Quando, nas últimas semanas de 1998, durante a guerra de 7 de Junho com a junta militar, se refugiou no seu palácio presidencial em Bissau, apenas protegido por tropas estrangeiras, o general João Bernardo (Nino) Vieira era um líder em decadência, um Presidente sozinho no seu próprio país, a nação que ajudara a libertar. Tinha colhido inimizades na exacta proporção do carisma que tivera - e perdera - como herói da luta pela independência da Guiné-Bissau. De combatente exemplar antes de 1980, ano em que tomou o poder pelas armas a Luís Cabral, passou a líder autocrático.

A maioria da população nunca viria a perdoá-lo por ter convidado tropas estrangeiras vizinhas a ocupar Bissau, em 1998, para o salvar face a uma junta militar cuja força não nascia só das armas, mas também do descontentamento popular. Diz-se de Nino Vieira que não olhava a meios. Se, no passado, isso terá sido parte da sua força, perante a iminência de uma derrota na guerra, foi o princípio do seu fim.

 Herói transformado em ditador agarrado ao poder

Com poucas nuances, a sua figura desdobra-se nessas duas facetas de herói transformado em ditador agarrado ao poder. Ou em muitas mais: a de um homem violento e vingativo, com sede de poder e dinheiro, envolvido em negócios dos quais queria obstinadamente retirar benefícios sozinho; mas também a de um chefe militar com uma grande capacidade, um pensamento estratégico que contribuiu para a independência do país e uma resistência que o ajudou a sobreviver, entre lutas e conflitos, até esta segunda-feira, dia em que foi assassinado na sua residência em Bissau.

Nino Vieira foi duas vezes Presidente da República, primeiro com o recurso às armas, em 1980, mais tarde legitimado pelas primeiras eleições multipartidárias de 1994; e depois foi reeleito em 2005. Antes disso, tinha ocupado vários cargos públicos, foi um militar de prestígio, um verdadeiro filho da Guiné-Bissau, nascido a 27 de Abril de 1939, em Bissau.

Foi Nino Vieira que, na qualidade de presidente da Assembleia Nacional Popular das zonas libertadas pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), durante a guerra colonial, declarou unilateralmente a independência da Guiné-Bissau em Setembro de 1973, uma independência que só no ano seguinte viria a ser reconhecida por Portugal. E só isso deu-lhe uma aura única. O momento solene simbolizará para sempre a ligação que une o seu percurso à própria história do país.

Quando em 1980 liderou o golpe militar contra Luís Cabral, invocou a necessidade de uma ruptura com o projecto do PAIGC de unir a Guiné e Cabo Verde para que o seu país tivesse o seu próprio rumo. Em vez de um rumo certo, o país caminhou para um ciclo de falência, corrupção, assassínios e lutas de poder. Está entre os mais pobres do mundo e entre os que mais prosperam em tráficos, das armas à droga. Nunca como nestes quatro últimos anos de Nino Vieira à frente da chefia do Estado o país tinha estado tão próximo de ser um Estado falhado a caminho de ser o primeiro narco-Estado da África Ocidental, como em 2007 alertou a ONU.

Protegido por balantas

Foi numa tabanca (aldeia) no Sul do país que Nino Vieira passou a ser conhecido por "comandante Kabi", depois de uma família de etnia balanta lhe ter dado guarida num momento crítico para as suas tropas durante a guerra colonial. O comandante assim também baptizado com nome balanta viria mais tarde a perseguir figuras desta etnia para travar a sua ascensão e influência nos anos 1980. Recorreu então à repressão e aos assassínios políticos. Nunca foi julgado, apesar de adversários terem tentado indiciá-lo por crimes políticos, contribuindo para o clima de impunidade de que acabou por ser também vítima, aos 69 anos.

Foi alvo de verdadeiras tentativas de golpe de Estado, mas também fabricou algumas, para ter apoio em momentos de fragilidade. "Como todos os chefes guerrilheiros míticos, Nino escapou várias vezes à morte. Foi um chefe guerrilheiro que teve a morte sempre presente e foi esse espírito que levou para a governação", diz Eduardo Costa Dias, professor de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa.

Entre os guerrilheiros era visto como um chefe corajoso, mas ao mesmo tempo muito temido, porque traiçoeiro. "Continuou a jogar com o carisma que tinha de guerrilheiro junto de outros guerrilheiros", acrescenta Eduardo Costa Dias. Mas esse carisma foi-se desvanecendo. Terminou os seus dias praticamente sozinho. Manteve a confiança de alguns antigos guerrilheiros fora das Forças Armadas, de um pequeno núcleo dentro do PAIGC de que foi líder, e junto de alguns régulos.

Mas mesmo nas eleições de Novembro do ano passado associou-se ao PRID, um partido novo que apenas elegeu três deputados numa Assembleia em que o PAIGC de Carlos Gomes Júnior obteve maioria absoluta. À derrota militar de 1999 seguiu-se a derrota política.

Quando em 2005 voltou ao país e foi eleito nas presidenciais, o seu regresso chegou a ser remotamente imaginado como uma tentativa de redenção e as suas palavras como um genuíno gesto de reconciliação com inimigos de um passado conturbado e violento. Mas Nino não escolheu redimir-se.

"Além de calculista, Nino Vieira era extremamente vingativo", continua Costa Dias, para quem o ex-Presidente regressou sobretudo para vingar o seu passado, o seu derrube pela junta militar.
 
Muitos vaticinaram o seu fim trágico, logo em 2005. E há quem não hesite em afirmar que, embora o seu regresso ao país pudesse ser aceite, o seu regresso ao poder não ajudou a Guiné-Bissau.

"O país podia ter-se reencontrado melhor, se Nino Vieira não tivesse voltado ao poder [em 2005]", considera o antropólogo Mamadou Jao, director do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) de Bissau, para quem o crucial momento da queda de uma figura "entre as referências mais importantes da Guiné-Bissau", uma personalidade "de grande importância", terá sido mesmo assim a guerra de 1998.

Por esses dias do conflito, com a face contida, o passo controlado, Nino Vieira rodeara-se, no palácio vazio, de tropas do Senegal e de Conacri, cuja presença não dispensava em encontros ou entrevistas com jornalistas. A estes aceitava responder apenas na presença de militares armados. Era um líder refugiado, mas não formalmente deposto.

Tráfico de armas
O general Ansumane Mané tinha formado uma junta militar que viria a derrubar Nino Vieira em 1999, no culminar de um conflito de interesses em torno do tráfico de armas para os guerrilheiros da Casamansa, no Senegal. Por esse tráfico, o chefe de Estado tentara responsabilizar Ansumane Mané, que implicitamente denunciou os interesses nesses negócios do próprio chefe de Estado. Nino perdeu a guerra em Maio de 1999, quando iniciou um exílio de seis anos em Portugal com a mulher, Isabel Romano Vieira.

Quando voltou ao país, em 2005, as chefias castrenses, ligadas à ex-junta militar, eram-lhe naturalmente hostis e o regresso foi negociado em troca de dinheiro e de uma curta margem de manobra para Nino Vieira.

Muitas vezes, desde então, e apesar de ter vencido de novo eleições presidenciais, ter-se-á sentido inseguro. Frequentemente passava temporadas na Guiné-Conacri. Com este país e o seu Presidente, Lansana Conté, mantinha uma forte ligação dos tempos da luta pela independência. Era em Kobé, na Guiné-Conacri, que estavam bases do PAIGC, quando Nino Vieira era o comandante da Frente Sul da luta junto à fronteira. Conté era na altura um jovem capitão.

Com a morte daquele que viria a tornar-se o ditador de Conacri, em Dezembro último, acelerou-se a queda final de Nino. O Presidente guineense perdeu o que lhe restava da pouca influência dentro do seu próprio país. A sua guarda presidencial foi desarmada por decisão do chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, general Tagme Na Waie.

Provavelmente, ambos sabiam que seriam mortos. Tagme dera instruções a um comando do quartel de Mansoa para matar o Presidente, em caso de ser assassinado. Tagme foi morto na noite de domingo. Nino na madrugada de segunda-feira.
 
Quem vive na violência morre na violência, sugeriram algumas figuras, como o ex-Presidente português Mário Soares. O professor universitário Eduardo Costa Dias diz que Nino Vieira ilustra na perfeição esse conceito. E acrescenta: "Além de violento, Nino não era amigo de ninguém." Nos últimos dias, provavelmente, tinha como única e eterna companheira a mulher, Isabel Romano Vieira, de uma família ligada à administração colonial e irmã do cônsul-geral da Guiné em Portugal. Foi poupada pelo comando que matou o Presidente.

Para Costa Dias, "a fragilidade de Nino Vieira veio dar um novo papel, de conselheira, a Isabel Vieira, que contudo teve sempre um papel importante". E que esteve com Nino até ao fim.


Ana Dias Cordeiro
Fonte: Publico