Luanda - A implementação das autarquias em Moçambique, em 1998, instalou duas vias de “descentralização”, uma para os cidadãos urbanos, outra para os cidadãos rurais. A primeira é referida como descentralização democrática, a outra como desconcentração. Enquanto as autarquias prometem uma futura democracia eleitoral, a desconcentração parece cultivar as instituições do passado colonial e do partido único.

Fonte: Club-k.net

O “gradualismo” promete a criação de mais autarquias, mas estas não vão chegar às zonas rurais num tempo próximo. Ao contrário, são dois sistemas de governação local que caminham, gradualmente, em dois sentidos diferentes.

Em vez de criar unicidade, uniformidade e simplicidade no país – aliás, um sistema a aperfeiçoar – essa bifurcação tem criado dois sistemas que competem entre si por recursos escassos e pela atenção dos políticos.

Na prática os dois sistemas sofreram duma excessiva partidarização, pelo que adiante vamos mostrar como essa excessiva partidarização impediu um desenvolvimento mais harmonioso desses sistemas.

Zonas rurais: Administradores, conselhos consultivos e os régulos

Em 1998, perante a constatação de que as autarquias não seriam implementadas nas zonas rurais, colocou-se a questão de saber como se iria governar as zonas rurais e as localidades mais pequenas.

Como fazê-lo num país a sair de uma guerra civil e de um sistema de partido único, onde a governação era extremamente centralizada?

Todos concordavam na necessidade de desconcentrar e de descentralizar o poder, mais ainda, num momento em que a administração local do Estado (os distritos e os postos administrativos) se encontrava num estado lamentável, com pouquíssimos recursos humanos e materiais, ao ponto de lhes faltar tudo, desde instalações físicas até esferográficas, de contabilistas a canalizadores.

Mas, apesar do Estado arvorava a necessidade gritante de se enraizar, através da representação e participação dos cidadãos locais, o governo da Frelimo deu prioridade a duas medidas: a reabilitação e restauração das “autoridades tradicionais” e a instalação de novos órgãos de representação local chamados Conselhos Consultivos.

A autoridade tradicional, depois de instrumentalizada pelas autoridades coloniais, foram perseguidas ou marginalizadas, durante o período do “poder popular”, orientado pela Frelimo, nos anos 1970 e 1980.

Em 2000, a Frelimo Estado promoveu a promulgação de uma lei que fazia a reabilitação e integração das Autoridades Tradicionais como autoridades administrativas de base, significando que os régulos e outras autoridades tradicionais deveriam ser reconhecidos como Autoridades Comunitárias.

Em poucos anos, foram implantadas quase 4500 Autoridades Comunitárias, com direito ao usa de um uniforme e dos símbolos da República e de usufruir de um subsídio para representar o Estado, nas suas localidades. A cooptação e o controlo das autoridades tradicionais foram medidas de grande sucesso para a Frelimo que, usando meios públicos, atingiu efectivamente um dos flancos da Renamo.

Nos distritos quem mandam são os administradores que, nomeados de cima, também prestam contas aos seus superiores hierárquicos. Para remediar a falta de participação e representação da população não-urbana, o Governo decidiu - a partir de 2005 - instituir Conselhos Consultivos (CC) em todos os 130 distritos.

Estes CC, que são quase idênticos aos Conselhos de Auscultação e Concertação Social (CACS) em Angola, visavam garantir a participação de “todos os grupos” nas comunidades, pelo que albergam no seu seio representantes da administração Estatal, régulos, mulheres, jovens, etnias, ricos e pobres, enfim, todos – menos dos partidos políticos, a não ser do partido do Governo que estava aí mais do que representado e até era quem indicava ou convidava, directamente ou através dos seus administradores, os membros destes conselhos.

Os CC, se originalmente tinham um papel importante na planificação e determinação do orçamento do Distrito, rapidamente passaram a ter como actividade principal, a distribuição dos dinheiros do “fundo de desenvolvimento distrital”. Este programa, geralmente designado por “7 milhões”, tinha por vocação providenciar crédito, em pequenos empréstimos, para estimular a produção e o emprego rurais.

Mas, apesar de muita propaganda laudatória, o “7 milhões” tem produzido poucos resultados em termos de desenvolvimento, embora tenha servido para praticamente garantir a reeleição de Armando Guebuza, em 2009: Dezenas de milhares de pessoas receberam pequenas somas dos CC.

Sem surpresas os conselhos consultivos não conseguiam actuar com a eficácia dos bancos, na exigência dos reembolsos, mesmo porque os “empréstimos” concedidos foram para amigos, familiares ou, frequentemente, para os próprios membros dos CC que já guarnecidos por membros da Frelimo, ainda adoptaram um critério partidário na distribuição dos fundos.

No distrito da Gorongosa, onde a guerra em Moçambique recomeçou recentemente, 70% dos beneficiários eram membros da Frelimo. Assim, a cada ano, os CC eram contemplados com nova dotação orçamental que era distribuída e já ninguém falava de planificação distrital.

As autarquias urbanas

A história das autarquias urbanas em Moçambique é mais rica e complexa em termos de desenvolvimento institucional, e regista muitas acções de desenvolvimento bem-sucedidas. Embora isto tenha sido mais verdade para as grandes cidades do que para as vilas mais pequenas.

Quanto mais pequenas as localidades, mais as autarquias se tornam mais dependentes da Administração Distrital e gozam de menos prestígio. A filosofia de autarquia que Moçambique adoptou inspira-se, principalmente, no sistema jurídico-administrativo português, que prevê a autonomia política e a auto-suficiência em recursos.

Mas, como seria isto possível numa pequena vila, em plena zona rural, desprovida de recursos próprios, em que toda actividade económica está sob controlo do Administrador e com apenas alguns milhares de pessoas, na sua grande maior parte pobres, sem grande capacidade de pagar impostos locais?

Para quê ir às urnas para eleger representantes da autarquia da vila, se quem manda na localidade, na prática, é o Administrador Distrital, que faz parte dos “homens do Governador e Ministros, que têm os recursos”. Pior ainda, diz vox populi, “se elegermos um político da oposição como Presidente da Autarquia, os cidadãos podem ser prejudicados pela má relação que terá com o Administrador da Frelimo”.

As dificuldades da implantação e funcionamento das autarquias, no contexto da sobredita bifurcação moçambicana, são muito maiores do que as que ficaram enumeradas, mas o denominador comum é a excessiva politização e partidarização das instituições “descentralizadas” e “desconcentradas”.

Nas autarquias, cada Presidente do Conselho trouxe consigo um novo “staff” para a sua governação. Na administração local do Estado, ser membro da Frelimo é quase uma obrigatoriedade para conseguir um lugar de funcionário público. Os quadros dos partidos da oposição são excluídos.

Em vez de gastar suas energias para construir instituições de governação local que garantissem estabilidade institucional e bons serviços públicos, o governo moçambicano criou instrumentos para garantir a dominação de um partido. A obsessiva ideia de que “quem ganha as eleições” tem de ficar com todo, inviabilizou a criação de uma governação do país pluralista e de unidade, na diversidade.

Nos distritos, as prioridades partidárias inviabilizaram a criação de uma administração profissionalizada e deram lugar a arbitrariedades das autoridades comunitárias e dos CC. Uma das graves consequências desta reforma da lei foi que os partidos da oposição, principalmente a Renamo, perderam interesse pelas instituições de governação local.

Em vez de aproveitar a autarquização, para formar os seus quadros no dia-a-dia da política e na administração local, a Renamo desvalorizou-a e fixou-se na ideia de um dia vir a ser ela a “ganhar tudo”, através das eleições gerais. Depois deu-se conta de que essa via está bloqueada pelo predomínio hegemónico do partido de poder, em relação aos mecanismos de regulação das eleições.

Aprendendo com estas lições, Angola, no processo de implementação das autarquias, deve investir tudo na criação de um sistema integrado, legítimo e participativo, construindo uma instituição que toda a gente reconheça como a representação da política local, e não só de um grupo ou partido.

*Cientistas sociais da Universidade Católica de Angola e do CMI (Noruega).