Luanda - Decorreu, em Luanda, entre 9 e 13 de Fevereiro de 2009, uma “Semana de Homenagem a Ruy Duarte de Carvalho, numa iniciativa conjunta do Instituto Camões, através do Centro Cultural Português e da Associação Cultural Chá de Caxinde que, na ocasião, assinalava os seus vinte anos de existência.

Na ideia de participar nesta semana de homenagem ao Ruy Duarte de Carvalho decidi fazê-lo falando do ficcionista e, particularmente, do seu livro “Os papéis do inglês”, deixando a outros a possibilidade de falarem de outros aspectos da sua obra multimoda.

No entanto, fi-lo em dois tempos: o primeiro, para sublinhar a importância desse acto, justificando-o pela envergadura do intelectual que era homenageado, a partir da ressonância de três dos seus livros que, segundo ele próprio, formam uma trilogia e marcam um período da sua obra: Vou Lá Visitar Pastores (Chá de Caxinde, Luanda, 1999) , Os Papéis do Inglês (Chá de Caxinde, Luanda, 2003) e As Actas da Maianga (Chá de Caxinde, Luanda, 2003), cujos géneros se repartem pela antropologia pós moderna, pelo romance e pela filosofia política, respectivamente.

O segundo momento serviu para me fixar no livro “Os papéis do inglês”. Escolhi falar deste livro por duas razões: a primeira, porque considero este romance do Ruy Duarte de Carvalho um texto sublime que não tem a divulgação que merece. E, por isto, nunca é demais aproveitar mais uma oportunidade para falar dele. A segunda razão é que eu já havia escrito, em duas ocasiões, sobre “Os papéis do Inglês” pois o livro (tendo sido escrito em finais do milénio anterior) foi publicado, sucessivamente, em Portugal (em 2000, pela Cotovia), e em Angola (em 2003, pela Chá de Caxinde). Quando do lançamento do livro em Lisboa (já em princípios de 2001) escrevi uma recensão crítica para a revista Angolé, (dirigida então pelo Albino Carlos e que o Luís Kandjimbo considerava uma revista de cabeleireiro e não compreendia bem por que razão eu escrevia ai uma coluna sobre literatura…, ….enfim!). Escrevi também um texto de apresentação para o lançamento, em Luanda, dois títulos Os Papéis do Inglês e As Actas da Maianga, que acabou por ser lido pelo Jacques dos Santos, pois, por força do adiamento do acto, quando aconteceu estava ausente do país. 

Perante o convite para participar nesta “Semana de Homenagem”, primeiro pelo João Pignatelli, o activo Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal, e, depois, pelo Jacques dos Santos, o conhecido presidente da Chá de Caxinde, lembrei-me então de reactualizar a minha leitura do livro e renovar o fascínio pelo “Os papéis do inglês”, partilhando com vocês algumas e breves considerações a respeito.

Porém, nesta crónica fica apenas o elogio ao intelectual, sendo que no próximo texto falaremos de Os Papéis do Inglês.

A homenagem foi sobejamente merecida porque creio que o talento de Ruy Duarte de Carvalho não é mais questionável! E que o Ruy Duarte de Carvalho é um artista de vários ofícios também não é de se discutir: “desenhista”, poeta, cineasta, antropólogo e ficcionista, tendo começado por ser agrónomo, todas estas ferramentas, para lá de outras considerações de ordem estética, ética e social, são postas ao serviço de uma mesma causa: a da cidadania angolana que ele explica como uma “conquista”, um “merecimento” e eu entendo como co-natural a sua comunhão com a Terra que o viu nascer, não como ser biológico, mas como homem que não sabe estar (em Angola) sem ser (angolano).

Ruy Duarte de Carvalho é um intelectual que se afirma e se percebe na sua totalidade que tem marcado o nosso tempo com a sua reflexão laboriosa e produtiva. Um tempo "circular, aflorado pelas tangentes da sorte, dos acasos, cindido pelas secantes do desgosto, accionado a custo pela espiral da idade, à espera que a mola pasme, seno e coseno de algum lugar previsto, consentido, a haver mas sem devir" (Actas p. 96). Uma reflexão que constrói um caminho que vai da "Decisão da idade" a "indecisão da vida" e que vai de "um processo de apreensão", do facto ou do vazio, "à consciência da apreensão" e, finalmente, à “expressão do mal estar da consciência da apreensão".

Ruy Duarte de Carvalho é um intelectual que insiste em olhar o mundo, não propriamente para o ver (mas sem deixar de lhe reconhecer, pelo menos, os contornos) mas para compreender qual o nosso lugar nele e, por este atalho, tentar perceber o seu lugar em tudo isto. E, por isto, não é um intelectual contemplativo mas um intelectual que não sabendo estar sem ser (como disse há bocado), afirma as suas escolhas e propõe para o país, inspirado pelo seu “pragmatismo operativo”, um “programa de grande fôlego”, ou seja, de longa-duração e não meramente circunstancial, que não permitisse jamais a evocação da “necessidade de sacrificar sujeitos, sociedades ou gerações” e em que se propusesse concomitantemente “acções política imediatas aferíveis e, por sua vez, avaliadas segundo os seus efeitos imediatos sobre as populações”. Um programa que fizesse da fome, da saúde e da educação “os problemas maiores da nação”, pois “todos queremos um país normal”, e não mais a reincidência do “pragmatismo bárbaro que tem vigorado até agora, inscrito numa lógica de guerra e de saque, de disputas de acessos, vantagens e privilégios e de apropriação pessoal de bens comuns, ou então de pura e simples sobrevivência, de adaptação e criação de circuitos e de saídas, de resposta adequada e inventiva à incompetência, a inoperância, a arbitrariedade e a deriva do poder, dos poderes” (Actas, p. 144 e ss).

Um intelectual que renunciou ao espírito da “recuperação imediatista”, ao espírito do aproveita a tua parte, que se opõe ao “autismo nacional” e contribui – com a sua reflexão – para “uma lucidez possível” (Actas, 148) como expressão do seu “empenhamento cívico”, o que faz dele um intelectual vigilante que tem consciência (e o afirma) de que "Angola sempre foi maior do que quem a governou e governa e que, independentemente de quem exerce ou disputa o domínio directo ou indirecto sobre ela, há os que nunca perderam de vista uma hipótese de Angola [e dos Angolanos], quer dizer, maior e melhor que todos os poderes que ilustraram o seu passado e têm vindo a ilustrar a sua história recente" (Actas, 51). Um intelectual cujo percurso o conduziu “a esse terreno de luta contra a palavra autoritária” (Rita Chaves).

É, pois de registar como acontecimento feliz a homenagem ao Ruy Duarte de Carvalho, por altura das comemorações dos 20 anos da Chá de Caxinde, não apenas porque ele é um dos maiores expoentes da nossa literatura de todo os tempos, não porque é um dos maiores intelectuais do país, mas também porque é um cidadão angolano comprometido com o seu tempo. Por outro lado, a Chá de Caxinde dá mais um passo na sua afirmação como associação, editora, promotora de variadas formas de cultura e, também, grupo carnavalesco – uma genuína tradição da angolanidade.

O Instituto Camões, que foi parceiro nesta iniciativa, também merece o nosso reconhecimento porque, mais uma vez, contribui para uma maior difusão da cultura angolana, no nosso país, num ambiente de fraca oferta cultural, o que torna mais significativo uma tal semana, também “na bolsa de visibilidades mundanas” do país, como diria o próprio Ruy Duarte de Carvalho nas suas Actas da Maianga (p. 150). 

*Cientista Político
Fonte: AGORA