Luanda - “Aceitação é sempre apenas a metade da religião; a outra é revolta, reivindicação, apelo contra o que é, em prol daquilo que deveria ser.” Disse Émile-Auguste Chartier. A aceitação no pensamento de Émile é feita de duas metades antagónicas, mas que precisam sempre coexistir para que haja equilíbrio na sociedade. A primeira é a aceitação em si, que pode subentender conformismo, consentimento, apoio, lealdade (especialmente quando não se sabe por que) e a segunda metade – a revolta, entenda-se, reivindicação, apelo contra o que é, em prol daquilo que deveria ser. Infelizmente o que sagra o mundo hodierno, o que caracteriza grande parte das nossas sociedades hoje é apenas a primeira parte da religião da aceitação. Pior do que isso, vejo nas nossas sociedades dinamizar-se uma aberrante aceitação coletiva daquilo que é mau e para horripilar, grande parte disso é considerado socialmente correcto e necessário!

Fonte: Club-k.net

Na primeira parte falei das organizações africanas que existem numa média de 32 anos cada e que apesar da sua longa existência continua-se em grande parte no mesmo celeiro de problemas. Ora, no esforço que muitas dessas organizações fazem ao perseguirem os seus objetivos, a mensagem subliminar que nos passam, para mim é da indiferença, ou seja, não faz muita diferença se os problemas do continente ou do mundo são ou não resolvidos, são ou não amenizados, são ou não atacados com a veemência que se deseja, a verdade é que as dificuldades sempre existiram e talvez continuarão a existir milênios a frente, ao se criar uma organização (não importando muito o seu objeto social) o essencial é tentar combater ou amenizar um determinado problema, tentar fazer o máximo para resolvê-lo, tentar e tentar etc.

Hoje, mais do que em qualquer outra era da história da humanidade sabemos e podemos saber com facilidade a essência de muitos, senão todos os nossos problemas, pois vivemos na era do conhecimento científico, na era da humanidade iluminada e tecnológica e em África, muito mais facilmente estão identificados os principais pilares dos muitos problemas, mas, para o meu-nosso dissabor, queremos continuar a usar peneira como cântaro para tirar água; algumas das nossas organizações já assistem isso há muitos anos e em alguns casos trazem pensos de tecido para cobrir algumas bandas da peneira, os governos em alguns casos adicionam uns bons rasgões nela e noutros casos investem pesado em fórmulas quiméricas para se conseguir extrair água usando a peneira, quando a fórmula mais simples e básica é usar-se um cântaro de verdade.

Hoje existe o fantasma da soberania dos estados. O que é o estado afinal? Um site de juristas define o estado da seguinte forma: “é uma criação humana destinada a manter a coexistência pacífica dos indivíduos, a ordem social, de forma que os seres humanos consigam se desenvolver, e proporcionar o bem estar a toda sociedade (…) é ele que detém o papel exclusivo de aplicar as penalidades previstas pela Ordem Jurídica (…) pode ser definido como o exercício de um poder político, administrativo e jurídico, exercido dentro de um determinado território, e imposto para aqueles indivíduos que ali habitam.” O que é soberania? “é o exercício do poder do Estado, internamente e externamente. O Estado, (...) deverá ter ampla liberdade para controlar seus recursos, decidir os rumos políticos, econômicos e sociais internamente e não depender de nenhum outro Estado ou órgão internacional. A essa autodeterminação do Estado dá-se o nome de soberania.”1 Neste site ainda podem-se encontrar os principais elementos característicos do estado, a saber: população, território e soberania.

Com base nestas definições, duas coisas ficam claras. 1 – o estado é um grupo de indivíduos escolhidos ou não que existem para “manter” a coexistência pacífica de outros indivíduos dentro de um território delimitado, e não aquela vaga ideia que tem-se vendido de que o estado somos todos nós. 2 – apesar de soberano, o estado não é soberano sobre a vida de cada indivíduo no território sobre o qual exerce sua soberania, ou seja, o estado pode controlar os recursos do território sob sua jurisdição, decidir os rumos políticos, económicos e socias do mesmo, mas não lhe cabe decidir sobre a vida, os direitos e as liberdades fundamentais de cada individuo no território que controla.

Tomando o segundo ponto em alta nota, percebe-se que é aqui onde o estado perde parte da sua soberania. O que vemos hoje? Uma tremenda confusão, a soberania gerou a imunidade, a imunidade gerou a impunidade e a impunidade dizima vidas, viola direitos, subjuga, oprime, desterra, age à margem de quase tudo. Esta é a peneira que com a qual se insite em tirar água no mundo de hoje. Vemos constantemente os estados cometerem em nome da soberania os mais hediondas crimes; Estados que privam seu povo das necessidades vitais básicas, oprimem seu povo, espoliam o que é coletivo, fazem pouca monta aos ordenamentos jurídicos vigentes nos seus países, corrompem e deixam-se corromper, em fim, tudo isso em grande medida a acontecer nas barbas de organismos internacionais e entidades estaduais criadas para impedir que as barreiras da soberania sejam transpostas. Nalguns casos as organizações agem, insurgem-se contra esses atropelos, mas não profundo o suficiente porque este grupo de indivíduos que costumamos chamar estado, existente em cada um dos países e territórios no globo, é soberano, entenda-se IMUNE! a qualquer força que não seja a sua própria. Infelizmente o que temos assistido acontecer é oferecerem-se pensos para cobrir algumas partes da peneira, quando o que o mundo precisa é de verdadeiros cântaros para tirar água e irrigar a felicidade da humanidade! A humanidade por meio de seus Estados hoje, inverteu os valores, soberano tinha de ser a humanidade e tudo que atentasse contra a vida humana não podia ter mais soberania que a vida.

Quando abrimos os dispositivos legais internacionais, quando lemos os estatutos de organismos e organizações internacionais, de defesa da vida e dos direitos humanos, proteção ambiental, ou seja da proteção da humanidade, amiúde nos deparamos com tristeza com as diretrizes que orientam a atuação dos mesmos, até em casos extremos, as vezes lemos as seguintes endechas “caso o Comité receba informações idóneas que pareçam conter indicações bem fundadas de que a tortura é sistemáticamente praticada no território de um estado parte, poderá convidar o referido Estado a colaborar consigo na análise da informação em causa e, para este fim, a apresentar os seus comentários relativamente à mesma. O Comité pode, se julgar necessário (…) proceder um inquérito CONFIDENCIAL (…). Após examinar as conclusões de seu membro ou membros designados para conduzir o inquérito, o Comité transmite-as ao Estado parte em questão, juntamente com quaisquer sugestões ou comentários que lhe pareçam adequados face à situação. Todas as diligências efetuadas ao abrigo do artigo 20º são CONFIDENCIAIS, procurando-se obter a colaboração do Estado parte em todas as fases do processo.”2

Este é praticamente o modelo seguido pela ONU, União Africana, Comissão Africana, Comité contra a Tortura, Comité dos Direitos do Homem, Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e muitos outros. Eu pessoalmente não sou contra essas organizações, nem dá para imaginar o que seria o mundo se muitas delas não existissem. A minha inquietação é que ao mesmo tempo que lutam para a construção de um mundo melhor, a forma de atuação que adotaram, pode estar na base da persistência dos problemas que combatem. Analisemos o seguinte, o que achariam de um juíz que pedisse o parecer do arguído numa causa, e mais que o fizesse de forma confidencial? Tendo ouvido os advogados, saisse juntamente com os seus assistentes e o arguído para a análise dos depoimentos? Bem, não ser estudante ou formado em direito pode estar a contribuir para o juízo talvez negativo ou distorcido que estou a fazer, mas para mim se as informações são idóneas, pareçam conter indicações bem fundadas; não vejo a razão de muita confidencialidade e mais, a participação em todo processo do principal autor dos atos. OK, já percebí, os estados são soberanos (lol)! Para mim, agir assim dá margem à corrupção e demonstra de certa forma desrespeito pela soberania da vida!

Não sei se existem dispositivos que estabelçam claramente os limites da atuação dos estados para com os seus súditos e as consequências de os transpor!? Existem tantas instituições e centros de instrução, capacitação, universidades e colégios, mas eu pessoalmente nunca ouvi dizer da existência de uma escola de formação/capacitação de Presidentes da República, Chefes de Estado e Monarcas, nunca o ouvi, não sei o leitor. Por se pensar que estes homens e mulheres ao atingirem tal patamar nada mais precisam além de imunidades e passaportes diplomáticos, eis a razão do mundo disparatado que temos!


ACRONIMIZAR AS ORGANIZAÇÕES E NÃO AS AÇÕES!

Quase todas as organizações existentes hoje, ou são acrónimos, ou são siglas. Poucas as há que não obedeçam as esses critérios. Por isso é que vemos ONU, SADC, UE, FAO, FMI, NASA, IBM, OTAN, etc. Haverá algum mal nisso? Não, nenhum. Por que se adotam acrónimos ou siglas? Para facilitar a identificação e referência, pois imagine ter que dizer “Declaração das Nações Unidas sobre a Proteção de todas as Pessoas contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes”? É mais fácil dizer Declaração contra a Tortura, ou mais simples ainda DCT.

Qual é o grande problema? A tendência em transformar as ações também em acrónimos. Começando pela exigida neutralidade das organizações supraestudais e universais. Todas as organizações existentes, estão sedeadas dentro de estados, e escolher um estado como sede de uma organização qualquer parece não obedecer a nenhum critério, basta que haja vontade por parte do chefe de estado em acolher a referida organização. Assim vemos a ONU nos Estados Unidos, o Comité dos Direitos Humanos na Suíça, a SADC em Botswana, a UE em Bruxelas, etc. Os países-sede podem de certa forma influenciar nas decisões que os visem, lembrando que essas organizações são lideradas por homens que em grande medida não são eleitos, nem que o fossem nenhum humano é imune à corrupção e tráfico de influências. Precisamos começar a pensar em definir uma zona neutra a volta do mundo, que não se considere pertecente a nenhum estado e por lá sedear todas as organizações humanitárias e que velem pela nossa preservação como espécie. Pode parecer fútil, mas é um passo para a neutralidade que se quer e espera dessas organizações, um passo para a transparência e quem sabe para humanizar cada vez mais essas organizações. Também, é preciso analisar se precisamos de cada vez mais organizações com diferentes propósitos apesar dos problemas persistirem ou começarmos a encarar a causa dos mesmos e combaté-la custe o que custar.


Em informática (que é a minha área de formação) quando desenvolvemos um software, estamos constantemente a reavaliá-lo e testá-lo, especialmente com a ajuda dos utilizadores finais com o intento de o melhorar cada vez mais e assim atender mais completamente as necessidades dos utilizadores. Em muitos casos, os utilizadores surpreendem-se com as atualizações e não são poucos os agredecimentos.


Infelizmente na vida social há muita resistência em fazer atualizações. Mesmo estando em Windows 8 os políticos, governos, corporações as vezes querem continuar amarrados ao Windws 95, as organizações em muitos casos também. Por isso é que defendo que os critérios de atuação de muitas organizações hoje existentes precisam de ser revistos e atualizados! Vejo que algumas delas até devem mesmo ser extintas! As ações devem incidir em problemas concretos e correntes, devem deixar de ser em grande medida segredos de estado, devem incidir nas causas e não nos efeitos. Um exemplo de organização que precisa redefinir os seus propósitos é a União Africana. Criada em 1963, veio a existência para levar o continente as independências e ao fim do colonialismo. De lá para cá já se passaram cerca de 50 anos e os seus principais objetivos já foram alcançados há mais de 30 anos. É chegada a hora de parar e reavaliar o propósito da organização, mudar o seu foco para os problemas mais prementes do continente, dentre eles estão as ditaduras, a pobreza desnecessária, a má governação, a corrupção governamental, a fuga de cérebros, a insegurança alimentar, as pandemias e outros. Encará-los e combaté-los com veemência. Mas deve começar consigo mesma, demovendo todos os ditadores que ainda conduzem a organização. A PARTIR DAQUI ACRESCENTAR: “Estabelecer um sistema de eleições para os membros da Assembleia da União Africana que é o órgão supremo da União. Sendo uma instituição reguladora, cuja ação incide sobre os estados membros e entidades que os constituem, os membros da Assembleia da União não devem mais ser chefes de estado e de governo, pois isso neutraliza ou enfraquece a atuação da União. Os membros para a Assembleia deverão ser candidatos autónomos, independentes ou o que for, nos diversos países membros da União (melhor se não forem pessoas comprometidas com cargos políticos de seus países), concorrem com condidatos à Assembleia da União do mesmo país e os vencedores nos diversos países formam a Assembleia. Findo o mandato, novos e antigos (que ainda possam ser reeleitos) concorrem para a Assembleia. A União deverá criar um canal ou canais de comunicação continental, seja de TV ou rádio, melhor ambos, para reportar todas as suas atividades e ter como aposta, fazer do desenvolvimento sustentável do continente sua missão independentemente da boa ou má vontade dos estados membros

O critério para as demais organizações que apesar de existirem há décadas sua ação ainda é ínfima ou inexistente deve ser a seguinte: se não faz diferença sermos PALOPs, OPEPs, SADCs, UAs, CPLPs, ou qualquer outra, a nível continental ou mundial, diferença não fará deixarmos de existir como tais.


Mbanza Hamza