Luanda - A mentalidade fossilizada da obediência doentia a uma suposta “ordem superior” não irá, como que por um golpe de magia, desvanecer-se enquanto as mesmas pessoas que foram formatadas para obstaculizar o “adverso”, o “do contra”, o “dissonante” se mantenham como titulares de cargos com poder de decisão.

Fonte: http://centralangola7311.net

Infelizmente, por força da experiência repetida, temos de aplicar aqui o ditado fatalista que diz:”pau que nasce torto, nunca se endireita”. Para essas pessoas, pouco importa que o cidadão cumpra com escrupuloso rigor com as leis da República, que escreva todas as cartas, peça (e adquira) autorização deste mundo e o outro, tenha transtornos financeiros que nunca, ninguém se propõe indemnizar, jamais deverá este cidadão auferir dos direitos que lhe são conferidos pela atípica Constituição, pois esses direitos ferem a sensibilidade dos que os aprovaram para “fazer bonito”, para saírem bem na fotografia, para aparentar vontade explicita de se democratizarem os hábitos sociais.


No dia 30 de Março, a mesma data da nossa manifestação (mais uma vez) abortada pela já habitual violência policial redundando em porretes, bofetadas, pontapés nos testículos e detenções ilegais, em Benguela, um grupo de Hip Hop chamado Família Eterna, tentava levar a cabo um evento que celebraria os seus 10 anos de existência e para o qual procederam a todos os a priori impostos pela lei pre-histórica, com autorizações carimbadas pela cultura, pela polícia e pela administração local, como se pode comprovar nas imagens aqui disponibilizadas.


O que pode levar as autoridades a reverter um parecer anterior e, à margem de qualquer critério legal, tentar impedir a realização de um evento no próprio dia em que este deveria ter lugar? Que nomes são esses que ao aparecer no ecrã do telefone fazem mais-velhos, pais-de-família, hiperventilar de pânico e embrulharem-se completamente com actos que contrariam todas as formações que já receberam?


Segundo o testemunho do Fábio, um dos organizadores do evento cujo nome se pode ver na documentação aqui disponibilizada, foi ao aperceberem-se que o MCK seria o convidado de honra do evento que lhes terá disparado o alarme arrepiante da auto-censura e terão tentado corrigir o tiro, pressionando psicologicamente a organização a abortar o evento e, mais engraçado, a inventar “uma desculpa qualquer” para o justificar perante a opinião pública, ao pé da qual a sua credibilidade ficaria mordiscada. “Sobretudo não dizer nada ao MCK”. Esses mais-velhos perderam totalmente o juízo.


Ainda segundo o Fábio, uma vez no escritório do comandante Ndalu, por quem terá sido convocado, uma enxurrada de questões acerca do recém-premiado do Festival Nacional da Canção se seguiu, ao ponto de, na dúvida acerca do conteúdo temático das letras deste último, o comandante ter baixado a ordem a um subordinado hierárquico que se deslocasse ao local onde estaria a decorrer a venda do “Proibido Ouvir Isto”, adquirisse uma cópia e se pusesse a escutá-la in loco, comunicando a par-e-passo o que estivesse a ouvir. O agente não terá superado a faixa introdutória e já o comandante levava as mãos à cabeça alarmado:”não pode ser, esse indivíduo não pode cantar, não estamos autorizados a ter músicos que cantam contra o governo!”.


A resistência à intimidação fez com que outro tipo de estratégia, mais agressiva, fosse colocada em marcha: desde visitas ostensivas de agentes à paisana ao local do evento, desencorajamento de permanência de quem se aproximasse com intuito de adquirir bilhete, visita inusitada do soba e ainda uma campanha de desinformação executada utilizando o serviço de SMS de uma das operadoras nacionais, em tom alarmante, advertia a população a não ir ao evento pois “algo de mau irá acontecer”. Para coroar tudo isto, um corte de energia foi encomendado quando o evento já decorria.

Ameaça mal disfarçada de conselho. O visado tentou ligar para o remetente, mas o número estava desligado.


Os rapazes foram firmes e resolutos, levando em frente a sua intenção de realização do evento que tão cuidadosamente prepararam, não abdicando de nenhum dos pormenores previstos inicialmente, incluindo a participação do MCK que acabou por cantar o dobro daquilo para o que tinha sido contratado, em sinal de reconhecimento tanto pela organização, como pela brava plateia de (à volta de) 80 almas, que apesar dos alertas, não quiseram perder um evento que é raro para os amantes de Hip Hop consciente na terra das acácias rubras.


As consequências da sua “afronta” à ordem superior e arbitrária já começaram a fazer-se sentir e o pequeno espaço de 30 minutos semanais que lhes era cedido na Radio Morena, lhes foi retirado mas, claro está, de maneira amigável, sem celeuma, sem ressentimentos pois, afinal de contas, coitado do “dono do programa” que receia agora ter qualquer tipo de associação a esta juventude desobediente, não vá ele, por seu turno, perder tão pequena “benesse” como um inofensivo programa de rádio.


Para download gratuito, a banda dispensou uma das suas novas faixas intitulada “10 anos de irmandade“, no qual abordam justamente o assunto aqui relatado.


Só mais um episódio entre milhares no país do revanchismo, protagonizado pelos mesmos dinossauros políticos que recusam aperceber-se que essas práticas já não têm lugar numa Angola democrática e seguem, envergonhando o país perante o mundo, ao mesmo tempo que impingem por força de discursos exemplos que nunca lhe deram.

Luaty Beirão