Luanda - «Submeto-me à decisão do CC do nosso Partido, cumpro hoje o honroso dever de prestar juramento, nesta cerimónia solene de investidura, para assumir os cargos de Presidente do MPLA-Partido do Trabalho, Presidente da República Popular de Angola e Comandante em Chefe das FAPLA. Funções que vinham sendo desempenhadas com brio invulgar, com dedicação, coragem e perspicácia de estadista genial, pelo nosso querido saudoso Camarada Presidente Agostinho Neto que, inoportunamente, faleceu a 10 Setembro, em Moscovo. Não é uma substituição fácil, nem tão pouco me parece uma substituição possível. É apenas uma substituição necessária.» JES, aos 21/09/1979. 


Fonte: João Pinto

Quis a Fundação Agostinho Neto, que apresentássemos a obra “ AGOSTINHO NETO, E A LIBERTAÇÃO DE ANGOLA, 1949-1974: ARQUIVOS DA PIDE-DGS” , agradecemos e sentimo-nos honrado pela distinção, por tratar-se de um trabalho de investigação e enunciação de documentos sobre a vida de um nacionalista que tornou a utopia do povo angolano uma realidade. Primeiro por ter criado a semente intelectual para o fundamento da luta de libertação que ele dirigiu com todo sacrifício numa «Luta sem Trégua». Segundo por ter sido além de líder espiritual, foi o líder militar, político e diplomático que guindou a Nação aos patamares dos grandes areópagos da humanidade, negociou, transigiu e intransigiu até que no dia 11 de Novembro de 1975, proclamou solenemente a Independência de Angola.


Caracterização da obra:

O trabalho está constituído de 5 volumes, editados pela Fundação Agostinho Neto, contendo um conjunto de documentos da PIDE-DGS, descrevendo todo um percurso de perseguição política, minuciosa quase um big brother, totalizando 4578 páginas e 6000 documentos referentes ao processo 88 arquivados na Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. É um “calhamaço”, pesadíssimo como resultado do peso da História do Dr António Agostinho Neto que se confunde com a História de Angola.
 

António Agostinho Neto: Origens, Estudos e  quatro Prisões

A obra está estruturada de seguinte forma, volume I, trata do período 1949-1960, contento um total de 963 páginas. O volume II, vai do ano de 1961 a 1967, contendo um total de 890 páginas de documentos da PIDE sobre Dr. António Agostinho Neto. O volume III, de 1968 a 1970, com 898 páginas com documentos referentes ao nacionalista. O volume IV, vai do ano de 1971 a 1972, com 949 páginas. O volume V, vai de 1973 a 1974, com 878 páginas sobre o Dr. António Agostinho Neto. Em muitos documentos existem comentários de índole diverso, político, pessoais, raciais e até mesmo depois de extinta a PIDE, há informações sobre o casamento inter-racial de Neto .


O volume I, contêm a substância sobre as origens e feitos heróicos do Dr  António Agostinho Neto ou Kilamba Kiaxi, adiante designado Neto e todo um percurso que até agora era desconhecido, mormente o local e hora do nascimento ( 5 horas do dia 17 de Setembro de 1922, em Kaxikane, Catete) , influencia do Pai Reverendo Agostinho Pedro Neto, natural de Calomboca e influenciados pela cultura reivindicativa de Icolo e Bengo de Mutemu, e da Mãe Professora Maria da Silva Neto, com origens  maternas e paternas de Calulu e Benguela (Catumbela) respectivamente ,  a morte do Pai de Neto, os estudos primários, irmãos, familiares directos paternos e maternos que até então não existiam dados precisos, este trabalho vai ao detalhe para tornar claro as origens maternas e paternas que são endógenas e das populações exploradas e resistentes de Angola que são das regiões Ambundos e Ovimbundos, manifestando um equilíbrio sociocultural de inclusão que acompanhou Neto, na forma como foi aceite como o destinado a libertar Angola do colonialismo e a resgatar os valores positivo da angolanidade ancestral. O primeiro volume é um manancial sobre o percurso daquele que se torno o mais ilustre intérprete da gesta nacionalista angolana, os dados são pormenorizados, há aqui uma História da personalidade e de personalidades e lugares que, até agora, não eram de domínio público, como é o caso dos irmãos dos pais e respectivos descendentes. É o caso das elites instruídas de Icolo e Bengo e seus filhos e personalidades das mais ilustres famílias e até os cruzamentos socioculturais das populações das margens do Bengo e Kwanza. Este volume é uma descrição humana e o romantismo pragmático que guiou sempre António Agostinho Neto  ou Kilamba Kiaxi, intérprete das divindades aquáticas do Kwanza, o rio que corta o País e base da economia nacional. Neto, representa todo um imaginário e realidade que poucos homens almejaram alguma vez, talvez Moisés ao atravessar o Mar Vermelho, libertando os Israelitas do Egipto para Canaá, há algo de metafísico no percurso deste homem. Por isso, ele tinha razão, só podia ser esperado.


Há em António Agostinho Neto um misto de “Messias” e guerreiro destemido, influenciado pela sua formação na infância e juventude, por razões supra referida (influencia familiar, filho de Pastor Metodista), uma educação sólida leva-o para uma observação realistas da vida. Não espera, é o esperado (o desejado da nação: vide o Poema «Adeus à Hora da Largada, III estrofe: Eu já não espero sou aquele por quem se espera»), não era de «falsas modéstias» segundo JES, combate utilizando a poesia, a nobreza do espírito tornado letra, moldado com realismo e romantismo de um carácter enigmático e reflectido. A influência Metodista de cariz analítica e protestante, leva-o a olhar as instituições do Estado Novo, com desconfiança e cautela, por isso, combate utilizando a cultura, com a poesia, alma dorida de um pensador que molda a palavra.
Dr. António Agostinho Neto, mais tarde, vai tornar-se o estudante mais famoso, concluindo a escola primária com dezoito valores, classificado como distinto. Matricula-se no Liceu Salvador Correia em 14/2/1934, concluindo o 7.º ano de Ciências, com 15 valores .


Esta obra, mostra um António Agostinho Neto, em crescimento: infância, juventude, estudante, filho, trabalhador, amigo, apaixonado e camarada, intelectual, escritor, médico, marido, pai, preso, perseguido e revolucionário que funda uma Nação. É uma obra rara, completa para conhecer as dimensões privadas ou familiar e afectiva de Neto e da sua racionalidade discursiva, manifestando o carinho que nutria junto da família e do seu povo, era humanista racionalista.


Este trabalho, mostra as quatro detenções e consequentes prisões injustas, durante dez anos seguidos, 1.ª em 23 de Março de 1952 a 20 de Junho de 1952, depois de uma busca na sua residência na rua Actor Taborda n.º 2, 3.º andar , Lisboa; a 2ª prisão pela PIDE, em 9 de Fevereiro de 1955 a 12 de Junho de 1957, na sua residência na Rua D. Estefânia, em Lisboa às 6h00, por actividades subversivas de «carácter comunista», vai ser neste período que se apaixona por Maria Eugénia, passando a ser vista como «afronta»  por tratar-se de uma relação inter-racial de africano com europeia (negro e branco respectivamente), por pessoas de ambas raças ou povos, mostrando a força de um carácter inabalável e determinado nas convicções, sem preconceito. Neste período, António Agostinho Neto, perde a bolsa de 1.500$00 Escudos mensais atribuído pelo Instituto de Assistência Social de Angola, não lhe sendo permitido fazer exames de frequência e finais na Faculdade de Medicina ou na prisão, perdendo dois anos lectivos, casa-se com Maria Eugénia Neto, no dia 27 de Outubro de 1958 e termina a licenciatura em Medicina, em Lisboa, no mesmo ano, tinha 35 anos de idade e Maria Eugénia 23 anos, tendo como padrinho da noiva Lúcio Lara .


A terceira prisão ocorreu em Luanda, aos 8 de Junho de 1960 a 15 de Outubro de 1960, era resultado do medo que o período causava, procuravam intimidar os nacionalistas africanos. A quarta prisão ocorre em Lisboa, no dia 17 de Outubro de 1961 a 24 de Março de 1962, detido na cidade da Praia, encaminhado para a prisão de Aljube, Lisboa . A libertação de António Agostinho Neto, ocorre em consequência das pressões internacionais, mormente a carta publicada no Times de 2 de Outubro de 1961, assinada por oito intelectuais, nomeadamente Basil Devidson , C. Day Lewys, Doris Lessing (uma premiada com o Nobel), Iris Murdoch, John Osborne, Kenneth Tynan Wain e Angus Wilson, comparando-o com Leopold Senghor do Senegal , embora este nunca esteve preso, embora a envergadura intelectual, despontava como poeta que melhor interpretava os desígnios do povo Angolano. Neto, foi o prisioneiro do ano de 1961, artigo publicado no Sunday Express de Dublin por Peter Benenson, fundador da Amnistia Internacional, com mais oito presos encarcerados sem julgamento .


Devemos lembrar que assumiu a liderança depois de libertado em 1962, eleito pelos pares, derrotando Viriato da Cruz, teve confrontos com políticos com Mário Pinto e desavenças com Viriato da Cruz, dois pesos pesados no nosso nacionalismo, todos eles poetas e escritores políticos com a mesma craveira, no entanto, Neto, superou-os, segundo Mário de Andrade in Laban (1990), pela visão de uma liderança determinada primeiro em consciencializar todo povo sobre o fundamento da luta de libertação sem preconceito de cor, raça, tribo ou grau de instrução, fomentou a divulgação da História nacional dos reis Kongo, Ngola, Mbanlundu, Lunda-Cokwê e Vakwanhamas etc, enviou jovens para formação política e ideológica, militar como é o caso do actual Presidente José Eduardo dos Santos, foi caluniado por ser casado com uma mulher branca, como aconteceu na carta de Holden Roberto de 9 de Agosto de 1962, em resposta à sua carta de 8 de Agosto de 1962, propondo uma Frente de Libertação Nacional Comum, viveu uma pressão de quadros internos complexos antes da independência e proclamou a Independência Nacional, neste período experimentou um conflito interno em 27 de Maio de 1977, teve que utilizar a autoridade ameaçada para repor a ordem, rompendo com a exploração, discriminação arbitrária dos angolanos, era um progressistas ideologicamente, inteligente, carismático, não tolerava a insolência racista seja qual fosse o fundamento, determinado, culto, introvertido ou introspectivo, com um sentido de humor refinado, moral humanista e diplomata morreu em Moscovo aos 10 de Setembro de 1979. Este homem sem igual, merece ser venerado, se erro como político ou estadista, fê-lo em defesa da segurança, são excessos, mas os seus feitos, ultrapassam os seus defeitos, a sua graça desgraçou o domínio português de cinco séculos de humilhação. Os líderes fazem opções, rompem com valores e arriscam a vida pessoal e seus familiares em defesa de um bem comum. Angola, vive onze anos de paz, reivindica-se cidadania e, não o racismo, mas os ideais de Neto, continuam: “O mais importante é resolver os problemas do povo” ou ainda de “ de Cabinda ao Kunene, Um só Povo, uma só Nação.” Estes lemas são uma doutrina indelével que devemos seguir, procurar compreender as falhas, lapsos ou erros humanos, mas o fim é o bem-estar económico, social e cultural de todos.

 

Abrantes, in José Eduardo dos Santos e os Desafios do Seu Tempo: Palavras de um Estadista. pag 17, vol. I. Discurso de Investidura
2 É o caso do documento do Comando-Chefe das Forças Armadas de Angola, sobre informações anotadas sobre comentário da FNLA, relativos ao facto de o «Dr Agostinho Neto jamais poderá vir a ser Presidente da futura República de Angola, em virtude de ser casado com uma branca e portuguesa e esta não poder ser portanto, a primeira dama da futura República», vol V, pag 877. A História veio provar o contrário, Neto foi o primeiro Presidente e fundador da Pátria e Maria Eugênia Neto a Primeira Dama da Iª República de Angola, será sempre a primeira da História de Angola e da Primeira República. O nacionalismo é transracial…
3 Ob. cit. pag 30, vol I.
4 Ob. cit. pag 32, vol. I.
5.Ob. cit. Vol. I, pag. 43.   Ob. Cit. vol. I, pag 78.
6  Ob. Cit. vol I, pag 83.7
7 Ob. Cit.  vol. I, pag 90.
8 Ob. cit.  vol. I, pag 133. Nesta altura nasce a filha Irene Alexandra, em Lisboa, no seu 39º aniversário, estando ele em Cabo Verde, perseguido pela PIDE e tentando a fuga, para depois ser detido e preso…
9 Historiador Britânico, autor de O Fardo do Homem Negro: Os efeitos do estado-nação em África, Campo das Letras, Lisboa:2000.
10 Autora de Um Homem e duas Mulheres, Nobel de Literatura  2007.
11Ob. Cit. Vol. I, pag. 134.
12 Ob. Cit. Vol. I, pag. 142.
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