Dentre outras abordagens importa referir que antes da presença colonial e, por conseguinte, da integração das sociedades tradicionais à nova ordem política, a estadual, cada reino ou sobado tinha um sistema de valores e uma organização política que sempre tornaram possível a segurança, a paz social, a integridade territorial comunitária, a distribuição dos poderes do reino ou sobado, o bem-estar e a justiça.

Diga-se, em boa verdade, que se durante milhares de anos e séculos de colonização mantemos vivo o património histórico - cultural, as línguas locais e a dignidade do costume, embora, se reconheça, com nova roupagem deve-se à racionalidade política tradicional.

Injustamente, a visão que se tem das autoridades do poder tradicional desde o tempo colonial é reducionista. Aliás, com a presença colonial todas as instituições do poder tradicional, o sistema de organização política, a lógica do sistema produtivo, a ordem religiosa e moral, os sistemas judiciais e cultural dos povos foram duramente combatidos. Os preconceitos que foram sendo construídos em relação aos sistemas africanos abalaram profundamente o núcleo de valores de racionalidade africana. Portanto, o que estava em causa foi, exactamente, impôr um modelo cultural de racionalidade europeia aos povos africanos. Eis a razão pela qual as línguas locais foram reduzidas a línguas de cães; as práticas culturais e religiosas ao feitiço; etc. Fruto desse viés ou snobismo cultural os sobas ou reis são vistos como feiticeiros negando-lhes as suas reais atribuições que concorreram sempre para a protecção das nossas comunidades tradicionais e fundamentam, ainda hoje, as relações humanas. Portanto, desde a independência nacional nunca se deu tratamento nem dignidade constitucional às instituições do poder tradicional. A relação dessas instituições com o Estado é, meramente, instrumental. Injustamente, um administrador ou governador (criação do poder secundário ou estadual) julga ser superior a um soba ou rei – puro engano. Por maioria de razão seria o contrário atendendo ao princípio da precedência, mas como estamos em presença de racionalidades diferentes e, por conseguinte, diverso núcleo de hierarquia ninguém é superior a ninguém. E em razão do território o soba é o primeiro dono da terra (daí o título de reconhecimento às comunidades tradicionais lei 9/04). O que deve, portanto, existir é a colaboração e cooperação com as instituições do poder estadual e nunca chamar, propriamente, as instituições do poder tradicional ao serviço do Estado como se tratasse de um subsistema Seu. Cada poder (tradicional /estadual) está chamado, por natureza e fim, a responder pelas instituições e fundamentos que justificaram a sua emergência. 
 

Significado da Presença do Rei na Casa das Leis
 

Várias considerações e interpretações podem ser dadas a esse facto. Em nossa opinião com a indicação do Rei para a Assembleia Nacional:


1. O reino do Bailundu perde, sem dúvida alguma, o garante e símbolo de unidade de que o Rei foi o seu legítimo representante. Na prática quer dizer que o Rei obriga-se à disciplina da linha ideológica do partido que o convidou e ao mesmo tempo refém do programa de governação do MPLA. Em poucas palavras o Rei vai ressonar, entenda-se, representar as aspirações e interesses do partido ou, de outro modo, a torcer (como o terá feito) por ele. Portanto, o Rei com a bandeira do MPLA na mão dividiu a comunidade e perde a dimensão de garante de unidade no reino. E a aliança com os antepassados ficou ferida;


2. É possível crer que o poder estadual não está a responder às aspirações e interesses das comunidades tradicionais protegidas pelo costume. Portanto, a não aproximação dos serviços públicos às populações e a impraticabilidade do princípio do particípio, a instrumentalização das instituições do poder tradicional e a extrema pobreza podem justificar a aceitação do Rei ao convite que lhe foi endereçado como trampolim para dar voz e defender os interesses do seu reino;


3. Como um ensaio suportado por dois gumes:


Aproximação do poder tradicional ao estadual que permita construir um diálogo proactivo entre os dois poderes, embora se reconheça, sem a estruturação de um quadro político e legal para o efeito;
Desmoronamento do poder tradicional. Obviamente, a manipulação do poder tradicional por ideologias político -partidárias fragiliza e põe em causa a sua natureza e integridade. Portanto, o que se pode ver aqui é uma tentativa de, não só, submeter como a de silenciar o poder tradicional.
 

4. Como mera propaganda eleitoralista. Ou seja, razão para caça ao voto. Naturalmente, o Rei é uma pessoa muito respeitada no reino. Ele tem o papel de um pastor que bem sabe levar as suas ovelhas ali onde julgar conveniente para que tenha mais vida. Portanto, quaisquer que sejam os pronunciamentos ou posicionamentos seus exercem grandes influências no reino. E aqui é bom que se diga que a crença em comunidades tradicionais é um elemento dominante;


5. O Rei poderá ter sido confrontado com as seguintes situações: 


Aceitar para não sofrer eventuais represálias e cair no silêncio. Neste caso, teria existido o medo de ser substituído por outro. E isso não é novidade, pois, existem Sobas indicados por conveniências políticas. (eventual defesa pessoal);
Aceitar para não sacrificar, eventualmente, a comunidade. Lembra-nos a história, embora, em contextos diferentes que por um, todos pagaram. (eventual defesa da comunidade);
Aceitar porque sempre foi do MPLA não importando o seu papel de Rei. Terão pesado aqui vários factores dentre os quais a condição material e o prestígio.
 

Finalmente, pelo sim ou pelo não, a verdade é que o Estado através do MPLA pôs mão a um problema que ao longo dos tempos ninguém ousou resolver: como lidar com as instituições do poder tradicional num sistema de racionalidade estadual? Queremos acreditar que o Ministério do Território, Ministério da Cultura e a sociedade em geral estudarão as melhores formas para responderem à pergunta. E isso, não passa apenas pela produção de normas, realização de conferências, mas, sobretudo, por um estudo profundo e multidisciplinar que congregue todas as sinergias para que não se mate a tradição, o costume e a cultura. Queremos acreditar que ninguém gostaria de ver os sobas com farda e patentes sem significado cultural. 

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Fonte: Club-k.net