Luanda - A universidade tem muitos séculos e diferentes tradições! A história da universidade obriga-nos a percebê-la como uma instituição profundamente ligada às sociedades que as criaram e que, a partir delas, construíram saber, desenvolvimento e sociedades mais justas. Não é de estranhar, por isso, que no início da universidade tenham estado, tanto no mundo ocidental, como no mundo islâmico, as ciências humanas e a busca de sentido para a vida do homem no mundo. Só depois vieram as ciências exactas e a investigação laboratorial. Em muitas das nossas sociedades africanas, essa demanda do saber e essa procura de um sentido para a vida, têm uma longa tradição e fecundos cultores. Por isso, o espírito da universidade não é estranho à nossa cultura.

 

* Patrício Batsîkama
Universidade Agostinho Neto
Auxiliar a Investigação Científica

Fonte: Facebook


 I.  Valores e Universidade

 Olhamos para a universidade como uma “fábrica” de saber. Para além de ser essa “fábrica de saber”, ele deve ser um lugar para ensinar a pensar! Ela proporciona uma formação qualificada, com investigação séria e administração competente, envolvendo o mundo académico e extra-académico.

 

Vamos enumerar os valores basilares:

(i)  O verdadeiro: somos herdeiros de uma civilização que sobrevalorizou o verdadeiro. A ciência é, etimologicamente, o conhecimento verdadeiro. No plano ontológico, a universidade busca construir Homem verdadeiro que é íntegro e que busca humildemente o axiomático. Um empenho mais verdadeiro para um conhecimento mais verdadeiro é a lógica do método e rigor científico. Para este projecto, a universidade precisa de: (a) Professores e estudantes verdadeiros; (b) Corpo administrativo verdadeiro; (c) Aulas e pesquisas verdadeiras (ao abrigo das infra-estruturas verdadeiras/apropriadas).

 

Kidika em kimbûndu, kedika em kikôngo, yilika em côkwe, ociyili em lyumbûmbu, ohili em khoe khoe (khoisan), o termo indica que na cosmogonia angolana a existência (+di; +li) é verdadeira. Quer dizer que, na cosmogonia dos Angolanos, o verdadeiro é o resultado da exploração racional da existência. Isso requer conhecimento (verdadeiro), competência, muito trabalho e, constantemente, inúmeros sacrifícios. A existência, então, só se entende na busca de um conhecimento verdadeiro.

 

(ii)  O belo: a simetria ontológica, a harmonia idiossincrática e a grandeza humana constituem a beleza. Como se pode notar, o belo é verdadeiro, a priori. Kant (1968: 76), Hegel (1993: 87,97), já explicaram isso.

 

Na base cognoscitiva dos angolanos, analisada a partir das suas línguas, os conceitos do belo, bom relacionam-se: waba em kimbûndu, ociwa em lyumbûndu, wali em côkwe, /awa em khoe khoe, waa em velho kikôngo. Nesses conceitos temos três grupos semânticos: (a) estabilidade na saúde física e mental; (b) coerência individual perante as leis naturais e preceitos dos demiurgos (leis deixadas pelos ancestrais). A comunidade universitária deve ser promotora da beleza, expandindo suas [boas] acções nas populações: primeiro, garantir e promover a coerência e a intelectualidade individual; segundo, promover a busca do bem-estar, a partir do conhecimento e da competitividade (Boas, 1945[1918]); (c) e, por fim, promover a estabilidade social (no caso, dar solução científica aos problemas sociais) e projectar as vias e instrumentos para o desenvolvimento humano.

 

(iii)  O bem: todo ser vivo busca o seu bem, de várias maneiras. O Homo sapiens definiu como o seu bem o ser social. Os angolanos, desde a Idade Média, definiram a vida social como o maior bem. Por isso criaram poderosos impérios e reinos.

 

Em côkwe nthu significa bondade; ao mesmo tempo muntu é o detentor da bondade. Entre os Umbûndu (Ngângela, Kwanyama) o bem é a vida (existência), ora o conhecimento (verdadeiro) é bondade. Quem obedece à existência (+li) e às leis (+li) alcança a bondade: essa é a equação muntu-angolana sobre o bem. Isto é, o bem está ao alcance do ser vivo, cabe a este moldá-lo a seu jeito sem atropelo às leis em vigor, nem àquelas deixadas pelos ancestrais. Essa obediência às leis é a afirmação da sua pertença social, da aceitação do grupo, onde a norma jurídica e a sua aceitação proporciona o bem.
Em síntese, se tivermos professores e estudantes verdadeiros e belos em busca constante do bem, que é sempre um bem social; se conseguirmos ter administrativos verdadeiros e belos, no esforço constante para oferecer as condições institucionais face aos desafios e outras dinâmicas que lhes forem colocados; se as nossas aulas e pesquisas forem reconhecidas como verdadeiras (e não como plágios) e belas (resultado dos esforços vinculativos), as universidades em Angola cumprem o seu propósito e serão de grande valor para a sociedade!

 

II. Desafios da universidade angolana

As regiões académicas em Angola – com a bênção dos governos provinciais locais – constituem uma posição futurista para nutrir uma indústria académica funcional e útil na sociedade angolana, porque partindo das potencialidades regionais, quer sociais quer económicas, e de bens endógenos, permitirá o desenvolvimento humano dessas regiões. Será necessário oxigenar essas Instituições de Ensino Superior e, paulatinamente, democratizá-las, evidenciando a peculiaridade de cada identidade académica, suas competências e utilidade social na região onde está inserida. E, sobretudo, responsabilizar os envolvidos (Foucault, 1987).


Assim, esperamos, com a garantia dos valores humanísticos anteriormente referidos, termos o desenvolvimento humano em Angola almejado. O Plano Nacional para Formação de Quadros, é uma boa iniciativa, mas precisa urgentemente de uma leitura avaliativa. Quero com isto dizer, falta a engenharia executória, pois não há auto-suficiência simétrica dos pressupostos. Ele exige a assiduidade de uma avaliação e de rigorosa análise de implementação, de forma a resolver os sempre presentes erros que um Plano desta natureza tem. Cabe às universidades buscar leituras correctivas na implementação do projecto.


Antropologicamente a prática do diálogo, em Angola, do “Eu”, “Não-Eu” e “Outro”, em busca da sua coerência social, ainda que partam das suas divergências identitárias, enquanto constituintes (Sango, 1996: 138), num contexto assimétrico, quer nas regras de jogo, quer nas forças de que, inicialmente, cada um dispõe.


Manifestamente, importa agora sublinhar os dois pontos principais que desde a alta antiguidade entraram nestas regras de jogo e que continuam presentes nas dinâmicas sociais dos povos angolanos em geral: (i) solidariedade; (ii) diálogo.


(i)  Solidariedade: (a) integridade sistémica é funcional a partir da idiossincrasia identitária de cada constituinte (“Eu”, “Não-Eu” e “Outro”); (b) sociabilidade: a relação das forças baseia-se em duas vertentes: por um lado, a “aceitação ontológica de Outro”; e por outro, o “respeito racional” e a “humildade correctiva”.


(ii)  Diálogo: (a) pressupõe-se aqui o respeito da pluralidade: “Eu”, “Não-Eu” e “Outro”; (b) diálogo ontológico: união dialéctica entre o desejo corporal com o belo ascético (simetria); (c) diálogo social: “os homens não se dão as costas”, dizem os Lûnda. Os angolanos desde as fundações dos seus reinos respeitaram a negociação: caminharam sempre em diálogo sincero. Onde faltou este precioso diálogo, houve conflitos desastrosos.

 

Vamos, agora, ver dois suportes da Universidade: (i) económico; (ii) organizacional:


1)  Económico: duas questões ultrapassam-nos: (i) a famosa pós-modernidade (Gellner, 1989): o produto tangível interessa menos que a informação e a imagem na sua rentabilização; (ii) o PPII (Planetário, Permanente, Imediato e Imaterial) exige de nós uma actualização permanente das capacidades. Por outro lado, o egoísmo torna-se alavanca do sucesso, ao passo que o colectivismo se reduz ao menos possível. Quer dizer, o homem torna-se cada vez mais um ser menos importante (perante a máquina) e, várias vezes é coisificado (produto do mercado). Resultado: um conflito de valores a que se sucedeu outras crises comprometedoras para a economia. Hoje já não é raro ver um filho desejar a morte do pai, por causa da herança (imediatismo), para citar apenas isto. A universidade sempre foi um instrumento poderoso na resolução dos impasses que economia pós-moderna, ou, agora, pluri-moderna, criou. No caso das nossas realidades socioeconómicas, a universidade pode alterar esta visão meramente economicista, fútil e egoísta, ao mesmo tempo que fortalece a solidariedade, facilitando o investimento na remuneração dos docentes e na investigação, através de bolsas de pesquisa, com exigência de qualidade e de produção, devidamente avaliadas; e premiando financeiramente os discentes empenhados e com menor possibilidades de desenvolveram os seus estudos.

 

2)   Organizacional: é nas universidades que se organiza e se coordena o trabalho de extensão universitária. Em diálogo com a sociedade, com as suas potencialidades e necessidades, a universidade deve definir os instrumentos operativos para aplicar os seus planos de serviço à comunidade. Daí a importância de uma universidade que sai do Olimpo das suas instalações e desenvolve investigação de campo, investigação aplicada. Só assim ela, universidade, justifica a sua razão de ser e as expectativas da sociedade num saber experimentado. É estratégico aprofundar e normalizar o diálogo com as comunidades, quer em promoção de cursos cujos objectivos imediatos vão ao encontro das necessidades da região, com as soluções ajustadas aos problemas das populações. O apoio a este trabalho deve ser partilhado pela universidade, o poder central e as autoridades locais, entre as quais coloco as Associações Civis e as empresas. Assim, para todas regiões, cursos de enfermagem, ou mesmo da medicina, são importantes senão urgentes! O mesmo se diga para áreas de investigação aplicadas às potencialidades endógenas de cada região, não esquecendo as ciências humanas e a promoção de pesquisas sociológicas, económicas, que nos forneçam as estatísticas e informação precisa das comunidades, áreas e situações reais, para melhor conhecer e intervir nessas comunidades.

 

Vamos apontar dois pontos fortes que toda universidade tem: (i) representação das forças sociais locais: instituições, associações, empresas, estudantes; (ii) máquina de formação de quadros e de produção do saber. No primeiro ponto, importa olhar o contexto social, cultural e económico da região, e as associações estudantis. Isso permitirá definir com segurança os núcleos de estudo com mais potencialidade; já no segundo ponto, não só a formação garante razoavelmente a gestão social e humana, mas a criação de novos saberes permitirá identificar e resolver problemas sociais nos locais onde estão inseridas as universidades.
 

Para concluir


A universidade consiste, a partir de uma comunidade autónoma e livre, ministrar e partilhar o Ensino e aprofundar e desenvolver a Investigação científica. É este o espaço privilegiado para aprender a pensar! Aprender a viver para o bem, fomentar a bondade do serviço, pelo rigor do mesmo, amar a beleza que se desvela no processo de descoberta. Face às realidades neo-capitalistas e às exigências da sociedade complexa actual, e partindo das demandas sociais por onde estão sedeadas as Regiões Académicas, espera-se eficiência, rigor, serviço e educação para a cidadania, por parte das universidades.