Lisboa - Amílcar Cabral, costumava dizer que a Guiné-Bissau poderia vir a ser uma espécie de Suíça de África. O pai e ideólogo da pátria guineense falava do alto da sua sabedoria –  que se sabe feita de realismo e idealismo. A Guiné  tinha condições palpáveis – a geografia, o factor humano, os recursos e as belezas naturais – para ser a Suíça africana, com cuja versão original, encravada nos Alpes, coincidia até na superfície. O resto era o sonho e a crença de Cabral a darem vazão aos seus impulsos. Ele acreditava sinceramente que seria suíço o futuro da Guiné.

No princípio de 1978, quando cheguei à Guiné-Bissau vestindo o fato  de correspondente da ANOP, vi coisas que me levaram a acreditar que o tempo talvez viesse a dar razão à promissora profecia de Cabral. Apenas achei desfasada da realidade a ideia da união da Guiné a Cabo Verde. O país tinha grandes e múltiplas carências, mas havia uma enorme vontade de acertar. O ambiente era de seriedade e decoro.  E nem faltavam pelo mundo fora governos e organizações dispostos a ajudar o novo país.

A Guiné-Bissau dos nossos dias não só está a anos luz de ser uma Suíça africana, como é seguramente um dos piores países do continente. Está mergulhada numa profunda e persistente crise política, social, económica, de valores – de tudo. O Estado é uma entidade ficcional, minado pela corrupção e por poderes paralelos. Vê-se que a integridade e a moral de outrora desapareceram.  A economia está desmantelada e não há investimento. Está a desfazer-se a coesão interna que permitiu manter unidas tantas e tão diferentes tribos naquele território tão exíguo. E, corolário de tanta tragédia, a reputação que o país tem no mundo é a de um enorme supermercado de droga.

Por mim, acho que a arrastada crise que tem afundado a Guiné-Bissau é especialmente devida a dois homens – que a história, pelo menos ela, porventura não deixará de julgar. Um é Kumba Yalá. O outro Nino Vieira. Foram eles (ainda são eles) os “fracos reis que fizeram fraca a forte gente” de que falava Camões no tom justiceiro que usou para se referir aos maus soberanos daqueles tempos que por isso estragavam a boa gente dos seus reinos. 

A Kumba Yalá,  homem consabidamente destituído de bom senso e dado a excentricidades e devaneios capazes de arrasar tudo aquilo que lhe for confiado  – uma empresa, um quartel, um país – a Guiné-Bissau ficou a dever a completa desordem em que entrou quando ele se tornou presidente. A ruptura de equilíbrios étnicos, religiosos e culturais que eram vitais para a sua condição de nação – na esteira do que veio a tribalização do Estado. A destruição da economia. O desprestígio externo total.

A Nino Vieira, regressado ao poder em 2005, fica a Guiné-Bissau a dever a desfeita  de pouco ou nada ter feito para tentar endireitar as ruindades que vinham dos tempos de Kumba Yalá, dando assim um novo rumo ao país – que também não deu. Tinham afinal razão aqueles que sempre me foram dizendo que Nino Vieira só se aplicou em voltar ao poder movido por ambições e rancores. Ou seja, queria refazer o património perdido em 1999 e ajustar contas com aqueles que o traíram ou foram menos leais.

E foi assim que em vez do homem de Estado que se impunha que Nino Vieira fosse para estar à altura de colocar a Guiné-Bissau no bom caminho, o que se passou a ver é alguém que movidos por rancores e jogos malabares, continuou a estragar o país – que é uma maneira de dizer desestabilizar e arruinar. Já escrevi algures e mantenho que Nino Vieira desperdiçou assim uma oportunidade única de vir a figurar na história e na memória colectiva como um presidente que ao regressar ao poder se redimiu de erros passados e o exerceu servindo o bem comum. Como Kérekou, no Benin.

O mais grave problema da Guiné-Bissau é a droga – que vai minando a sua alma e corrói o sonho da Suíça africana. Foram elucidativas acusações que Kumba Yalá fez a Nino Vieira na campanha para as últimas eleições. Acusou-o publicamente de estar implicado no narcotráfico. Nino Vieira, comummente identificado como inspirador de um partido novo, o PRID, pejado de indefectíveis seus e na vox populi chamado “o partido da droga”,  não respondeu. Mas seria esclarecedor que tivesse respondido – à letra. Perceber-se-ia ainda melhor o nefando papel destes dois homens na destruição do sonho da Suíça africana de Cabral.

 *Jornalista, Editor do África Monitor(http://africamonitor.info)
Fonte:  publicado em 2008 na revista moçambicana "Prestígio"