dos Santos (d’A Capital), Manuel Nunes, entre vários outros. Todos se reconhecem como seus discípulos e muitos deles, ao tomarem conhecimento da sua morte, escreveram textos de gratidão e reconhecimento, assinalando a sua grandeza como homem e jornalista.

Há cerca de três anos a esta parte, Aguiar dos Santos, na sua coluna de opinião, no Agora, "Fio de Prumo", escreveu que "gostaria de morrer num dia em que o Agora já estivesse impresso e ser enterrado com o cheiro da tinta do jornal nos meus beiços". Desejo cumprido! Morreu numa sexta-feira, de manhã, já o Agora estava impresso. E vai a enterrar com os seus jornais e as bandeiras de Calulo e da República, como foi também seu desejo, expresso numa entrevista que deu.

Bem haja! Não te dizemos adeus, dizemos-te até sempre.
Recebe, meu amigo e companheiro, o meu kandandu eterno!