Luanda - Quem tenha assistido à cerimónia de abertura do Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins estará ainda, seguramente, arrepiado pela despropositada evocação da Alemanha feita pelo presidente da federação angolana da modalidade, Carlos Alberto Jaime, relativamente ao prazo da conclusão das obras do pavilhão.

Fonte: Novo Jornal

A língua soltou-se-lhe na hora errada e a sua infeliz tirada tendo sido, no mínimo, deselegante do ponto de vista diplomático, só configura, mais uma vez, a nossa exuberante propensão para a cultura da arrogância.

Mas, não apenas isso. Atesta também o impulso para comparações disparatadas de que, desgraçadamente, estão impregnados muitos dos nossos dirigentes políticos e associativos. Só falta agora propagar que esta obra coloca-nos ao mesmo nível da Alemanha, ou seja, ao nível da terceira potência económica mundial...

Gabarmo-nos de termos construído em Angola em nove meses um pavilhão que levaria dois anos para ser edificado na Alemanha, ao contrário do que possa parecer, essa patética comparação, destituída de bom senso mas besuntada de eufórica embriaguez, não é nada que nos deva encher de orgulho.

E eu explico porquê.

Primeiro: a partir do momento em que foi aprovada a sua candidatura para organizar o certame, Angola tinha a obrigação de começar
a fazer os deveres de casa. E, que eu saiba, essa candidatura não foi aprovada há nove meses...

Segundo: ao erguer a obra em cima do tempo, essa, como qualquer outra empreitada, fica sempre condenada a drenar custos adicionais e um volume incontrolável de “gorduras” que não entram na contabilidade...

Terceiro: uma obra desta dimensão na Alemanha, por razões inerentes à nossa inércia produtiva, não custaria, seguramente, os milhões que foram sacados aos cofres do Estado, nem poria a descoberto a falta de planificação que presidiu à sua construção em Angola.

Quarto: na Alemanha, uma empreitada desta envergadura teria sido objecto de um concurso público, que, de resto, é o que diz a lei.

Quinto: com a obra erigida contra o tempo, a pressa, se bem ajuízo, comporta- se sempre como inimiga da perfeição.

Nestas circunstâncias, o seu brilhantismo exterior, nalguns casos, pode não passar de uma capa de verniz, cobrindo uma madeira carcomida pelo muchém. Não foi isso que vimos no Hospital Geral de Luanda?

Sexto: a exemplo do que acontece lá fora, não percebo ainda por que não foi feito um teste ao pavilhão antes do jogo inaugural.

Percebe-se assim, que, facilmente, tenham sido destapadas, condições de trabalho deploráveis para o desempenho profissional dos jornalistas.

Sétimo: país cioso da sua contabilidade como são os suíços com os relógios, a Alemanha, seguramente, teria pensado duas vezes se, diante do uso e desaproveitamento dos pavilhões construídos para o Afrobasket, valeria a pena partir para este mundial, sem ter presente o que fazer para rentabilizar os novos pavilhões quando a euforia acabar...

Oitavo: quando se apregoa, que estamos perante o maior acontecimento desportivo jamais organizado em Angola, o CAN e os Jogos da África Central falam por essa grosseira e inadmissível tentativa de negacionismo do nosso memorialismo.

Mas, não é apenas isso, que está a tornar intrigante a propaganda que rodeia este mundial.

Quem tenha assistido, primeiro, à inauguração do pavilhão e depois à cerimónia de abertura do mundial, não pode ter deixado de ficar
atónito também perante mais um arrepiante festival de idolatria à figura do Presidente.

Tendo sido eleito democraticamente, fica por saber o que se pretende provar com manifestações de histeria cada vez mais sofisticadas mas, ao mesmo tempo, mais corrosivas para a sua própria imagem. Porquê?

Porque o Presidente foi eleito para governar e “resolver os problemas do povo” e não para ser bombardeado com doses insuportáveis de bajulação. Para quem tenha sido eleito de forma folgada como foi eleito o Presidente, convenhamos que começamos a estar diante de uma desnecessidade emocional, que começa a ultrapassar os limites do racionalismo político.

Esse desvario só pode ser impulsionado pelos rasgos de obsessão, que estarão a corroer, literalmente, a mente de dirigentes políticos, que não conseguem agora balbuciar uma só palavra de conforto aos cidadãos, sem deixar de atribuir o valor da cidadania “à sua excelência o Camarada Presidente”...

Era como se, fora do grupo da “batucada”, não existisse mais inteligência ou como se, por via de uma misteriosa falta de lucidez generalizada, ninguém mais em Angola pensasse pela sua própria cabeça.

A verdade é que, com uma classe média refém de um “endeusamento bárbaro” à volta da figura do Presidente, estamos a fazer crer ao mundo que, em Angola, o único ser pensante é o Presidente. Os diplomatas que aqui residem riem-se dessa nossa súbita perturbação cerebral...

Pulverizando todos os records que enojam por este mundo fora o culto de personalidade, estamos a fazer crer à sociedade que a inteligência colectiva do nosso país começa e acaba na Cidade Alta. Ora isso, como toda a gente sabe, não é verdade.

 

Sucumbidos à uma brutal despersonalização, só falta fazer crer aos nossos filhos, que a sua existência se deve ao Presidente!

Por este andar, um dia desses ainda eremos o Ministro dos Desportos a declarar solenemente, perante o mundo, que Carlos Morais foi fazer testes à NBA graças ao Presidente!

 

É hora de recordar o Rei da Espanha, Juan Carlos: “Por que no se callan”?

Mesmo admitindo que, eventualmente, o Presidente não subscreva essas manifestações de alucinação colectiva em torno da sua figura, é avisado saber, porém, que é a sua imagem, em última instância, que acabará por sair ridicularizada.

A história assim o diz...

Pior do que isso, é já Angola que, lá fora, começa a ser vista como detentora de uma população que professa uma estranha “religião” cujos distúrbios exigem agora urgente tratamento psiquiátrico.

Ninguém percebe porquê mas, na verdade, começa a ser confrangedora a imagem que, nesta matéria, andamos a passar ao mundo, como se, num excêntrico exercício de emulação comunista, pretendêssemos concorrer com a Coreia do Norte...

A psicanálise teria aqui um campo fértil para investigar as causas desta nossa estranha turbulência mental. Como escreveu o grande William Shakespeare na famosa peça de teatro Hamlet,” algo vai podre no reino da Dinamarca”...