Luanda - Nao se trata, pois do filme do cineasta angolano Zezé Gambôa nem de qualquer obra de ficção resultante do gênio criativo de um qualquer cineasta, dramaturgo ou realizador. Não. Trata-se sim de um facto real ocorrido na noite ainda moça do dia 25 de Outubro de 2012 na zona de Viana, junto à bomba de combustível da Sonangalp (ou posto de abastecimento – PA, como costumava me corrigir uma amiga muito querida).

Fonte: Club-k.net

Em mais um desses dias em que fiquei sem carro (começa a ser cada vez mais frequente dada a idade avançada do meu “velho possante”, entenda-se, meu carro) não tive outra opção senão espremer-me nos confortáveis bancos dos nossos “azul e branco”. Passados os troços mais difíceis de engarrafamentos rijos entramos na parte mais tranquila da viagem em direcção à vila de Viana. “Cobrador, fico na Sonangalp” – ouviu-se uma voz cansada no banco do fundo. E lá o motorista obedeceu embora a mensagem não fosse directamente para ele.

Nesse ponto nos deparamos com uma cena de filme de terror à luz dos holofotes dos carros, dos que passavam e dos que estacionavam para deixar os “pax”. Os actores eram um jovem aparentando ter acima de 25 anos de idade, de cerca de um metro e setenta de altura, corpo robusto - kaenche mesmo, diria – com uma garrafa de cerveja quase vazia na mão que lhe servia também de arma, um outro jovem mais franzino, um pouco mais afastado como que a controlar o cenário e uma jovem senhora perto ou já nos 40 anos idade.

Ia o carro a estacionar lentamente e nós a comtemplarmos a cena: o jovem kaenche abordou a senhora, agarrando-lhe pela camisa (como fazem os nossos kaingas quando apanham um gatuno de galinha) deixando-lhe a adiposa barriga ao léu e acariaciando-a vigorosamente por todos os cantos até encontrar uma pasta que ela escondia debaixo da blusa. E afastava-se tranquilamente, qual pirata das caríbas, ignorando completamente os boquiabertos espectadores e dando goles no que restava da sua cerveja já quase choca. – “eehh, olha só, tá levar a pasta da senhora!!”; “meu Deus, isso não se faz!!” – exclamavam vozes emocionadas vindas do banco de trás. Até que... “motorista pára o carro, vamos lá” – disparou uma voz determinada. Sim, “vamo lá”, como cantou o kudurista Madruga Yoyo. Porque não?, afinal até somos muitos e eles, apenas um e meio (sim, porque o outro quase não contava de tão “nganzado” que parecia estar).

Num flash, lembrei-me duma palestra a que assisti do Dr. Amândio Vaz Velho, na qual ele falou de liderança e da importância de um impulsionador da acção do grupo e, obedeci à voz do líder do banco de trás. Abri a porta e saltei do carro (eu estava no banco de frente), apanhei também uma “ngala” das muitas que estavam espalhadas pelo passeio (afinal já era quinta-feira e a chuparia já começava a ganhar mais adeptos) e avancei em direcção ao pirata de passeio, a princípio meio receoso, não fosse ele mais habilidoso do que eu na luta com garrafas, mas ganhei coragem quando a porta de trás se abriu e desceram do carro outros tantos passageiros. “Entrega a pasta à senhora” – atirei na voz mais feroz que consegui arranjar com a minha arma, quer dizer, a minha “ngala” em riste.

O assaltante leu o cenário à sua volta e percebeu que não tinha outra hipótese senão me obedecer (éramos bwé contra um). Um outro passageiro recebeu-lhe a pasta e a seguir desarmou-lhe (ou devo dizer “desengarrafou-lhe”?). Senti nos seus olhos e na sua respiração um misto de medo e ansiedade. Ficou frio e petrificado como estivesse ele a ser assaltado. Percebi que esses piratas de passeio são na verdade muito covardes e só perpetram as suas acções porque não são confrontados. Aproveitam-se do medo e do pânico imediato das suas vítimas.

A vítima, esta recebeu a sua preciosa pasta que devia conter os proventos de um dia de árdua labuta na zunga ou num mercado qualquer de Luanda e saiu disparada espalhando “muito obrigados” por todo o lado. O pirata foi se afastando com o seu companheiro praguejando ameaças impotentes e imperceptíveis para disfarçar o caganço e a frustração de não ter conseguido despojar mais uma vítima (le extrovamo os molho). Nós, os heróis, voltamos para o carro e seguimos viagem, felizes por termos praticado uma boa acção e, provavelmente garantido o jantar e uma noite de sono tranquila para uma família e ... vivemos felizes para sempre, como acontece com os heróis  de qualquer novela que se preze. Será?

Muito provavelmente não. Naquele mesmo instante, em diversos pontos de Luanda, de Angola e do mundo, deveriam estar a ocorrer outros tantos assaltos com um final não tão feliz como aquele em que nós fomos heróis.

Isso me fez pensar que é necessário que sejamos todos muito mais heróis do que somos agora. Não precisamos, pois de corpos de aço, collants ajustados a um corpo musculado, armas galácticas, capas voadoras nem nada disso. Só precisamos de mais solidariedade e coragem e de parar de nos lamentar enquanto assistimos pasmados (ás vezes até insensíveis) os nossos semelhantes a serem vandalizados. Dizem que no Palanca, os “langas” não admitem esses abusos e partem todos solidariamente para cima do agressor/assaltante em defesa da vítima. Gostamos de propalar aos quatro ventos que somos um povo corajoso, mas nos esquecemos frequentemente que a união faz a força e recuamos covarde e egoísticamente ao primeiro sinal de ameaça.

Não me esqueço que também fiquei com medo, aliás, lí algures que a coragem não é a falta de medo é sim, a determinação de avançar mesmo estando com medo. Ganhei coragem porque senti que não estava sozinho, ganhei coragem porque percebi que outros heróis estavam comigo para me suportar. Aliás, nenhum herói o é verdadeiramente sozinho: Batman e Robin, Sherlok Holmes e Watson, Mandume e o seu exército, Trinitá e Bambino, Homem-Pássaro e Vingador, os camponeses da Baixa-de-Kassanje, Robin-dos-bosques e os seus amigos, Timon e Pumba, meu Pai e Minha mãe, Don Kixote de La Mancha e Sancho Pança, enfim, poderia aqui citar uma infinidade deles, tanto da vida real quanto do imaginário universal. A verdade sim, é que todos podemos ser heróis!

“O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”. Martin Luther King