Luanda - Prólogo: A pedido do autor do emblemático livro supracitado, o Dr. Domingos da Cruz, trago nestas páginas uma síntese crítica do seu trabalho com o intuito de explorar as linhas-mestras do seu pensamento. O objectivo deste exercício é, tendo em conta o interesse que a obra tem suscitado, contribuir para o seu estudo, por um lado, e interagir com o autor, por outro lado. O grande desafio que assumo nestas páginas é, por conseguinte, procurar interpretar o seu pensamento com fidelidade, honestidade intelectual e a lisura que se impõe. Espero não defraudar.


* Doutor em Teologia Moral, Professor e Escritor
Fonte: Club-k.net
 
A obra com cerca de 184 páginas (refiro-me à versão electrónica que me foi facultada pelo autor) está estruturada em 13 capítulos. O título sugere que se trata de uma obra contra-corrente por esbater os argumentos da sabedoria convencional e pela maneira irreverente como arranca o véu aos mais intrincados problemas do cenário político angolano. Em relação à autoria das ideias contidas no livro, o Dr. Domingos da Cruz, exercitando a virtude rara da honestidade intelectual, faz uma advertência prévia ao leitor com estas palavras: «Não tenho nenhum mérito sobre as ideias contidas neste livro. Com excepção de alguns capítulos, a maior parte das ideias são do filósofo norte-americano Gene Sharp, extraídas da sua obra ´´Da ditadura à democracia´´. Se tenho algum mérito, talvez decorrerá do facto de ter adaptado o seu pensamento à realidade angolana». Se por um lado, o autor reconhece não serem suas as ideias plasmadas no livro, por outro lado, assume o ônus da sua adaptação ao contexto angolano. Uma empreitada arrojada e atrevida, diga-se em abono da verdade. O seu inspirador, Gene Sharp, pese embora a sua trajectória internacional, escreveu a sua obra num país e num contexto completamente diferente e sem riscos graves à sua liberdade ou à sua vida. Refiro-me aos Estados Unidos da América, um país de vanguarda da democracia liberal e das liberdades políticas. Aqui realço a diferença contextual entre ambos, o autor da obra e o seu inspirador. Efectivamente, o Dr. Domingos da Cruz fez uma adaptação das ideias do seu inspirador à realidade angolana. E a realidade angolana em nada se assemelha ao american way of life. O contexto político é de ditadura. Angola é o paraíso de uns quantos e o inferno da grande massa dos deserdados, dos sem voz e sem vez. O autor tem consciência disso (e provavelmente sabia o que o esperava!), embora nesta matéria o vocabulário seja prolixo e não haja unanimidade na caracterização política do actual regime angolano. Há quem defende pura e simplesmente que Angola é um Estado democrático, e ponto final. Há quem defende que Angola é uma democracia formal e de que ainda há muito por fazer. Existem ainda vozes que o qualificam como regime autoritário tout court. Finalmente, alguns falam de uma ditadura sofisticada. Sobre o assunto há, pois, muito pano para manga. Mas aqui o que interessa é o que pensa o Dr. Domingos da Cruz. Fiquemos destarte com a ideia de que Angola é uma ditadura. Será este o mote de toda a sua reflexão adaptada não só da obra ´´From Dictatorship to Democracy´´ como também de subsídios doutros tantos trabalhos que constituem o rico repertório bibliográfico criteriosamente selecionado pelo autor. Neles se incluem curiosamente mais de uma dezena e meia de trabalhos de Gene Sharp.
 

A obra e o contexto
 
A obra em referência foi escrita em Angola e sobre Angola. Usando um método dialógico a raiar o método dedutivo, o autor ensaia ao longo do livro um diálogo entre a teoria e a realidade empírica; esta, todavia, delineando propensões. Com mestria expõe os seus conhecimentos sobre filosofia, ciência política, estratégia, política internacional, etc. Para o autor trata-se duma ´´filosofia política da libertação para Angola´´. Bem podia ser também um ensaio de ciência política. O problema que está no centro do livro é: Como destruir um ditador evitando ao mesmo tempo o surgimento de nova ditadura? Através da sua reflexão apaixonada, entusiasta, contundente, mas sobretudo de alto nível intelectual, o autor vai buscando respostas entre axiomas e postulados da ciência política e da estratégia. Nota-se ao longo do livro uma espécie de frémito incontido de um jovem académico que se coloca diante do espelho e desperta para a realidade pura e dura do seu país: o país está refém de um homem que há 36 anos reina ininterruptamente (o ditador); algo deve ser feito para destrui-lo; há partidos de oposição com ou sem assento parlamentar, há associações e organizações da sociedade civil, há igrejas, existe uma comunidade internacional, etc., etc.; mas será que as suas acções bastam para acabar com a ditadura? As eleições podem por si sós apear o ditador do poder? Estas e outras questões sensíveis abriram caminho para uma reflexão de indescutível gravidade moral. Por isso, o autor vai no encalço dos grandes mestres que fez perfilar ao longo da sua obra partindo do clássico chinês Sun Tzu ( pai da estratégia), passando pelos profetas da não-violência como Mahatma Ghandi, Martin Luther King, Nelson Mandela, Desmond Tuto, etc. O autor tem consciência de que o ditador é poderosíssimo e que a sua empreitada é uma afronta hercúlea contra toda a sua máquina de poder (exército, polícia, tribunais, partido, as finanças, etc). É um David diante do Golias. Todavia, não obstante o cenário prefigurado, acha que pode (e deve) contribuir para a destruição do ditador e sonha com uma obra de choque, provocante... cujas ideias sirvam como ´´ferramenta´´ incontornável (a funda de David) neste desafio para derrubar o Golias. E como dizia Fernando Pessoa, o homem nasce, Deus quer, a obra nasce. E a obra nasceu...

 
As ferramentas para destruir o ditador
 
O autor descarta preliminarmente qualquer recurso à violência por causa dos seus efeitos multiplicadores (abissus abisssum invocat) e nefastos, para não dizer contraproducentes. Em nenhuma página do seu livro o autor defende o recurso às armas. Deixo aqui o próprio autor que o diga com suas próprias palavras: «A filosofia política da libertação para Angola é radicalmente pacífica, fraterna, mas realista.» E mais adiante justifica a não opção pelas armas: «Pegar em armas levaria o ditador a agradecer na medida em que teria legitimidade tanto interna quanto externa para exterminar.» E ainda: «Usar armas demonstra que somos igualmente selvagens como o ditador e perderíamos autoridade moral e legitimidade democrática.» Mas então propalou-se que este livro era supostamente o manual da preparação de um golpe de estado em Angola. O que eu encontrei na obra vai exactamente na direcção oposta. Um golpe de estado não pode ser a solução, defende o autor com estas palavras inequívocas e clarinhas como a água cristalina: «um golpe de estado representa retrocesso civilizacional e viabilizaria o nascimento de nova ditadura militar.» Exemplos disso abundam ad nauseam na nossa realidade política africana. Neste sentido, o autor faz uma crítica à chamada primavera árabe na Líbia, no Egipto, cujos resultados foram trágicos por não terem sabido gerir a transição.
 

Ora bem, tendo em conta a finalidade última da luta que é derrubar o ditador, seus apoiantes e estruturas que o suportam com vista a instaurar a democracia, defende que deve haver um projecto político e filosófico de nação e de país. As eleições não servem nem as negociações. Estas legitimam o ditador. As ditaduras devem ser derrubadas e não reformadas. Contra todas as formas de activismo que mais não fazem que cooperar na manutenção da ditadura e legitimá-lo, propõe um modelo de luta baseado no ´´desafio político´´ (de Robert Helvey), isto é, uma luta não violenta através da não-cooperação ou desobediência civil, protestos, manifestações de rua e intervenção. Detém-se em várias páginas a explicar o seu pensamento sobre a luta pacífica. Esta, segundo o autor, não se confunde com o pacifismo cristão: oferecer a outra face depois de apanhar numa. A luta pacífica exige atitude e não resignação. E esta luta é uma verdadeira revolução porque a sua meta é a mudança política radical que nos vai levar da ditadura à democracia. O funcionamento da luta não violenta conta com cerca de duas centenas de métodos agrupados em três categorias assim discriminadas pelo autor: PROTESTO E PERSUASÃO, NÃO-COOPERAÇÃO e INTERVENÇÃO.
 

É convicção do autor de que os ditadores têm as suas fraquezas, por isso são derrubáveis por mais poderosos que sejam os seus exércitos: «apesar da aparência de força, todas as ditaduras têm fraquezas, ineficiências internas, rivalidades pessoais, deficiências institucionais, e conflitos entre organizações e departamentos. Essas fraquezas ao longo do tempo tendem a tornar o regime menos eficaz e mais vulnerável às mudanças de condições e resistência deliberada». Joga-se aqui o factor psicológico. A natureza humana é complexa e os interesses dos indivíduos são dinâmicos e voláteis. Nem sempre é possível manter as lealdades por todo o tempo e em todas as circunstâncias. Afinal, como escreveu o poeta, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades!... Só os diamantes são eternos! Os temíveis guardiães do templo de hoje, podem ser os libertadores de amanhã. A Guarda Presidencial de Blaise Campaore teve cumplicidade activa no derrube do ditador. O Exército nacional e a Polícia não foram disparar contra os manifestantes. Aplicaram o princípio da não-cooperação seguida de intervenção. Portanto, os polícias e os militares são homens e não robots previamente programados. Este facto, do ponto de vista securitário, explica bem porquê a segurança é sempre relativa e a ameaça pode vir do seu mais fiel soldado. O Presidente Laurent Kabila foi morto por quem? Um opositor? Um arruaceiro? Pela sua própria guarda. Assim sendo, «com o conhecimento de tais fraquezas inerentes à tirania, a revolução democrática pode procurar agravar estes ''Calcanhares de Aquiles´´ deliberadamente, a fim de alterar drasticamente o sistema ou desintegrá-lo.»
 

Entretanto, para que a luta possa lograr, ela não pode ser feita de maneira espontânea, desgarrada e desorganizada. É imperioso estabelecer um planeamento estratégico. O autor defende que sem um plano estratégico de luta não será possível a erosão da ditadura. Para tal, é preciso definir o objectivo central, as acções a curto, médio e longo prazo, a logística, financiamento, etc. Conta com um eixo diplomático para captar apoios externos. E esta luta ou resistência, cuja fórmula é RRR=Raiva, Revolta, Revolução, será levada a cabo pelas forças democráticas da sociedade angolana, culminando com a instauração da democracia e a aprovação de uma nova Constituição a reflectir um novo projecto de nação.
 


Breve apreciação crítica
 
A primeira impressão que me veio ao ler esta obra é de provocação. É quase inescapável. Na verdade, o ineditismo deste tipo de pensamento na nossa praça intelectual doméstica aliado ao atrevimento e argúcia intelectual que lhe serve de esteio, não pode evitar que se exprima um apreço incondicional ao seu autor. Domingos da Cruz, jovem académico angolano, é um inconformista confesso e assumido que nos traz à memória aquela geração de africanos que nos anos cinquenta e sessenta manifestaram politicamente o seu inconformismo com os regimes coloniais e decidiram lutar pela liberdade. Grande parte deles pagou um preço muito elevado por aquilo que acreditava. O trabalho do DC não perfila nos cânones do romantismo político, quiçá própria da sua idade, nem é uma daquelas obras literárias que só brotam à luz para alimentar o narcisismo intelectual dos seus autores. Este livro foi escrito com responsabilidade. Senti-o ao lê-lo. O facto de estar hoje a passar por vicissitudes e agruras pessoais consubstanciadas pela privação de liberdade, pela autoria do livro, grangeia-lhe respeito e admiração pela sua coerência e pela coragem em assumir as suas convicções sem titubear. Neste sentido, como disse o próprio no início do livro, o mérito está conseguido por adaptar ideias de um autor estrangeiro à realidade angolana. As autoridades angolanas já prestaram uma singela e augusta homenagem ao livro, embora de forma quixotesca, ao conclamá-lo solenemente no altar da justiça, à semelhança dos livros santos nos templos sagrados. É a ironia do destino! Em relação às ideias plasmadas no livro, é claro que não partilho tudo o que lá está.  Pela delicadeza do momento, reservo-me a não tecer agora certas considerações polémicas que poderiam ser aproveitadas para apagar a torcida que ainda fumega. Num momento mais oportuno, poderia partilhar, de maneira serena, com o autor os meus pontos de vista sobre alguns aspectos da sua obra. Mas não hajam dúvidas: o livro é mesmo revolucionário.
 

Epílogo
 
As ideias são poder. O pensar é poder. Trata-se de um poder de longo alcance, no tempo e no espaço. Por isso pode-se matar o homem, mas nunca as suas ideias. Aliás, as ideias imortalizam os homens. Hoje na história das ideias políticas continuamos a estudar Platão, Aristoteles, S. Tomás de Aquino, S. Agostinho, Jean-Jacques Rousseau, Hobbes, Montesquieu, Voltaire, Marx, Adam Smith, Max Weber, Maquiavel e tantos outros. Todos eles foram da lei da morte se libertando, parafraseando Camões, mas as suas ideias continuam a apaixonar estudiosos de todas as latitudes e a animar debates contemporâneos. No centro das ideias de todos os tempos está a vocação do espírito humano de interpretar os enigmas da existência (de Deus, do mundo, e do Homem). Dar sentido à existência do Homem no mundo é um imperativo. Este passa pela compreensão dos fenómenos naturais e sociais. Mas uma questão filosófica se impõe: para que servem as ideias? É uma questão de milhões de dólares. As respostas podem divergir, mas muito dificilmente se poderá fugir destas duas balizas: a felicidade e a utilidade. As ideias perseguem uma finalidade última: a felicidade humana, quer dos indivíduos quer dos grupos. Por esta razão elas têm uma função utilitarista por carregar em si o poder de construir e de transformar aqueles elementos constitutivos, materiais e imateriais, tendentes a dar sentido à existência humana na sua plenitude. A felicidade, no sentido socrático de eudamonia, não é apenas o gozo dos prazeres (como defendiam os epicuristas), mas o alcance da plenitude do ser: só alcançamos a felicidade quando somos humanos em plenitude. E para lá chegar é preciso passar pela prática da virtude (aretê, em grego), no sentido moral como é entendido por Sócrates. Por conseguinte, servem as ideias para elevar o homem à sua verdadeira estatura como Alfa e Omega do Cosmos. Portanto, todos aqueles pensadores que deixaram ideias em função da felicidade humana, erguendo pontes entre culturas e gerações são aqueles que hoje — imortalizados no tempo —  desfilam nas galerias do humanismo. As ideias do livro que acabo de analisar trazem, afinal, um contributo sui generis para a construção da nação angolana e para a prosperidade dos seus cidadãos. Será utopia? O tempo dirá...