Luanda - Nestas minhas curtas caminhadas como jornalista (de quase 10 anos ou mesmo já 10 anos) fui convidada a participar de um projecto que se dedica avaliar o cumprimento pelo Estado dos direitos materno e reprodutivos das mulheres, mas eu diria das família, já que a reprodução é um tema de interesse também para os homens e com reflexos aos demais membros da família.

Fonte: Club-k.net

O trabalho tem sido desenvolvido pela Delma Monteiro e eu. Ela uma activista cívica conhecidíssima, e especialista em questões de género e eu, uma aprendiz entusiasmada. Para a Delma é nadar em águas conhecidas, quanto a mim, um universo por explorar.

No princípio, quando ainda não tinha percebido exactamente o âmbito e o alcance da proposta e do quanto exigiria fiquei apreensiva, mas pouco tempo depois transbordei de alegria por finalmente perceber que é parte de um tema central, de forte interesse de estudo e de trabalho ( direitos fundamentais sociais).

O projecto é uma iniciativa da Fundação Open Society que tem como objecto recolher informações sobre o sistema público de saúde, de modo particular no que toca aos serviços especializados de atendimento à mulher, às condições desses serviços, a abrangência, o acesso e as carências.

Está a ser um trabalho pedagógico, de investigação e de descobertas. Viemos a descobrir, por exemplo, que todos hospitais que realizam partos devem ter entre os seus médicos especializados um neonatologista, que é um especialista na área da pediatria que trata dos recém nascidos até aos 28 dias de vida, altura em que o bebé deixa de ser considerado recém-nascido.

É de grande importância a presença desse profissional, pois é ele quem deve fazer a observação, o acompanhamento e os possíveis diagnósticos de anomalias ou doenças de que padeça o bebé. Em todas as unidades que visitamos até ao momento (cerca de 10) não foi encontrado um sequer.

Talvez, a ausência desse profissional seja um dado importante para se estudar e perceber o número elevado de mortes de recém-nascidos no nosso país.

Outra pequena importante descoberta foi a de saber que Angola está a preparar um serviço público para reprodução assistida. Numa entrevista que fizemos a Dra. Dulce da Silva, obstetra da Maternidade Lucrécia Paím, no programa Mátria da Ecclesia (dedicado ao tema da maternidade e reprodução, em todos os primeiros sábados de cada mês), soubemos que a Maternidade Lucrécia Paim vai albergar o primeiro Centro Nacional de Reprodução de Angola, muito em breve.

A Dra. Dulce disse-nos também que, naquela unidade, já se faz tratamento de fertilização e de reprodução de baixa intensidade, que consiste, por exemplo, em ter relações sexuais programadas e outras técnicas naturais.

Sempre supôs que entre nós não existiam grandes dificuldades reprodutivas, no entanto, a Dra. Dulce surpreendeu-nos ao afirmar que cada vez mais é frequente assistir casais jovens com problemas em engravidar, o que entendemos como um dado geral, onde a leitura possível é a de que, apesar de não existirem números exactos, é grande e está a aumentar o número de casais afectados pela infertilidade, e infelizmente não conseguem todas as respostas em Angola.

O que torna o processo mais desgastante, tanto do ponto de vista emocional, quando do ponto de vista financeiro. Mutos têm de ir ao estrangeiro, gastar as suas parcas poupanças no sentido de realizar o desejo e o sonho de serem pais. Já para não falar dos casais pobres, esses praticamente não tem onde recorrer senão o serviço público de saúde, onde as dificuldades nos são conhecidas.

A Dra. Dulce disse também que é ainda muito forte o pensamento segundo o qual se um casal tem problemas em engravidar é algo que tem haver apenas com a mulher, com os órgãos reprodutivos femininos. É falso. O problema pode igualmente estar no homem.

Mas o fundamental é que a medicina recomenda e trata como um assunto do casal e o tratamento deve ser feito por ambos. Outra surpresa foi saber que uma das principais causas da infertilidade (ao menos em Luanda) são as infeções sexualmente transmissíveis, para as quais as mulheres têm maior propensão.

Na assistência a saúde sexual e reprodutiva contamos com ginecologistas, obstetras, urologistas e até andrologistas. Estes últimos também estão em falta, são fundamentais no estudo do

O sistema reprodutivo masculino, em caso de tratamento conjugal para fertilização. Ao que parece, o andrologista analisa o esperma masculino e determina a sua qualidade para a fecundação ou não. Como nota, é um mundo de várias descobertas.

Quando a conversa chega ao nível de neonatologistas e de andrologistas, percebemos exigência e qualidade na complexidade. Entretanto, nalguns centros médicos públicos o problema ainda é básico. Faltam ginecologistas e obstetras, há uma carência geral de médicos, e é gritante.

A cooperação Angola-Cuba está a tentar cobrir alguns buracos no interior, mas não consegue tapá-los todos, ficando ligeiramente como as nossas estradas. Segundo as nossas contas, dos 10 hospitais que visitamos, todos eles funcionam com menos de 80 porcento da quantidade de médicos que é necessária para um atendimento de qualidade, para a quantidade de pacientes que recebem todos os dias, ou para o número de habitantes do município ou da comuna.

O que gera enchentes, demora no atendimento, transferências arriscadas e em alguns casos à morte do paciente, claras violações às regras de saúde estabelecidas pela OMS (Organização Mundial da Saúde). No hospital dos Cajueiros, por exemplo, até o mês de Novembro, não havia uma marquesa em condições. As que lá se encontravam não eram recomendáveis para as parturientes, dado o seu estado de degradação, com o risco de danos na coluna da mulher.

O mais interessante foi fazer a relação entre o jurídico e o sanitário para perceber o quanto de pessoal e social há nessa abordagem. Neste caso em particular, desejo referir os direitos fundamentais sociais, plasmados e alargados na Constituição de 2010, para não ser cansativa, sitos o direito à vida ( art.o 30o); o direito a integridade física (art.o 31o), o direito de procriação e de criação (n.o 2 do art.o 35.o); direito à saúde e protecção social durante à maternidade (art.o 77); o direito à qualidade de vida (art.o 85.o), normas estas que se estabelecem em respeito respeito a um dos princípios fundamentais da nossa organização jurídico-política: o da justiça social, tendo em conta um dos propósitos económico e social que é o desenvolvimento do país.

Esses direitos são uma exigência do nosso texto normativo, em primeiro lugar, e de outros documentos normativos internacionais de que Angola é parte.

Apenas para referir, embora não esteja na discussão, pela primeira vez, no texto constitucional, foi consagrado o direito á habitação, um claro sinal de como o legislador constituinte entendeu que o resguardo legal-constitucional às questões sociais é fundamental na actual fase de reconstrução do país, na questão da justiça social e do desenvolvimento humano nacional.

Não entraremos agora em complexidades jurídicas, mas diremos apenas dizer que, a consagração dessas normas é um passo, mas a caminhada faz-se realizando-as. E no caso dos direitos materno-reprodutivos, como direitos relativos à saúde, a interpretação que se pode fazer da norma constitucional (que em si não encerra dificuldade), como exigência prática, é de entendimento de qualquer cidadão médio: que haja um investimento público sério, que exista compromisso político e social do Estado, especialmente para com as mulheres em zonas mais vulneráveis, que sejam criadas estruturas, que sejam formadas e capacitadas pessoas, que se trabalhe na eficácia e eficiência dos serviços de atendimento às mulheres.

Entretanto, também sabemos que os direitos sociais não se realizam de um dia para outro, daí estarem sujeitos ao critério da progressão temporal ou seja, hoje melhor que ontem, e amanha melhor que hoje. Sabemos também que o elemento temporal está sujeito a disposição financeira (e outros que as teorias jus fundamentais e constitucionais explicam), ao quanto em dinheiro o Estado tem disponível, ao quanto é orçamentado e ao como é feita essa orçamentação.

Nesse aspectos, notamos como sinal de retrocesso e falta de empenho governativo nas questões de saúde, a redução da verba do orçamento para a saúde neste ano, o corte aos orçamentos dos hospitais municipais (embora o programa de municipalização faça outra alocação para todas as unidades do município); a inexistência de um sistema social de assistência e protecção especial às mulheres grávidas e aos casais em fase de gestação mais desfavorecidos.

E quando assim se procede, vemos claramente violação ao princípio da progressão (ou do não retrocesso) dos direitos sociais. A responsabilidade governativa é do executivo, mas há também responsabilidade política dos partidos, existe responsabilidade social por parte de pessoas colectivas privadas, de garantia dos direitos do cidadão, por parte de órgãos de justiça, como a PGR e os Tribunais, e de compromisso com o bem-estar, por parte dos demais órgãos do Estado.

Que se afinem os instrumentos de trabalho, pois com a saúde não se brinca.