Para ele a questão mais importante para o país é a Constituição e, por isto, vai constituir uma comissão ad-hoc para redigir um texto constitucional que vai ser, “eventualmente”, submetido à “discussão alargada antes da sua aprovação pelo parlamento”, pois, segundo ele, há, no país, duas correntes sobre a forma de eleição do Presidente da República: uma que acha que o Presidente da República deve ser eleito por sufrágio directo dos cidadãos eleitores e outra que defende que o mais alto magistrado da Nação deve ser eleito por sufrágio indirecto, através dos deputados à Assembleia Nacional. 

Para mim isto é uma grande novidade. Na verdade, nunca ouvi ninguém se pronunciar sobre a forma de eleição do Presidente da República que não fosse através do sufrágio universal e directo que é o que está consagrado na Constituição e que sempre fez unanimidade. 

Melhor, a forma de eleição do Presidente da República nunca foi objecto de debate, mesmo se eu escrevi, há uma determinada altura, que não tendo havido condições para realizar a segunda volta das presidenciais de Setembro de 1992, não se devia ter adoptado uma solução oposta à lei mas fazer uma emenda transitória à Constituição, no sentido do Presidente da República ter sido eleito pela Assembleia Nacional saída do escrutínio de Setembro de 1992, já que este era o único órgão de soberania com legitimidade popular. Mas essa minha observação circunstancial não teve nenhum eco no meio dos políticos e constitucionalistas angolanos. 

O presidente-deputado disse também que somente depois de aprovada a nova constituição a eleição do presidente da República se fará. Torna pois a estabelecer um linkage entre a aprovação da “nova constituição” e a realização de eleições. O compromisso por ele assumido, depois de aconselhado pelo Conselho da República, de realizar eleições presidenciais em 2009 não é relembrado. Paira sobre a bruma da política nacional.

Isto significa que dos Santos não quer se submeter a eleições presidenciais do estilo republicano, com apresentação de candidaturas e defesa dos seus argumentos perante os cidadãos. Ele prefere um processo distante que o salvaguarde dos incómodos de uma campanha na primeira pessoa.

Para lá do que isso significa, o mais importante é assinalar que mais uma vez JES recorre a sua habitual forma inquinada de “negociar” o contrato social. A proposta que está subjacente é facilmente perceptível: da cidade alta ao alto das cruzes, com honras e garantias absolutas de continuidade.

Sendo assim, por muito antipático que possa ser o personagem, o paradigma de “negociação” que JES nos propõe é o da transição de Pinochet a contrario. Este ditador do Chile foi o protagonista do golpe de Estado que derrubou o governo democrático dirigido por Salvador Allende. Após uma forte repressão da resistência republicana e democrática, Pinochet apostou numa nova forma de legitimidade que passou pelo desenvolvimento económico e pela constituição de uma classe média fortemente interessada nesse novo Chile.

Quando percebeu que a sua grande fragilidade era a legitimidade política e que a ditadura não podia ser mantida por muito tempo, fez da legitimidade económica e social moeda de troca e negociou a sua saída do poder através de referendo. Organizou o plebiscito sobre a continuidade do seu poder e perdeu (o referendo) por uma estreita margem de quatro/cinco pontos, mas aceitou os resultados e deixou a Presidência da República, tornando-se senador vitalício, depois de ter concordado na redemocratização do país, tendo organizado eleições presidenciais sem a sua presença.

Esta negociação valeu-lhe, anos mais tarde, ser defendido pelo Governo democrático do Chile das mãos da justiça britânica. O ministro dos Negócios Estrangeiros, do Chile, um antigo resistente que este muitos anos nas cadeias de Pinochet, que viu alguns dos seus familiares desaparecerem nas masmorras do general chileno, foi lá busca-lo, em nome da unidade e da salvaguarda da paz civil no seu país.

No caso do nosso país, José Eduardo dos Santos, depois de trinta anos de poder, não quer negociar a sua retirada. Pelo contrário, quer que a nação aceite a sua continuidade vitalícia. Depois do golpe eleitoral, o que tem a nos propor é a sua “eleição”, como candidato único e de mão levantada. 

Esta proposta, cuja a meta é o poder vitalício, quiçá a imortalização do seu poder através da sucessão de sangue, é extrema e pode significar, não somente a morte do processo de transição para a democracia mas igualmente o fim da política, pois, a ser assim, o poder volta a identificar-se completamente com o corpo místico do monarca absoluto, em quem se concentra a “política”, a economia, o social, o “sagrado” (o saber?) e a violência.

Mas, enquanto o príncipe pretende tornar-se perpétuo, grassa a fome nos Gambos, onde morrem todos os dias pessoas – segundo as notícias que nos chegam pela voz das ONGs que lá trabalham. O dito plano de segurança alimentar não se tem revelado eficaz, apesar de utilizado como propaganda de boa governação, como aconteceu no recente debate, de fim-de-semana, da RNA.

* Cientista político
Fonte: AGORA