Luanda -  Com a tomada de posse do Presidente e do Vice-presidente da República, dos deputados e, portanto, com a constituição do novo Governo, resultado das eleições Gerais de 31 de Agosto último, vencidas pelo MPLA, por maioria absoluta qualificada, encerra-se, e ao mesmo tempo, abre-se mais uma página de ‘memórias históricas’ na democracia angolana.

Fonte: Club-k.net

Governar com justiça

Mais uma vez, o povo angolano pôde demonstrar ao mundo a sua crescente maturidade democrática, pela disciplina, tolerância e boa convivência que caracterizou o ambiente durante e depois do acto eleitoral. Deste modo, desmistificou-se o pessimismo da subtil poeira do Harmatam (o vento do deserto) que ‘em África’ envolve tudo ao ponto de torna-lo indistinguível. Obviamente, refiro-me ao cenário político de alguns Estados africanos que se afundam em conflitos post-eleitorais, desacreditando, deste modo, um dos aspectos da democracia expressa por meio da soberania popular.

Creio que esta seria a altura de se estabelecer algumas prioridades para manter em forma a ‘saúde’ da democracia, porque, como se sabe, a vida democrática não se limita apenas na realização das eleições periódicas. Parafraseando Alcide de Gasperi, um dos grandes estadistas italianos, é urgente educar o País ao método democrático para que se compreenda que “a democracia não é simplesmente um estatuto; a República não é somente uma bandeira:
mas é sobretudo uma convicção e um costume (...) de um povo! É necessário que nos convençamos que o regime democrático é verdadeiramente um regime muito duro, que exige um treino e uma vigilância constantes. Uma Nação para ser digna de conservar e promover as liberdades deve ser também compreendida num sentido de responsabilidade, que comporta riscos. Além de mais, uma Nação pode ser formalmente livre e democrática na sua Constituição, mas não é vital se para além das liberdades não cultiva a moral: a distinção do bem e do mal”. Portanto, uma democracia que não tenha fundamentos éticos corre o risco de se deteriorar e, até mesmo, de desaparecer no tempo.

Por outro lado, sabe-se bem que a democracia não se reduz num mero domínio da maioria. Para ser autêntica – a democracia - deve subordinar-se ao reconhecimento de certos valores éticos, que constituem as premissas vinculantes também para a mesma maioria, porque uma democracia sem valores se transforma facilmente em totalitarismo aberto.

É a lei natural (o direito natural) que nos pode conduzir para formas cada vez mais autênticas de democracia. De facto, a democracia pode contribuir na promoção de certos valores que podem, por exemplo, criar um equilíbrio na delicada fase da passagem do materialismo ideológico ao materialismo prático que tendencialmente vivemos hoje. Porém, atenção: uma democracia que careça de uma sólida base de valores éticos de referência pode concorrer para a destruição de outros valores, sobretudo aqueles inscritos no âmago do ser humano.


Pois bem! Governar é uma arte; mas, ‘governar com justiça’ não é somente uma arte,porquanto  converte-se num dever do qual um governo democrático não se pode isentar. O conceito de justiça contém um significado pluridisciplinar que pode ser analisado seja no âmbito da reflexão teológica, na especulação filosófica, ou ainda na problemática jurídica.

A justiça é, segundo a definição corrente de S. Tomás de Aquino, “a firme e constante vontade de dar a cada um o seu” (S. Th., II, II, q. 58, a.1). Dar a cada um o seu e ser justos são sinónimos. Existe uma íntima correspondência entre a esfera do direito e da justiça (II, II, q. 57, a.1). O termo ‘iustitia’ mostra a intimidade na relação dessa virtude com o direito ‘ius. Portanto, quando falamos de ‘direito’ e de ‘justiça’, pensamos antes de mais nos seres humanos e nas suas recíprocas relações.

Por isso, a ‘justiça’, mais do que uma virtude ao lado das outras, foi sempre entendida como a mais suprema dentre as virtudes morais; a que confere ânimo às outras virtudes. Porém, para uma mais correcta interpretação da justiça são necessários três elementos condicionantes: o ‘outro’ como finalidade; o ‘devido’ como objecto; e a ‘igualdade’ como medida.

A justiça, entendida quer no sentido jurídico assim como na esfera moral, subdivide-se em ‘justiça distributiva’ e ‘justiça comutativa’: a primeira exprime as obrigações da sociedade para com os seus membros, e a segunda regula as relações que se instauram entre os indivíduos, por exemplo, por ocasião de uma permuta. Existe ainda a ‘justiça geral’ ou se quisermos, a ‘justiça legal’, que exprime as obrigações dos membros para com a sociedade como um todo.

Em conclusão, governar com justiça não é nada mais do que exercer um poder público com zelo e sem excessos, para o bem da comunidade política. À propósito, creio ser oportuno recorrer a um adágio da sabedoria popular africana segundo o qual “o poder é como um ovo: se o apertas com muita força pode partir; mas, se não o seguras com cuidado, pode escorregar e partir igualmente”. É muito profunda e rica de significado a imagem que compara o poder a algo tão delicado como o ovo. O ovo traz dentro de si o gérmen da vida. E, efectivamente, quem detêm o poder numa determinada comunidade – grande ou pequena - tem nas mãos as vidas dos seus subordinados.

Isso parece ensinar que o poder de governar deve ser exercido sem dois excessos: o da severidade e o da passividade. Logo, o poder deve ser exercido com responsabilidade, lealdade e equilíbrio, que juntos são sinónimos de justiça.

*Director do Centro de Estudos Populorum Progressio
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