O MANIFESTO foi elaborado por Viriato, após conversas com três dos Companheiros mais próximos: Jacinto, Mário Alcântara Monteiro e Bandeira Duarte, na sequência da verificada adesão reduzida e desaconselhada de longe, ao Partido Comunista Angolano, que ele, com aqueles dois e Mário António Fernandes de Oliveira, também o então ainda muito jovem Adriano Sebastião e poucos mais, haviam fundado antes. Mário de Andrade, em casa de quem em Rabat, Marrocos, colaborei durante algum tempo, na elaboração de documentos em 1965, para a CONCP, mostrou-me o original do MANIFESTO e dos Estatutos do PCA, com muitas notas à margem, de correcções, pelo seu punho, sobretudo nas primeira e última página daquele, e respondeu com muitos pormenores à minha curiosidade. No regresso a Alger, falei disso, entusiasmado, ao Luís de Almeida, que também sabia muita coisa, até porque dactilografou, com a Ruth Lara e a Maria Judith Santos, a versão final do MANIFESTO, em Conakry, em 1960.

O MANIFESTO visava criar um amplo MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA, que reunisse no seu seio, a crescente massa de angolanos, que escondiam no peito e na mente, uma enorme revolta, uma vontade difícil de conter, de partir para a luta de vida ou morte, contra a opressão colonial. Face à crescente vigilância das forças repressivas, desde que em África, os ventos de liberdade nascidos da vitória na guerra contra o nazismo e o fascismo, na qual participaram e verteram o seu sangue, numerosos soldados africanos, começaram a soprar mais fortes, a despertar ideias, a repercutir no canto e nas melodias, do incomparável luar angolano em noite escura, era preciso organizar-se e agir. A táctica, era criar vários grupos, pequenas organizações, tertúlias políticas, amigos de confiança, por profissões, local de trabalho, residência, para que o movimento não fosse decapitado de um só golpe. Quando fosse chegado o momento, fundir-se-iam no AMPLO MOVIMENTO, que já era, sem aparecer nem declarar-se, o núcleo dirigente, do ideal revolucionário. Contactos, do Congo, exigiam rapidez, porque lá também, algo mexia. Mas o grupo, constituído por gente muito séria, pretendia organizar-se, com os pés fincados na terra.

Sabia das tentativas rapidamente sufocadas, se bem que não exactamente nestes parâmetros, desde os princípios do século. Esta foi perspectivada, a partir de pressupostos ideológicos e revolucionários. Uma posterior tentativa, de solução pacífica teve o silêncio e o desprezo, como resposta salazarenta e o acréscimo das perseguições. Daí, a Conferência, que anunciou em Londres, na Câmara dos Comuns, “a passagem à acção directa”.

As peripécias, tantas vezes dilacerantes, que ocorrem em todas as organizações políticas, centradas no sigilo rigoroso, no esforço e sofrimento consentido dos seus membros, haveria tarde ou cedo, de gerar também desta vez, contradições, rupturas e até mesmo antagonismos profundos, à partida considerados inultrapassáveis, que só o tempo cicatriza, e a vitória colectiva pode e deve sarar definitivamente.

Deixando a matéria a outros, à exclusividade de conhecimento total de historiadores, dou um salto, para episódios mais terra-a-terra: através de Zito Van-Dunem, do Clube Marítimo Africano, em Lisboa, receberam de Luanda, os meus Mais-Velhos directos de então, o João Vieira Lopes (Bavil), o Gentil Viana, o Carlos Pestana Heineken (Katyana), o Edmundo Rocha, o Carlos Ervedosa e outros, no ano seguinte, uma fita gravada, com poemas declamados, de Jacinto, Neto, Viriato, Mário António, Maurício Gomes e Leston Martins, com música de Liceu Vieira Dias, tocada por ele próprio. Passado cerca de um ano estávamos em 1958. Num quarto, no Lar da CEI, que não sei neste momento, dizer com certeza, se era o do Tutu, do Katyana, ou do Patito, cerca das 7 da noite, hora em que todos os ruídos se confundem, escutei a médio som, com uns poucos da minha idade, essa fita gravada. Para mim, que até então gravitava indeciso, há dois anos e tal, mais frequentemente, na periferia do PCP, sob influência do Portela, do Pequito, Zé e David Bernardino, e do Arménio, desde essa noite, o conteúdo maravilhoso dessa fita definiu o marco simbólico da minha adesão sem retorno, ao ainda não proclamado, mas já existente MPLA, até hoje. Só em Outubro de 1961, em Itália, recebi finalmente o Cartão de militante. Eu sei, alguns criticam-me, vários não me aceitam, uns poucos não compreendem, que eu esteja ainda, onde estou, seja como sou e pense como penso. É simples, chamar-lhe coerência. Seria redutor.

Os generalistas e os mestres dão-lhe adjectivos ofensivos, aos quais nunca respondo, por dignidade e respeito por mim próprio. Todos sabemos, que o MPLA de então, não é exactamente o mesmo de hoje, como não foi sempre exactamente o mesmo, em todos os instantes, ao longo do seu percurso, de mais de meio século. Sei tudo isso. Ainda não cheguei a clone de quadrúpedes. Os que vieram do Sudão, para ajudar o MPLA, pereceram todos, longe do seu deserto natal. Eu também atingi o zero. Nunca, porém, como Agostinho Neto, que elevou o nada, ao tudo que fosse possível, através dos impossíveis que venceu. Eu sou do zero, para permanecer simplesmente zero, até ao fim, um estado único, consciente, de felicidade, como que em permanente levitação, nuvem que não chove, mas às vezes chora, sequer sol pequenino, que só raramente brilha, dos raios e reflexos de um sol maior, o que nos reúne, desde ontem e de hoje, e dos amigos fraternos, os que restam e o são deveras. Mas sei também, no saber pouco, do meu conhecimento de memória já em declínio, que o cerne, a veia mais profunda, por onde corre o sangue essencial ao palpitar do coração do MPLA é o mesmo de ontem, de hoje, e acredito ainda, que será o de amanhã. Esteve presente, no entusiasmo das multidões, que transportaram na sua vontade sincera, sem calculismos, que nada justificaria, nas convicções e na decisão final, o resultado de 5 de Setembro.

 Ontem, como hoje, o MPLA, teve na hora exacta, ao leme da sua nave, um timoneiro certo, apesar das variáveis condicionantes. Por isso, acertou e venceu, independente da feroz exigência de imitação a qualquer preço, de processos e realidades outras, que se globalizam, sem premissas idênticas às nossas. Até gente, milhões de vezes muito mais inteligente, incomparavelmente mais preparada do que eu, do astro da sua compreensível arrogância, navega nessa onda. É normal ser como outros. Em desuso é sermos nós. Desejariam, quem sabe, talvez, mesmo um tsunami, que varresse as nossas latitudes, com incidências totais, até ao Mayombe, Alto Zambeze e à Tundavala. Escrevi e publiquei aqui, o que talvez mal, penso disso.

 O MPLA tem de tudo fazer, legal e certo, mais e melhor. Conseguir para o seu candidato, uma maioria superior àquela, que conquistou para si, por não existirem de facto, alternativas de tempo e modo. Os sinais preocupantes de várias descaracterizações, que se manifestam aqui e ali, as propostas tergiversas, que vão surgindo, se bem que não constituam, nem se prefigurem como qualquer ameaça, nem motivem receios imaginários, podem cobrir, com uma pouca penumbra, a vitória possível, de um brilho de sol, sobretudo se crescerem a jusante.

Tenho para mim, que bastará, não descaracterizar mais a essência. Tantos são mas tão pequenos os grandes gestos necessários, para atingir a meta. Temos, por exemplo um, muito simples, aguardado por milhares, há algum tempo. Temos sido capazes de reconciliar-nos, com todos quantos fizeram do MPLA, seu alvo de morte. Porque não reconciliar-nos com a nossa própria História? História, que deu e daria assim, ainda mais ao seu pendão, o orgulho glorioso do exemplo e da certeza, de sermos hoje, como ontem, um símbolo sem senão, da Pátria Angolana, capaz de ser melhor e maior, enquanto cresce.

 A geração, dos que iniciaram a caminhada, na realidade esteve e estará sempre presente, citada, nas gerações sucessivas. Elevá-la ao pódio, mais do que um dever é um exemplo maior, da nossa grandeza. Raríssimos são os movimentos ou partidos da nossa idade, em todo o mundo, após os traumas sofridos, capazes de ter sobrevivido de pé, como tem sido o nosso. Até o PRI do México, reabilitou Emiliano Zapata. Falta-nos apenas, querer ultrapassar, os nossos visíveis senãos, sem complexos, nem preconceitos, para que a nossa unicidade, seja apontada positiva, pelos demais, sem medo, despeito ou qualquer outro sentimento de frustração.

O meu 10 de Dezembro conjuga no mesmo meu abraço modesto e simples, além de José Eduardo, Gika, Santiago, Rui de Matos, Kapangu, da minha geração, todos os Nomes, desde Neto, Lara, Jacinto, Viriato, Mário, Joaquim, Cónego, Deolinda, Aníbal, Carvalho, Medina, Gentil, Henda, Iko, Bula, Dilolwa, Dangereux, Fadário, Kwenya e muitos milhões, que uma vida, não seria capaz sozinha, de lembrar e de citar. E se os recordo do meu 10 de Dezembro, não quero excluir, nem rejeitar, os muitos outros, que através de outras bandeiras, também quiseram dar e chegar com um quinhão, ao 11 de Novembro do nosso povo inteiro. Bem hajam todos, até ao reencontro, cedo ou tarde o que tardar.

*Ndunduma Wé Lépi
Fonte: JA