Luanda - Eram 7 da manha, quando ainda ensonado, pisotiei o asfalto rumo a Benguela. Agora ia ao encontro do meu pai que pela primeira vez me apresentaria a praia Morena, a Baia azul e a Baia Farta, sem falar da docilidade grátis que entrementes ainda se avistava com alguma facilidade naquela terra. Também estava ansioso para conhecer com intimidade a famosa benguelense.


Fonte: Club-k.net

Estamos a investigar os excessos e esquecimentos típicos na arrumação da bagagem em qualquer viagem normal. Já está tudo pronto disse! qualquer erro é necessário senão perderemos o dom da humanidade.
    

A cada etapa que atingíssemos nesse percurso, parávamos para festejar com abraços e apertos de mão. Meu pai explicara o nome e timidamente a estória de cada aldeia ou pequena cidade ali descoberta. Era prazeroso! Sem falar do arraigado kimbundo que enaltecia, ao traduzir os sembas que nos acompanhavam. Ouvíamos incansavelmente Dom Caetano e Os Jovens do Prenda. Como todo pai, sempre tentou impregnar suas preferências, seus gostos e desejos aos filhos.
    

Nesse momento e como sempre foi durante a viagem, traçávamos os interstícios para repousar a alma. Já paramos á beira de uma pequena aldeia qual não lembro o nome, pelo que não foi o mais marcante, senão quando num mercado comunitário da mesma, paramos sorridentes pela etapa atingida e saudamos cordialmente á cultura local, as humildes vidas que se comunicavam connosco com uma humildade e um complexo assustador e preocupante. Por um momento meu pai dirigiu-se ás comerciantes e verdadeiras militantes feministas, para comprar qualquer alimento, até para compensar o exemplo de dignidade humana, enquanto seria abordado por um rapaz de aparentemente 7 a 8 anos.
    

Esse rapazote, com o instinto publicitário aguçado e precoce, tentava   dissuadir-me a comprar a banana que vendia. Não tenho dinheiro mô puto, disse! O rapazote ainda tentou esforçar mas sem sucesso. Em seguida aceitou o não e rendeu-se a pedir agora em troco de nada, dinheiro para comprar um caderno.  Possuído pela mentalidade asfaltada, não conseguia visualizar qualquer sinceridade, quando dei-lhe o único 50 kz com o intuito de me desfazer da criança, pois que sua imagem me cortara o coração a cada instância da nossa prosa. Seus pés estavam calçados com calos e empoeirados pelo tornozelo, as mãos pequenas ressequidas e emprestadas a vida adulta, o cabelo crespo entregue aos raios solares tal como a tez, só teve mesmo a bênção de ser vestido pela melanina que como negro lhe defendia da natureza. Pegou o dinheiro e com o punho serrado saiu radiante a esmo, enquanto lhe fiscalizava a metros de distância se me permitem a redundância, quando de repente meu coração sangrara e meus olhos também se perceberam vestidos de lágrimas, ao ver o menino efectivamente, comprar o caderno sem nem ter vindo me provar o seu acto e ser digno de pelo menos um elogio.
     

Naquele instante pensei: Meu sobrinho ou qualquer outra criança lá em Luanda no centro da cidade, nunca me pediu dinheiro para comprar caderno, nem os mais comerciais e lúdicos, revestidos de cores e adereços customizados. Como é que uma criança vitíma e esquecida pelos pretextos da desigualdade social, como  argumentam no país os maus gestores, ainda pensa em caderno? como pensa em estudar? o que pensa sobre o futuro? Aí me lembrara atempadamente que o homem é produto da sociedade e que tudo que existe ou inexiste em sua mente é fruto do que lhe rodeia ou não lhe rodeia. Foi quando engoli a amargura assistida e o questionei: O que pensas ser no futuro mô puto? Sorrindo mas tímido e com o complexo aflorado no semblante, disse então_ quero ser como você, grande , viajante, na sua forma de explicar, e estudar para ser professor. Para além de estudar ainda pensava em educar.


Na verdade ele me olhava como espelho e eu o olhava como espelho, nossas imagens reverberavam reciprocamente como referências mutuas, dei-lhe um aperto de mão seguido de um abraço, aconselhei a não acreditar nos homens e nem seguir partidos políticos, mas para ser político a todo momento, pois só assim poderia ser um homem feliz; um homem livre. Nessa altura, também o pedi para não perder a sensibilidade e amor pelas coisas simples da vida que o restante era do mundo e não nosso como homens. Ele com um olhar sábio agradeceu e me pediu também: Passe sempre aqui, vou esperar por você, não deixe de nos visitar ya! falando como se não estivesse em Angola. Sua provável mãe, nos olhava com desconfiança e esperança simultaneamente pelo que me pareceu. Desconfiança de talvez comercializar seu filho ou destrata-lo, esperança de talvez dar um nome ao seu filho. Nome que ele tinha vergonha de  dizer porque só estava aprendendo a escrever. Se chamava Eyulo Otchile, verdadeira vitória em Umbundu.