Luanda - Ao longo de algumas semanas, a comunicação social doméstica divulgou uma série de notícias sobre o diferendo que opôs a UNITA, através do seu órgão de jurisdição, e o seu militante Mfuka Muzemba, ex-presidente da JURA e deputado à Assembleia Nacional pelo mesmo partido.

Fonte: SA

A polémica foi de certo modo alimentada por várias acusações mútuas, réplicas e tréplicas, deixando transparecer a existência de um conjunto de actos susceptíveis de responsabilidade criminal e civil, tais como corrupção activa e passiva, suborno, violação de sigilo bancário, dentre outros. Para alguma comunidade político-partidária, este exercício representou uma clara demonstração de abertura democrática por parte da UNITA, algo que não é comum entre nós, mais concretamente no seio dos partidos. Há pois,a percepção centralista do Estado que vaza a ideia de que os partidos políticos são corpos paralelos ao Estado e os interesses que veiculam não são necessariamente consentâneos com o interesse do próprio Estado (interesse colectivo e difuso) e como tal os diferendos entre os seus militantes são estranhos à própria sociedade merecendo um tratamento diferenciado revestido de completa descrição numa atitude que passou a ser identificada pelo conhecido adágio popular: Roupa suja lava-se em casa», numa clara homenagem a ideia monista do Estado, mas ultrapassada formalmente em 1992.

Para algumas correntes da opinião pública, esta percepção sectária de filiação político-partidária foi quebrada de modo exemplar expondo-se um problema interno aos olhos do eleitorado destinatário último dos interesses partidários em Estados de vocação legal e democrática. Uma coragem elogiosa que, certamente, imputável aos militantes que tiveram a coragem de partilhar os interesses partidários com o vasto público eleitor e que marca um dos raros momentos encorajadores da sofrível democracia angolana. E o exercício contraditório, de tão rico em factos, trouxe um conjunto de situações novas ou, pelo menos, pouco habituais na praça pública, como foi a polémica sobre quebra do sigilo bancário, cujos contornos jurídicos tivemos a oportunidade de escalpelizar neste espaço através de um longo comentário, entre outras questões de interesse público e particular que rechearam o conjunto do processo em análise.

Com todos os elogios que o debate pôde arrancar, pecou, entretanto, na forma como foi publicamente tratado. Pois, tendo sido revelado um conjunto de actos e factos imputáveis às partes e rotulados como criminosos, a imprensa não seria a única interessada em esclarecer as questões que foram levantadas e colocaram em causa o bom-nome, não só das partes directamente envolvidas directamente, como de pessoas com cargos públicos de reconhecida importância. Numa sociedade regida pelo primado da lei, a revelação a público, nomeadamente pelos órgãos de comunicação social, de factos susceptíveis de incriminar as pessoas envolvidas e de revelar condutas desordeiras que arrepiam as normas de direito penal, não seria um mero exercício de liberdade de imprensa, no âmbito da sua missão de satisfação de interesse público por meio da informação. Seria também preocupação do Estado procurar o esclarecimento de tais factos, sobretudo daqueles que põe em causa a sã convivência colectiva e como tais rotulados como condutas criminais de interesse público, i.é, crimes públicos.


Na verdade, o Estado dispõe de um órgão cuja missão essencial é, inter alias, o exercício da acção penal e a defesa dos direitos de outras pessoas singulares e colectivas no exercício da acção penal (art.o 189.o, n.o1 – Lei Constitucional – LC (Constituição da República de Angola segundo o legislador). E esse órgão é a Procuradoria-Geral da República (PGR), que é por sua vez constituído por outros órgãos, designadamente: o Ministério Público (MP), o Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público e a Procuradoria Militar. É certo que a sistemática constitucional estabelece uma ordem de precedência orgânica que coloca o MP entre as primeiras enunciações normativas tratando-se de esquematizar a organização e o funcionamento da PGR, engendrando justificada confusão para quem se empresta aperceber a natureza jurídica deste órgão do Estado. Todavia, cabe ao MP o exercício da acção penal em se tratando de tutela judicial dos direitos e interesses criminalmente relevantes.

Em circunstâncias normais, a PGR teria intimado as partes em diferendo procurando arrancar delas as verdades dos factos ...por meio de uma instrução processual tendente a apreciação e decisão judicial. Pois, os factos por si de interesse público foram, para agravar, veiculados por um partido político, vocacionado a gestão do Estado e um militante com funções de representante do povo, no exercício do cargo de Deputado à Assembleia Nacional. Pela denúncia do crime de corrupção activa e passiva, a PGR, através do MP, devia convocar as partes por meio de competente notificação, convidando-as a exibirem as provas dos factos noticiados pela imprensa.


Há já vários episódios que demonstraram a capacidade de iniciativa do MP diante de denúncias públicas de factos susceptíveis de responsabilidade criminal, em que este órgão da PGR empreendeu acções criminais por meio de denúncias públicas veiculadas pela comunicação social. Os exemplos completamente públicos dispensam descrição. O caso da rapariga (Mingota) que foi sujeita ao mau atendimento numa das unidades hospitalares públicas vindo a falecer, por manifesta responsabilidade do seu corpo clínico, é um deles.

Ora, tratando-se de denúncia sobre crimes públicos, como é a corrupção activa e passiva envolvendo pessoas com grandes responsabilidades políticas é completamente inexplicável a atitude de passividade do MP. Pois, arrepia a mais ínfima sensibilidade jurídica que factos criminosos de interesse público passem pelas barbas de um órgão como é o MP com toda a serenidade possível como se não estivéssemos num Estado de Direito e Democrático. Que haja uma explicação sobre a razão dessa postura, se nada estiver a ser feito em nome da legalidade. Dixit.