Luanda -  Alguns juristas, jornalistas e outros cidadãos, vieram a público sustentar a ideia de que alguém terá quebrado o ‘sigilo bancário’ devido ao cliente de um Banco, por ter revelado dados relativos a depósitos e levantamentos suspeitos na conta bancária do Deputado Mfuka Muzemba, que este havia omitido a um órgão jurisdicional de um ente público que o investigava, a UNITA.

Fonte: Club-k.net

Escrevo esta Coluna para opinar que, do ponto de vista do Direito Financeiro Internacional, os Bancos e as pessoas singulares que prestem informações ou denunciem a quem de direito operações financeiras suspeitas, estão protegidos pela lei, têm imunidade na prestação de informações e, por isso, não cometem crime algum. Pelo contrário, servem o interesse público.

Nas últimas décadas, o mundo alterou profundamente o conceito de “sigilo bancário”, porque durante muitos anos tal conceito serviu de capa para se cometerem muitos crimes, especialmente crimes transnacionais de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo.

Em termos simples, ocorre ‘branqueamento de capitais’ quando alguém utiliza instituições financeiras legítimas, tal como os Bancos, para ‘branquear’, ou ‘lavar’ dinheiro sujo. Considera- se ‘ dinheiro sujo’ todo aquele que é obtido de forma ilícita, como roubo, desvio, corrupção, tráfico de influência ou negócio ilícito. Normalmente são somas altas de dinheiro em notas.

Em geral, este dinheiro circula fora do sistema bancário, em malas, caixas de sapatos, contentores, barcos, aviões fretados, etc. Os seus titulares incluem pessoas formadas, que vestem e falam bem, detentores de altos cargos, incluindo Chefes de Estado, ou ex-Chefes de Estado, Ministros, Deputados, Juízes, médicos, presidentes e administradores de Bancos internacionais, pastores de Igrejas, Bispos, consultores, advogados e outros. Portanto, gente fina e poderosa!

Quando estas pessoas depositam este ‘dinheiro sujo’ num Banco, o dinheiro entra oficialmente no sistema bancário internacional, ou seja, fica limpo. É ‘branqueado’. Ninguém mais vai pôr em causa a origem da ‘riqueza’ de alguém assim ‘branqueada’.

Para prevenir, descobrir e punir tais crimes de gente fina e poderosa, as Nações Unidas e outras organizações internacionais adoptaram medidas significativas que têm contribuído para a a sua redução. Uma dessas medidas foi a criação, pelo G-7, em 1989, de um Grupo

Financeiro especializado (FTF, Financial Task Force), a quem foi dada a responsabilidade de estudar as técnicas e métodos de branqueamento de capitais utilizados a nível internacional e estabelecer medidas para os governos do mundo as combater. Em Abril de 1990, o FTF emitiu 40 Recomendações que foram adoptadas como um autêntico Plano de Acção na luta internacional contra o branqueamento de capitais.

Outras medidas adoptadas incluem a criação do Grupo de Países do Sul e Leste de África contra o Branqueamento de Capitais (ESAAMLG, em inglês), na Tanzânia, em 1999 e a Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional Organizado (Convenção de Palermo), em Palermo, Itália, no ano 2000.

Em 2010, atravês de uma Resolução da Assembleia Nacional, a República de Angola ratificou a Convenção de Palermo. No mesmo ano, Angola foi admitida como membro observador do ESAAMLG. Dois anos depois, mais precisamente em Agosto de 2012, o nosso país tornou-se membro de pleno direito da referida organização regional.

Angola foi finalmente admitida como membro efectivo do ESAAMLG exactamente porque decidiu “abolir” o conceito antigo de ‘sigilo bancário’ e substitui-lo pelos conceitos e padrões internacionais adoptados para o combate à corrupção. Pelo menos formalmente. Fê-lo atravês da aprovação da Lei n.o 34/11 de 12 de Dezembro – Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e do Financiamento ao Terrorismo, que revogou a Lei n.o 12/10 de 9 de Julho, com o mesmo nome. Não há mais segredo nem ‘sigilo’ quando se trata de fornecer e obter informações bancárias suspeitas para se combater crimes financeiros.

Adicionalmente, foi aprovado e publicado o Decreto Presidencial n.o 35/11, de 15 de Fevereiro, que institucionalizou a Unidade de Informação Financeira (UIF), entidade pública responsável pela recolha, análise, incluindo, sempre que necessário, a solicitação de informações adicionais a instituições externas, bem como a disseminação aos órgãos policiais e judiciais de operações suspeitas de branqueamento de capitais e de financiamento ao terrorismo e que exerce as suas competências com independência e autonomia técnica e funcional sob a tutela de legalidade e inspectiva do Banco Nacional de Angola.

Na mesma esteira, o Banco Nacional de Angola, na qualidade de garante da legitimidade e da credibilidade do sistema financeiro nacional, e em linha com a referida legislação, aprovou um conjunto de normativos regulamentares, com o objectivo de conferir maior solidez e credibilidade às actividades de prevenção e combate aos crimes de branqueamento de capitais.

No quadro desse combate e nos termos da Lei n.o 34/11 de 12 de Dezembro e do Decreto que a regula,

ß sempre que uma pessoa chegue ao balcão de um Banco e pretenda depositar ou levantar dinheiro num montante igual ou superior ao equivalente a USD 15.000,00, independentemente da transacção ser realizada através de uma única operação ou de várias operações que aparentem estar relacionadas entre si, deve ser identificada de modo ‘especial’ (Artigo 5o);

ß os Bancos, seus administradores, directores, gerentes e empregados, estão sujeitos à obrigação de diligência. Ou seja, para além da identificação dos clientes, dos seus representantes e dos beneficiários efectivos, devem ainda obter informação sobre a finalidade e a natureza pretendida da relação de negócio e sobre a origem e o destino dos fundos movimentados. (Artigo 7.o);

ß os Bancos, seus administradores, directores, gerentes e empregados, estão igualmente sujeitos à obrigação de comunicação. Quer dizer, devem, por sua própria iniciativa, informar de imediato à Unidade de Informação Financeira, sempre que saibam, suspeitem ou tenham razões suficientes para suspeitar que teve lugar, está em curso ou foi tentada uma operação susceptível de estar associada à prática do crime de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo ou de qualquer outro crime. Além dos Bancos e seus empregados, qualquer negociador ou comerciante que faça negócios em numerário num valor igual ou superior ao equivalente a USD 15.000.00, deve comunicar o facto à Unidade de Informação Financeira (Artigo 13.o).

ß Os Bancos estão ainda sujeitos à obrigação de abstenção. Quer dizer, sempre que se constate que uma determinada operação evidencia fundada suspeita e seja susceptível de constituir crime, os Bancos, para além de comunicar à UIF, ‘devem abster-se de executar quaisquer operações relacionadas com o pedido do cliente’, e aguardar pela decisão, comunicada por escrito, ou por qualquer outro meio, cuja informação seja posteriormente confirmada por escrito, pela Unidade de Informação Financeira, num prazo máximo de 3 dias úteis, podendo esta autoridade determinar a suspensão da respectiva execução (Artigo 15o).

A Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais redefine também o conceito, o beneficiário e o objecto do “sigilo bancário”. Se antes o sigilo visava proteger o ‘titular da conta’, que é o cliente do Banco, agora o sigilo deve prosseguir e proteger o interesse público, a justiça e o bem comum, e ignorar o titular da conta. O artigo 17.o da referida lei, estabelece o seguinte:

(Dever de sigilo)


As entidades sujeitas e os membros dos respectivos órgãos sociais, ou que nelas exerçam funções de direcção, de gerência ou de chefia, os seus empregados, os mandatários e outras pessoas que lhes prestem serviço a título permanente, temporário ou ocasional, não podem revelar ao cliente ou a terceiros, que transmitiram as comunicações legalmente devidas ou que se encontra em curso uma investigação criminal.....As informações fornecidas, nos termos dos números anteriores apenas podem ser utilizadas em processo penal, não podendo ser revelada, em caso algum, a identidade de quem as forneceu”.

É verdade que a medida é relativamente nova e todos sabemos que muitas instituições financeiras comerciais no país ainda não a cumprem. Mas o nosso País, ao ratificar a Convenção das Nações Unidas Contra o Branqueamento de Capitais e ser admitido como membro efectivo do ESAAMLG, transformou-se, no plano jurídico internacional, num ‘soldado da linha da frente’ na luta contra o branqueamento de capitais.

Para mostrar que está profundamente engajada nesse combate, Angola decidiu proteger todos aqueles que prestam informações ou denúncias. O Artigo 18.o da referida Lei no 34/11, de 12 de Dezembro, prescreve o seguinte:

(Protecção na prestação de informações)

As informações prestadas de boa fé pelas entidades sujeitas no cumprimento das obrigações mencionadas nos artigos 13.o e 15.o da presente lei não constituem violação de qualquer obrigação de segredo, imposto por via legislativa, regulamentar ou contratual nem implicam, para quem as preste, responsabilidade disciplinar, civil ou criminal.

De igual modo, o Presidente da República, atravês do Decreto Presidencial N.o 35/11, de 15 de Fevereiro, decretou imunidade para todos os que prestam este tipo de informações, nos termos seguintes:

(Imunidade na prestação de informações)

A prestação de informações pelos trabalhadores da Unidade de Informação Financeira, no âmbito das suas funções, às autoridades policiais e judiciais competentes, assim como a outras entidades da administração pública, no âmbito da cooperação, não consubstancia violação do dever de confidencialidade, pelo que não implica para aqueles nenhuma responsabilidade. (Artigo 31.o).

Nesta base, é irrelevante saber-se como é que o órgão jurisdicional competente de um ente público obteve a informação relativa aos depósitos e levantamentos suspeitos nas contas bancárias que o Deputado em questão escondera. É irrelevante saber-se se quem forneceu a informação foi o administrador ou o trabalhador de um Banco, ou se foi um trabalhador da Unidade de Informação Financeira do BNA ou outro cidadão qualquer.

Quando alguém vem a público, nas vestes de jurista, professor de Direito, Polícia, Juíz ou de analista, reclamar ‘violação do direito à privacidade’ do cliente, ou violação do ‘sigilo bancário’, em conexão com a descoberta de actos flagrantes de corrupção, está a proteger os crimes de corrupção e de branqueamento de capitais. Porque a ‘privacidade’ do ‘cliente’ cede perante bens jurídicos de valor mais elevado, como a justiça, a legalidade, o Estado de direito e o interesse público, intrínsecos ao combate a tais crimes.

Cumprir com a obrigação de sigilo, nos termos da Lei no 34/11, de 12 de Dezembro e do Decreto Presidencial n.o 35/11 de 15 de Fevereiro, significa exactamente o contrário. Significa cumprir a obrigação de comunicar, a quem de direito, todas as transações suspeitas; significa cooperar com todas as investigações judiciais e jurisdicionais; significa, finalmente, não revelar ao cliente ou a terceiros, que transmitiram as comunicações legalmente devidas ou que se encontra em curso uma investigação criminal.

No século XXI, o beneficiário do ‘sigilo bancário’ não é mais o cliente, especialmente quando sobre ele recaiam fortes suspeitas de ter cometido crimes financeiros. A ‘privacidade’ do cliente termina onde começa o interesse público, ou quando o cliente é investigado por crimes financeiros, especialmente aqueles que envolvem o uso indevido de fundos públicos.

O ‘sigilo bancário’ deve beneficiar e proteger o interesse nacional de Angola enquanto membro do ESAAMLG, e não o interesse particular. Deve promover o combate à corrupção institucionalizada, que amiúde se manifesta nas operações de branqueamento de capitais que, infelizmente, muitos Bancos sedeados em Angola ainda promovem e protegem.

Angola espera que a Comissão de Ética e Decoro da Assembleia Nacional, a Procuradoria Geral da República, a Polícia Económica e todas as entidades que participaram no Workshop sobre o Combate ao Branqueamento de Capitais e ao Financiamento do Terrorismo, promovido pela Unidade de Informação Financeira do Banco Nacional de Angola no passado dia 6 de Dezembro, em Luanda, tomem as medidas necessárias para a defesa do interesse nacional, quer em relação aos Deputados, quer em relação ao Senhor Bento dos Santos Cangamba e demais cidadãos sobre os quais recaiam fortes suspeitas ou indícios de violação da Lei.

*Mestre em Finanças, Bancos e Títulos Internacionais