A frase sobressaltou a advogada Maria do Carmo Medina, já conhecedora e defensora das actividades clandestinas, quando a ouviu da boca de João Cardoso, um activista pela independência de Angola e que viria a morrer, uns anos depois na prisão de São Pedro da Barra.

A expressão — «dois Carnavais» — funcionava quase como uma senha de cumplicidade entre quem estava a preparar, há largos meses, um assalto às cadeias de Luanda.

Na primeira linha dos preparativos, aparecia Manuel das Neves, um cónego mestiço, dos raros não-brancos de origem portuguesa a integrar a Igreja Católica. Era ele que servia de elo de ligação entre os presos, os seus familiares e dirigentes políticos. E, sobretudo, um instigador, a partir do seu pequeno quarto numa paróquia de Luanda, da revolta armada, «com sangue», «contra o colonialismo». Como director do jornal O Apostolado, Manuel das Neves conseguia fazer passar algumas mensagens subtis para o exterior ao mesmo tempo que ia dando notícias sobre as movimentações de alguns nacionalistas que viviam no estrangeiro. Servia-se ainda do jornal e de contactos com os paroquianos para manter ligações com activistas em Luanda, mas também com gente que viajava frequentemente entre os bairros periféricos de Luanda e o Congo, via Matadi. E era através desses viajantes, a maior parte de origem congolesa ou nascidos no Norte de Angola, que Manuel das Neves ia tendo conhecimento das movimentações de nacionalistas e do nascimento primeiro da UPNA e depois da UPA.

Há muito que o cónego, vigário-geral da diocese de Luanda, vinha defendendo a necessidade de Angola se tornar independente. Desde a década de 50, sobretudo nos derradeiros anos, que Manuel das Neves recebia, em sua casa, perto da Sé de Luanda, o também padre Joaquim Pinto de Andrade, que, tal como o irmão, Mário, começava a participar nos movimentos que lutavam pela independência. As conversas, de acordo com a memória de Pinto de Andrade, não variavam muito e eram em tudo idênticas a tantas outras em que Manuel das Neves mantinha com outros activistas e que serviam para espalhar ideias nacionalistas:

«Ele dizia que era preciso quebrar este mito [que os angolanos não queriam a independência e gostavam de ser portugueses] e isto só fazendo um acto de força, um acto que tivesse repercussão internacional para que todo o mundo visse que os angolanos queriam ser independentes. E planeava em conversas em que dizia: "Não é preciso muita coisa, para se fazer uma guerra e vencer. Não. É só para fazer um acto que dê brado lá fora e quebre o mito." Então, eu disse-lhe: "Como, com que armas, senhor cónego?" E ele respondeu-me: "Armas brancas, portanto, catanas, punhais... assaltar cadeias onde haja presos políticos para os libertar e, no mesmo dia, assaltar a rádio e as principais esquadras da Polícia e ir pela Rua do Balão até a Fortaleza e hastear a bandeira nacional. Bom, temos de fazer uma bandeira nacional, temos de inventar uma."»

Na procura de um acto espectacular, Manuel das Neves defendia que era necessário espreitar uma oportunidade. Por exemplo, quando houvesse jornalistas estrangeiros em Angola. O ensejo, tantas vezes desejado, surgia proporcionado por Henrique Galvão, quando decidiu desviar o navio Santa Maria. Demitido do exército, onde tinha o posto de capitão, o escritor e político Henrique Galvão resolvia assaltar o paquete, com 970 turistas, que se propunha atravessar o Atlântico com destino ao Brasil. A «Operação Dulcineia» começara no início de Janeiro. Henrique Galvão encontrava-se na Venezuela à espera do navio que deveria fazer escala em Caracas a caminho do Rio de Janeiro. Galvão e mais 20 elementos — entre portugueses e espanhóis que combatiam as duas ditaduras ibéricas — do autoproclamado, DRIL, Directório Revolucionário Ibérico de Libertação, tomavam de assalto o navio anunciando que pretendiam atracar em Angola. Mal foi dada a notícia do sequestro do navio, jornalistas de quase todo o mundo aterravam em Luanda. No entanto, a aventura de Henrique Galvão terminava no Brasil, precisamente na noite de 3 de Fevereiro, poucas horas antes dos assaltos às cadeias. Luanda estava «apinhada de jornalistas, cineastas e locutores de rádios», de acordo com um relatório da PIDE, elaborado dias depois.


Manuel das Neves recebia a colaboração empenhada de Mariana Ana Paz, que tinha a incumbência de levar comida para os presos da Casa de Reclusão Militar, na Cadeia de São Paulo, quase todos eles, detidos por participarem em actividades subversivas contra o regime. Mas não só. Cada visita era acompanhada por mensagens, não apenas do cónego, mas de outros activistas. E, no interior dos bairros, pontificava o «mais-velho» Cardoso Sebastião Gamboa, considerado, pela população, como tendo poderes «mágicos». Há várias semanas que Cardoso Gamboa obrigava os chefes de outros bairros a uma rigorosa quarentena, com vigílias permanentes ao fim do dia, no cemitério, e um jejum absoluto. Os chefes seguiam assim as práticas tradicionais de feitiçaria importadas do Congo, em que até se usava uma panela a ferver, a cozer uma carta, que se dirigia a Patrice Lumumba e com o objectivo de o informar o que se preparava em Luanda. O «campo dos brasileiros», no Bairro Rangel, servia de palco para as reuniões clandestinas e os preparativos em que se pedia a inspiração e ajuda dos espíritos. As catanas e os cassetetes iam sendo benzidos por dois curandeiros, em cerimónias praticadas na casa de Paiva Domingos da Silva que, uns meses antes, viajara até ao Congo em busca de poderes mágicos.


Enquanto decorriam estas movimentações pela cidade de Luanda, os presos políticos viviam, praticamente em todas as cadeias, com uma espada sobre a cabeça: a possibilidade de, a qualquer momento, serem transferidos para o Tarrafal, a ilha cabo-verdiana, onde foi construída uma prisão de alta segurança inspirada nos modelos dos campos de concentração nazis.

Além do desejo de fuga, Manuel das Neves, Cardoso Gamboa e os presos políticos não tiravam da cabeça os últimos acontecimentos em Angola. Depois do «Processo dos 50», o mês de Janeiro desse ano, assistira aos actos mais sangrentos dos últimos tempos provocados pelo regime e provavelmente o maior banho de sangue da história colonial portuguesa. Na Baixa de Cassanje, província de Malanje, milhares de agricultores das fazendas de algodão — a maior parte deles vindos do Sul e obrigados a trabalhar no Norte — revoltavam-se com as condições de vida. Exigiam apenas a abolição do trabalho forçado e o fim do pagamento de impostos, fazendo greve nas plantações algodoeiras, num movimento liderado por António Mariano. Os protestos não se limitavam à greve. Durante dois dias, foram queimadas sementes, algumas pontes sobre os rios apareceram destruídas e as missões católicas, as lojas e casas de colonos sofreram ataques. As tropas portuguesas reagiram, colocando em acção as companhias de caçadores especiais e aviões que lançaram bombas incendiárias.

A investida das tropas coloniais, da polícia e de alguns colonos, além de esmagar a rebelião, provocou a morte a mais de oito mil agricultores que trabalhavam para a Companhia de Algodão de Angola e para a Cotonang, uma fazenda algodoeira de capitais mistos de portugueses e belgas. O massacre de Cassanje não passava despercebido pela imprensa em quase todo o mundo, ao mesmo tempo que os jornais em Portugal, subjugados pela lei da censura, nem sequer arriscavam a abordar o assunto. No entanto, ganhava outra dimensão no topo da polícia política. Por isso, logo a seguir ao massacre de Cassanje, nascia o SIGGA (Serviço de Informações do Governo Geral de Angola) que reunia as informações recolhidas pela PIDE e por militares e a meio do ano dava lugar ao SCCI (Serviço de Centralização e Coordenação de Informações). Iniciava-se assim uma colaboração, entre a polícia política e as forças armadas, que, no entanto, em 14 anos, iria passar por diversas dificuldades de entendimento.

Os acontecimentos de Cassanje, que se repetiram, mas com resultados de menores dimensões, nos dias imediatamente seguintes, deixavam fortes marcas a muitos dos sobreviventes que encontraram refúgio nas periferias das cidades mais importantes, como Benguela, Novo Redondo, Nova Lisboa e Luanda.

O dia 4 de Fevereiro ameaçava ser um dia igual aos outros vividos nos últimos tempos em que os musseques da capital angolana ardiam de ansiedade. Luanda preparava-se para as noites de folia e matinés dançantes que eram quase milimetricamente preparadas pela burguesia portuguesa, já adaptada à alegria luandense e também pelos angolanos «de segunda».

Na Casa de Reclusão Militar, o nacionalista Mendes de Carvalho, preso no âmbito do «Processo dos 50», com ligações estreitas aos grupos de enfermeiros e alfaiates que entretanto se formaram em Luanda, tentava entregar, há largos meses, um recurso ao Supremo Tribunal Militar, escrito na cadeia e baseado num código de Justiça Militar, que ele próprio consultara. Os argumentos do recurso foram delineados com a ajuda de André Franco de Sousa, que já se vinha destacando por ter participado nos primeiros passos do MPLA. No decorrer do julgamento, Mendes de Carvalho ficara sem o acompanhamento do advogado, porque todos os juristas se recusavam a defendê-lo a partir do momento em que, em plena sala de tribunal, resolveu acusar os portugueses de serem «um povo bárbaro».

No entanto, o recurso só poderia ser entregue em Lisboa, precisamente por um causídico. Também por carta e por sugestão de André Franco de Sousa, Mendes de Carvalho solicitara a ajuda do bastonário da Ordem dos Advogados, Adelino da Palma Carlos, que, no entanto, recusara recorrendo ao argumento de «falta de tempo». O nacionalista angolano virava-se então para o advogado Luís Saias, que, ao aceitar, recomendava o envio de uma procuração, «com muita urgência». A resposta de Luís Saias chegava à Cadeia de São Paulo no final da tarde de 3 de Fevereiro de 1961. Mendes de Carvalho decidia-se por pedir o auxílio ao irmão, num telefonema, em que lhe solicitava que fosse buscar, à cadeia, uns documentos para serem «transferidos para Lisboa».

As palavras «transferidos» e «Lisboa» soavam, de imediato, como campainhas que accionavam os sentidos e os permanentes receios dos presos. À velocidade de um fósforo aceso, passava a informação na cadeia que todos os detidos seriam transferidos, no dia a seguir, para a capital portuguesa. O mesmo era dizer: para a ponte de passagem a caminho do Tarrafal. Fizeram-se malas, arrumaram-se os parcos haveres, avisou-se as famílias e o rumor depressa se propagou nos bairros dos arredores de Luanda, onde há muito se aguardava um sinal para atacar os estabelecimentos prisionais.


De madrugada, na passagem de 3 para 4 de Fevereiro, precipitava-se tudo. Um foguete, accionado num bairro vizinho da Cadeia de São Paulo, rebentava às quatro horas da manhã, dando sinal para que mais de 2.50 pessoas, divididas em 10 grupos, e vestidas de camisolas e calções pretos e de catanas em punho, largassem os bairros a caminho das cadeias. Destes, apenas quatro grupos entravam em confrontos directos com as forças portuguesas e conseguiam atingir os alvos: a Cadeia de São Paulo e outros estabelecimentos prisionais da cidade de Luanda. Dentro da prisão, os grupos de presos que, há meses, preparavam a fuga, resolviam avançar, pegando em todos objectos que fossem cortantes. Os primeiros ataques provocavam a morte a um cabo, de apelido Silva, que fora decapitado, sendo a primeira vítima da longa madrugada luandense. Em poucas horas, morriam 40 assaltantes e sete guardas prisionais, de acordo com dados oficiais divulgados pelo Governo-Geral de Angola.

Na preparação dos ataques, estiveram envolvidos 3.123 homens, todos recrutados nos bairros periféricos, e comandados, no terreno, pelos angolanos Paiva Domingos da Silva e Francisco Imperial Santana.

Ainda na manhã de 4 de Fevereiro, Mendes de Carvalho era chamado ao gabinete do director. Sobre ele recaía a suspeita de ter dado o sinal para os ataques. Já escritor, assinando com o seu pseudónimo em kimbundu, Uanhenga Xitu, Mendes de Carvalho, recorda, num livro publicado depois de 1975, essas horas que ele próprio admite não saber como conseguiu sobreviver.(...)

De Conakry, mal souberam dos acontecimentos em Luanda, os dirigentes do MPLA, a viver no exílio, resolviam reivindicar a autoria dos assaltos. Coubera a Mário Pinto de Andrade, presidente do movimento, as primeiras palavras de regozijo pelo que se passara na capital angolana. O presidente do MPLA, acompanhado por outro dirigente, Lúcio Lara, emitia um comunicado em nome do Comité Director do MPLA, intitulado «Os incidentes de Luanda». O texto recordava os acontecimentos na capital angolana e dos dados oficiais, sobre o número de mortos, e voltava a falar na «acção directa». (...)

Mas o «4 de Fevereiro» não iria acabar na manhã desse dia. Dias depois, logo após os funerais das vítimas, grupos de civis brancos organizavam autênticas batidas pelos musseques da periferia de Luanda e provocavam a morte a centenas de pessoas. Uma semana depois, o «filme» era retomado, mas em menor escala. Novos tumultos nas cadeias faziam sete mortos, todos presos, e mais 17 feridos. E novas incursões dos mesmos grupos de civis deixavam um lastro de sangue e provocavam um número elevado de vítimas mortais que nunca chegou a ser contabilizado.

No intervalo dos dois ataques, o governador-geral de Angola, Silva Tavares, resolvia fazer uma incursão pelos musseques — ou «bairros excêntricos», como eram descritos pela imprensa em Lisboa — acompanhado pela polícia e por jornalistas previamente escolhidos. Silva Tavares pretendia assim demonstrar que a situação se encontrava calma. Logo a seguir à visita, o governador lia uma mensagem, na Emissora Nacional, garantindo que reinava a calma em Luanda e recomendando às pessoas para acatarem as ordens e recomendações da polícia. (...)


Fonte: rubelluspetrinus.com.sapo.pt