Terminada essa fase da nossa história recente, passados da emergência ao desenvolvimento (como os governantes nos dizem, fazendo tábua rasa de muitas situações de emergência que ainda persistem) o poder tem necessidade de outros mecanismos de dominação. A habilidade agora é fazer compaginar o autoritarismo quotidiano, umas vezes mais dissimulado, outras nem tanto, com a legitimação pelo discurso da democracia. Isto obriga a uma cada vez maior e progressiva sofisticação dos mecanismos de dominação. A sociedade já não se controla e se submete a partir de um aparelho que lhe é exterior mas do interior dela própria. Ou, pelo menos, havendo um aparelho exterior à sociedade, ele deve ser o mais dissimulado, o mais silencioso, apesar de omnipresente. Aqui reside a sua eficácia!


É, por isto, também que estou convencido que o regime de predação, mesmo que leve mais algum tempo, para completar o ciclo de formação de uma “classe possuidora” (alguns chamam burguesia nacional) escolhida a dedo pelo Príncipe (no bom e velho estilo feudal), vai dar lugar a uma economia produtiva, passando o Estado a ser, não mais um instrumento de apropriação da riqueza mas o meio de preservação e protecção da riqueza obtida e da sua reprodução. O “novo” Estado, definindo-se como industrialista, sendo de feição autoritária e populista, para acalmar as tensões sociais e permitir um certo nível de reprodução social da mão-de-obra nacional e, sobretudo, garantir uma massa considerável de consumidores, vai ter também uma certa acção social que será igualmente aproveitada para estabelecer outras formas de clientelismo por baixo. 


Desses “novos” tempos de industrialismo já há sinais na política (mesmo no interior do partido da situação), na economia (mesmo entre aqueles que lá chegaram por meio da política de predação) e na sociedade (no empreendedorismo e voluntarismo dos “emergentes” do informal e de uma classe média de aspiração, cujo projecto de vida passa pela reivindicação de uma consonância entre o reconhecimento social do mérito e o bem-estar).


A esses tempos correspondem novas formas de dominação. Então, a ferramenta escolhida não pode ser mais a diabolização do “inimigo”, produzindo o consenso do ódio, mas outra forma de consenso, aquilo que chamo de consenso da necessidade. O consenso não é estranho à ditadura. A ditadura também produz consensos e deles se alimenta. Quer por entusiasmo, quer por indolência estes consensos servem para reproduzir a ditadura como algo de absolutamente necessário à sobrevivência colectiva. E, por isto, a ditadura insinua-se através dos mecanismos de identificação com a Nação. 


A ditadura sabe que um ataque exterior produz imediatamente uma coesão interna que se sobrepõe a todos porque se apresenta como mais forte do que as contradições entre as facções que constituem o corpus político. A inteligência está em fazer passar um ataque à ditadura como sinónimo de ataque ao país, em explorar as linhas de fractura da sociedade, utilizando esses mecanismos a critério, em função dos diversos estratos sociais e insistir em todos os consensos que sendo anódinos para a permanência do regime, são mobilizadores e a tornam indispensável.


Mas, por muito bem que se utilizem estes mecanismos de controlo social, a ditadura está a prazo, pois o tempo não é mais de destruição do outro mas de construção: de construção melhor do que a do outro. 


Então a central ideológica do regime não devia insistir em arcaísmos de dominação, nem perder tempo em arquitectar e realizar formas de fragmentação e destruição dos partidos de oposição (o que configura uma forma de destruição do património nacional, movido pelo tipo de ética das convicções que alimentou a destruição do país durante a guerra civil). Devia aceitar a competição regular e honesta, a todos os níveis, como um instrumento de aferição da qualidade do político, investindo no aperfeiçoamento do partido da situação no fazer melhor e aceitando a emulação política como uma melhoria do sistema político nacional, como meio de enriquecimento do nosso património intelectual.


Glosando José Eduardo dos Santos, direi que “é tempo de mais obra e menos propaganda”. Por isto, os ministros não devem ser “mudos” mas mais eficazes. Têm que dar satisfações do que fazem, não apenas ao chefe, mas à sociedade, perante a qual também têm que se sentir responsáveis. É tempo de investir na transformação duradoira da realidade política, económica e social do país e menos na imagem do regime. 


O país não pode parar no tempo na esperança de que o criador conceda ao ditador a eternidade. A negociação do fim da ditadura tem que fazer parte do sistema de previsibilidade do nosso desenvolvimento, ou seja, tem que entrar na ordem do dia. E ele sabe disso! Por esta razão, numa vão tentativa de adiar as coisas, impediu que a representação nacional se tornasse, pela vontade dos cidadãos, a mola impulsionadora das transformações de que o país precisa para recuperar o tempo que perdeu em relação a outros, mesmo na nossa região. A negociação da transição permite afastar os obstáculos à progressão do sistema político porque acaba com a “guerrilha” de manutenção do poder contra a vontade nacional e promove a renovação do sistema e do pessoal político pela emulação, pelo mérito, pelo talento e pela criatividade. 

Também a nossa inserção na região (e no mundo) tem que ser objecto de reflexão, pois a política internacional mudou. A actualidade das relações globais é a da formação de um mundo com várias polaridades. Obama reconheceu isto no seu discurso de posse. A nova configuração passa pela existência de várias potências regionais que se entendem ao nível das Nações Unidas que deverá ser, cada vez mais, um espaço de concertação e a locomotiva do desenvolvimento global. Estas potências regionais não são tidas pelo seu potencial militar mas pela sua importância económica. Ou melhor, pela sua capacidade de produção de riqueza e de bem-estar para as suas populações. E, se num primeiro momento, estas potências poderão ser apenas potências energéticas, não poderão manter-se simplesmente como tal. As suas economias têm que ser mais fortes e diversificadas para serem competitivas. Então, se nós não queremos continuar a ser uma potência regional com pernas de barro (afirmando-nos apenas pela nossa capacidade militar de intervenção, e.g., no Kivu norte) temos que repensar o desenvolvimento do país e as suas opções. 

O regime não quis aceitar esse desafio nas eleições legislativas de 5 Setembro de 2008, recorreu a uma fraude a toda extensão para obter o poder total mas agora não sabe bem como lidar com ele porque essa vitória abusiva matou o “inimigo”.

Por isto, perante os mais recentes acontecimentos e na perspectiva de mudanças estruturantes, todos os angolanos devem colocar-se a questão de saber que país é que queremos. Queremos “o país” deles? Onde uma só pessoa manda na política toda (parlamento, governo e tribunais), na economia toda (bancos, petróleo, diamantes, telecomunicações, agro-negócio, cimentos, comércio…) na sociedade toda (FESA, AJAPRAZ, MNE,… ), na comunicação social toda (jornais, televisões, rádios, revistas…) e em tudo mais? Ou queremos um país em que cada um partilha o sentimento de pertença e de participação e frui de oportunidades iguais e solidárias? Queremos um país cujo sistema produz a exclusão da maioria ou um país estruturalmente integrador de todos?


* Cientista político
Fonte: AGORA