EUA - Conheci o Dr. Carlos Morgado, o antigo líder da UNITA (primei- ro) e da CASA-CE (depois), que acabou de falecer em Portugal, nos anos 80, no Sudeste de Angola. Estáva- mos numa pequena pista de aterragem. O Dr. Savimbi estava numa conversa intensa com o encarregado da pista – que iria orga- nizar candeeiros de petróleos para orientar a aterragem do pequeno avião King Air, que viria da África do Sul.

Fonte: SA

Não muito longe desta pista de aterra- gem, o Dr. Savimbi tinha uma casa de ma- deira, bem camuflada, com salas de reuni- ões e de jantar, além de escritórios para os diferentes membros do seu entourage. O Dr. Carlos Morgado fazia parte deste cir- culo – que chamávamos como a coluna do Mais-Velho.

Desde então, eu via o Dr. Morgado, que faleceu com cinquenta e nove anos, fugaz- mente – mas sempre em momentos de mui- ta acção.

Como vários quadros da UNITA, passei pelo Centro de Estudos Kapessi Kafundan- ga – onde entrei com catorze valores, penso eu. Muitas das palestras eram dadas pelo próprio Dr. Savimbi. Lembro-me, porem, de uma tarde em que o Dr. Morgado falou sobre iniciativas para se evitar a propaga- ção de doenças. Muitos de nós jovens achá- vamos o seu sotaque, fortemente angolano, um pouco estranho: cá estava um jovem médico branco, formado na Universidade do Porto em Portugal, mas que falava como nós. Muitos de nós queríamos saber mais do Dr. Morgado.

Soubemos então que ele era também mé- dico pessoal do Dr. Savimbi. Na altura, em meados dos anos 80, o Dr. Savimbi estava em constante movimento. Logo depois, houve a ofensiva de Mavinga: o falecido lí- der da UNITA ia para a frente do combate, com o Dr. Carlos Morgado ao seu lado. Isto fez com que muitos militantes das FALA passassem a respeitá-lo profundamente. Estou a ver o Dr. Morgado ao lado de Jo- nas Savimbi, a atravessarem uma mata nas áreas do Kazombo, no Leste de Angola. No fim dos anos oitenta, saí das matas e fui es- tudar na Europa.

A vez seguinte que vi o Dr. Morgado foi em Londres, quando o Dr. Savimbi fez uma digressão pelo Ocidente. Ele andava atrás do então líder da UNITA - que saia de reuniões para reuniões – a insistir para que comesse qualquer coisa. O Dr. Savimbi disse que não gostava da comida do hotel. Mas o Dr. Morgado tinha também que se meter em corrida porque tinha de aparecer no Instituto de Assuntos Internacionais

(Chatham House), onde o Dr. Savimbi esta- va a discursar. Quando o então correspon- dente do jornal britânico The Independent, Richard Dowden, perguntou se a UNITA tinha dificuldades em acomodar brancos e mestiços nas suas fileiras, o Dr. Savimbi apontou para o Dr. Morgado – insistindo que ele, além de ser seu médico pessoal, era também o responsável pelos assuntos de saúde das Fala. Lembro-me que houve gen- te que ficou genuinamente surpreendida: Jonas Savimbi com o seu médico branco nas matas de Angola!

Ainda nos anos oitenta, o Dr. Carlos Morgado instalou-se na Jamba, adaptan- do-se completamente à vida das matas. Depois houve também o seu casamento ao mesmo tempo que o do falecido Celestino Kapapelo. A minha mãe, que foi vizinha do Dr. Morgado na Jamba, lembra-se bem dos tempos em que ele ia para a frente de com- bate, alturas em que ela passava a conversar com a sua esposa, a Celita, que foi professo- ra pré-escolar. Muitas pessoas que estavam

na Jamba contaram-me que se dizia-se que lá estava um casal jovem branco que, em vez de estar a viver em conforto em Portu- gal, tinha decidido vir para as matas, para sofrer ao lado de todas as pessoas.

O Dr. Carlos Morgado foi alguém que se identificou sempre com os menos favoreci- dos. Talvez isto tivesse a ver com a sua in- fância. Embora, tenha nascido em Luanda, ele passou parte da sua infância no Norte, precisamente no Uíge, onde o seu pai bioló- gico acabaria por desaparecer. Ele cresceu com o seu padrasto. No Porto, onde a fa- mília se instalou depois da guerra de 1975, ele passou a identificar-se muito com a co- munidade africana. Um dos seus melhores amigos na altura era o escritor José Edu- ardo Agualusa, com quem chegou a criar a revista literária «Via Longa», para a qual o Dr. Carlos Morgado escrevia poemas. O Agualusa lembra-se que na altura o Carlos Morgado era profundamente antiguerra e chegou mesmo a oferecer-lhe um livro de Gandi. O Agualusa lembra-se também

que o Dr. Carlos Morgado era tão generoso que chegou a oferecer a sua própria camisa a um mendigo – e estava sempre pronto a partilhar o dinheiro que ganhava no seu trabalho numa cantina com os africanos que enfrentavam dificuldades.

Foi nesta altura que o Adalberto da Cos- ta Júnior, que era muito activo na JURA, passara a sensibilizar o Dr. Carlos Morga- do para a causa da UNITA. Alguém que esteve ligado à JURA em Portugal naquela altura disse-me que então a capacidade or- ganizativa de Carlos Morgado estava mui- to avançada. Depois da JURA no Porto, e tendo concluído o curso de Medicina, ele iria para as matas da UNITA. Depois dos acordos de paz de 1991, ele iria a Luanda. Nos confrontos que se seguiram, chegou a ser ferido e detido por alguns meses. Mais tarde, ele foi para Portugal. Na representa- ção da UNITA em Lisboa, via sempre o Dr. Carlos Morgado altamente activo – porem, nunca tive a oportunidade de manter uma conversa profunda com ele. E havia muita coisa que eu queria saber dele.

Em 2003, já depois da morte do Dr. Savimbi, cheguei a encontrar-me com o Dr. Carlos Morgado em Luanda, num workshop sobre organização política pa- trocinado pelo Partido Republicano Ame- ricano. Ele não tinha gostado nada das coisas que eu falara sobre o Dr. Savimbi. Para ele, as minhas afirmações de que o lado autoritário do Dr. Savimbi teria preju- dicado muito a UNITA não eram válidas. O Dr. Carlos Morgado foi fiel ao Dr Jonas Malheiro Savimbi ate ao fim.

Em todo caso, o Dr. Carlos Morgado fez parte da comitiva, liderada por Abel Chi- vukuvuku, que, em 2003, ajudou na as- censão de Isaías Samakuva à presidência da UNITA. Depois a UNITA, como um partido normal democrático, continuou com os seus debates – por vezes bastante acalorados. Notei que o Dr. Carlos Morga- do tinha ido para a CASA-CE, o que é nor- malíssimo na vida dos partidos. Alguém que o conheceu bem disse-me que uma das suas características era a imensa ca- pacidade de trabalho: tarefas que levavam três meses a certas pessoas, eram execu- tadas por ele em duas semanas. Isto fazia também com que ele fosse muito exigente, quase inflexível – o que, claro, nunca agra- dou a todos. Pode-se dizer tudo do Dr. Carlos Morgado, mas ninguém pode co- locar em causa o seu patriotismo e o amor intenso que tinha por Angola. Perdemos, na verdade, um grande compatriota, cuja vida, de tão interessante, terá de ser conta- da ao resto da nação angolana. ■