Luanda  -  Li o parecer dos professores Sinde Monteiro e Almeno Sá que defende que a Lei da Probidade Pública de Angola não se aplica ao Presidente da República de Angola. E tenho ouvido a afirmação segundo a qual o acto de nomeação de Isabel dos Santos está protegido pelo interesse público.

Fonte: Club-k.net

 
I. ENQUADRAMENTO DO PARECER DOS PROFESSORES SINDE MONTEIRO E ALMENO SÁ
 
Os professores Sinde Monteiro e Almeno Monteiro propõem-se “analisar se o Presidente da República poderá ser considerado um “membro do Executivo”, para efeitos do artigo 15.°, n.° 2, da Lei da Probidade, em ordem a afastar a aplicação desta lei ao Presidente da República” e propõem-se igualmente demonstrar que mesmo que a Lei da Probidade Pública fosse aplicável ao Presidente da República seria, nesse caso, inconstitucional, por força de algumas normas inconstitucionais que desta lei fazem parte.
 
II. “SOBRE A INAPLICABILIDADE DA LEI DA PROBIDADE AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA”
 
 
1. O ARGUMENTO DOS PROFESSORES SINDE MONTEIRO E ALMENO SÁ SEGUNDO O QUAL O PRESIDENTE NÃO É MEMBRO DO EXECUTIVO
 
 
Não é novo o argumento segundo o qual o presidente da República não é “membro do Executivo” e como tal não se lhe aplica a Lei da Probidade Pública. Eis os argumentos dos professores Sinde Monteiro e Almeno Sá: «o Presidente da República não é um “membro do Executivo”. Ele é titular de um órgão de soberania [...] ao nomear o Conselho de Administração em causa, o Presidente da República actuou na sua qualidade de titular do Poder Executivo. O mesmo é dizer que actuou enquanto titular de um órgão de soberania».
 
 
Os argumentos dos ilustres professores Sinde Monteiro e Almeno Sá omitem o facto de a CRA atribuir ao Presidente da República várias competências, que produzem diferentes tipos de actos, que, por sua vez, têm diferentes consequências jurídico-constitucionais. Jorge Bacelar Gouveia apresenta as seguintes competências do Presidente da República: «As “competências como Chefe de Estado” incluem uma ampla panóplia de competências de natureza política [...] As “competências como titular do Poder Executivo” têm uma natureza administrativa [...] As “competências nas relações internacionais” são mais reduzidas e destinam-se a afirmar o Chefe de Estado como representante da soberania [...] As “competências como Comandante em Chefe” fazem sobressair a importância da chefia da instituição militar e entidades para o efeito equiparadas [...] As “competências em matéria de segurança nacional” parcialmente no mesmo domínio das competências que o Presidente da República tem na sua qualidade de Comandante em Chefe [...]» (Ver Jorge Bacelar Gouveia, Direito Constitucional Angolano, 2014, pp. 408-413).
 
 
 E mais doutrina Jorge Bacelar Gouveia, identificando “a presença do Chefe de Estado no exercício de atos de índole muito diversa” como sejam “atos de natureza internacional [..] atos de natureza legislativa [...] atos de natureza governativa [...] atos de natureza administrativa” (Jorge Bacelar Gouveia, Direito Constitucional Angolano, 2014, p. 408).
 
 
Como doutrina Jorge Bacelar Gouveia, em harmonia com a Constituição, os actos de natureza administrativa inserem-se nas competências do Presidente da República enquanto titular do Poder Executivo (Jorge Bacelar Gouveia, Direito Constitucional Angolano, 2014, p. 410). E não pode haver Estado de Direito sem que a Administração do Estado se submeta à lei, por força do princípio da legalidade da Administração Pública, n.° 1 do art. 198.° da CRA. O que quer dizer que quando o Presidente da República exerce a função administrativa (o Poder Administrativo, o Poder Executivo), – através de actos administrativos – porque a Constituição o impõem, deve subter-se à lei: praticar os actos administrativos sob a reserva de lei e com o respeito pela lei. No caso em apreciação, a Lei da Probidade Pública.
 
 
2. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA É MEMBRO DO EXECUTIVO: TITULARIDADE DO PODER EXECUTIVO É DIFERENTE DE EXERCÍCIO DO PODER EXECUTIVO
 
 
O professor José Melo Alexandrino distingue as competências do Presidente da República enquanto Chefe de Estado e enquanto titular do Poder Executivo. Em relação a esta última função, afirma o seguinte: “enquanto titular do Poder Executivo, pelo menos uma parte dos poderes do Presidente da República desenvolve-se num plano de subordinação à lei, na medida que estão agora em causa a função governativa e administrativa (que estavam anteriormente confiadas ao governo); [...] à luz da CRA, tem sentido a distinção entre titularidade do Poder Executivo (que compete ao Presidente da República) e exercício do Poder Executivo (cujo nível primário compete ao Presidente da República e, a um nível secundário, ao vice-Presidente e ao Conselho de Ministros, enquanto órgãos auxiliares daquele)” (José Melo Alexandrino, O Novo Constitucionalismo Angolano, 2013, p. 23). “O Presidente da República exerce o poder executivo, auxiliado por um Vice-Presidente, Ministros de Estado e Ministros”, n.° 2 do art. 108.° da CRA.
 
 
“Os Ministros de Estado e os Ministros, no exercício de funções executivas das áreas sob sua responsabilidade, exercem competências delegadas pelo Chefe do Executivo, sem prejuízo de outros poderes que este lhes possa atribuir”, n.° 2 do art. 6.° do Decreto Legislativo Presidencial n.° 2/10 de 11 de Março. Parece-me que, apenas com grande desatenção e grave omissão, se pode negar que os conceitos de titularidade e exercício do Poder Executivo estão contidos na letra e no espírito da Constituição e, em consequência, com base neles se deve fazer a devida interpretação sistemática sustentando a doutrina do professor José Melo Alexandrino quanto à pertinente distinção entre titularidade e exercício do Poder Executivo.
 
 
 A titularidade do Poder Executivo significa que este poder pertence apenas ao Presidente da República, é o único detentor deste poder. Todavia, é humanamente impossível a uma só pessoa de carne e osso exercer sozinha o Poder Executivo (o poder administrativo). Para ser possível o exercício do Poder Executivo, a Constituição atribui ao seu titular, o Presidente da República, as competências para “definir a orgânica e estabelecer a composição do Poder Executivo”, alínea e) do artigo 120.° da CRA; e igualmente a competência para escolher e nomear os seus auxiliares – Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado e Vice-Ministros – que, por delegação de poder, art. 137.° da CRA, com ele exercem o Poder Executivo, n.° 2 do art. 6.° do Decreto Legislativo Presidencial n.° 2/10 de 11 de Março. Note-se que o texto constitucional diz “estabelecer a composição do Poder Executivo”. A palavra “composição” neste contexto significa a acção ou o efeito de juntar ao titular do Poder Executivo, que é o Chefe do Executivo, n.° 1 do art. 5.° do Decreto Legislativo Presidencial n.° 2/10 de 11 de Março, os seus auxiliares para juntos exercerem o Poder Executivo.
 
 
Por força da Constituição e pela natureza das coisas, o titular do Poder Executivo é “membro do Poder Executivo”. O Executivo, em acção (em exercício), é formado pelo titular do Poder Executivo (Chefe do Executivo, Presidente da República), e pelos seus auxiliares, Vice-Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado e Vice-Ministros. – Salvo seja melhor opinião!
 
 
3. O PODER EXECUTIVO DEVE SUBMETER-SE À LEI
 
 
“O Poder Executivo deriva a sua existência e a sua legitimidade da Constituição e da lei e, por conseguinte, em última análise, da soberania popular. Por isso, a lei passa a ser também o fundamento, e não já apenas o limite, da acção administrativa” (Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2003, p. 49). As posições doutrinais dos professores José Melo Alexandrino e Diogo Freitas do Amaral, publicistas, estão em plena sintonia com a CRA que prescreve que “[o] Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis” (art. 6.°/2) e estabelece o princípio da legalidade da administração pública (art. 198.°/1), o que significa dizer que o órgão Presidente da República é parte integrante do Estado e o Poder Executivo (poder administrativo ), de que o Presidente é titular, deve submeter-se à lei.
Jorge Bacelar Gouveia, ao tratar dos “princípios retores da actividade administrativa”, entre esses princípios inclui o princípio da probidade pública (p. 537), e defende que “[m]uitos destes princípios não são exclusivos da atividade administrativa, uma vez que se aplicam a qualquer manifestação de poder público, nele igualmente se inserindo o poder administrativo” (p. 537) – leia-se poder administrativo = poder executivo. O mesmo autor defende que “Poder Executivo” é uma expressão equívoca para designação do “poder administrativo” e que não foi uma escolha feliz do legislador constituinte angolano (p. 403) –.
 
 
Dissipando quaisquer dúvidas sobre a amplitude da aplicação da Lei da Probidade Pública, mais a frente, referindo-se ao regime jurídico da Lei da Probidade Pública, afirma: “É um regime que se aplica a todos os titulares de cargos públicos – não sendo privativo dos cargos administrativos, incluindo os cargos políticos” (p. 538) [Ver Jorge Bacelar Gouveia, Direito Constitucional Angolano, 2014, p. 403; pp. 537-538]. O ilustre professor mudou de posição doutrinal? Tem esse direito, se o tiver feito!
 
O Presidente da República de Angola, enquanto titular do Poder Executivo (poder administrativo), como qualquer outro agente público, “deve na sua actuação pautar-se pelos seguintes princípios: [destaco apenas um, o] a) princípio da legalidade [...]” (art. 3.° da Lei da Probidade Pública); entre outros princípios. O n.° 1 do artigo 28.° da Lei da Probidade, uma norma legal, estabelece o impedimento (proibição) dos agentes públicos nomearem para certos cargos públicos parentes na linha recta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como com quem vivam em comunhão de mesa e habitação. E o titular do Poder Executivo, o Presidente da República, está obrigado a submeter- se à lei por força da CRA, concretamente por força do princípio da legalidade da administração, e ao mesmo tempo por força do princípio da probidade administrativa a não praticar o nepotismo, ambos, repita-se, princípios constitucionalmente consagrados, n.° 1. do art. 198.°. O nepotismo é um acto de improbidade (desonestidade) pública, o contrário da probidade pública, e que também atenta contra a moralidade pública; que a lei ordinária (a Lei da Probidade Pública) em cumprimento da Constituição reprime.
 
III. SOBRE A “INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA PROBIDADE PÚBLICA NA MEDIDA EM QUE SE PRETENDA A SUA APLICAÇÃO AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA”
 
 
1. A INCONSTITUCIONALIDADE DE ALGUNS ARTIGOS DE UMA LEI, NÃO A TORNAM NO TODO INCONSTITUCIONAL
 
 
Os professores Sinde Monteiro e Almeno Sá, na minha modesta opinião, prestam-se a equívocos no seu parecer, pelas seguintes razões: a Lei da Probidade Pública não deve ser considerada como inconstitucional no seu todo. Para que ela, em bom rigor, pudesse ser considerada como inconstitucional na sua totalidade teria de ocorrer o seguinte: (1) que todos os seus artigos fossem materialmente inconstitucionais. Quer dizer o conteúdo dos 45 artigos da Lei da Probidade Pública violasse o conteúdo de normas constitucionais (2) ou a Lei da Probidade Pública tivesse sido aprovada por órgão incompetente nos termos da Constituição. Não é o que acontece na prática!
 
 
Os professores Sinde Monteiro e Almeno Sá apresentam oito artigos da Lei da Probidade Pública que, na sua opinião, são inconstitucionais no todo ou numa das suas partes. Por exemplo, o artigo 28.° na sua opinião é inconstitucional apenas em relação ao n.° 2, mas, o n.° 1 do mesmo artigo não é apresentado por eles como sendo inconstitucional – salvo seja a desatenção da minha parte em relação à opinião dos autores do parecer. Todavia, mesmo que defendessem que o artigo 28.° da Probidade Pública padecesse do vício de inconstitucionalidade na sua totalidade, eu manteria a opinião de que o número 2 deste artigo não é inconstitucional.
 
 
Na prática pode acontecer que uma disposição (um preceito ou uma norma) legal seja parcialmente inconstitucional. Ter uma parte que é inconstitucional e outra que o não é!
 
 
Por outro lado, convém lembrar que entre várias interpretações possíveis deve- se dar primazia à interpretação conforme à Constituição.
 
 
2. OS ARTIGOS QUE ESTÃO DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO E QUE FAZEM PARTE DE UMA LEI QUE NÃO SEJA INCONSTITUCIONAL NO TODO DEVEM SER APLICADOS
 
 
Os artigos ou a parte deles que não forem inconstitucionais devem ser aplicados ao Presidente da República! O n.° 1 do artigo 28.° da Lei da Probidade Pública não é inconstitucional, na minha modesta opinião. E, por esta razão, deve ser aplicado ao titular do Poder Executivo, o Presidente da República, quando pratica actos administrativos!
 
 
3. OS ARTIGOS QUE DEFINEM CRIMES NO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES QUE NÃO ESTÃO COMO TAL DEFINDOS PELA CRA POR FORÇA DA INTERPTRETAÇÃO CONFORME COM A CONSTITUIÇÃO NÃO SE APLICAM AO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
 
 
O segundo argumento dos professores Sinde Monteiro e Almeno Sá cinge-se à inconstitucionalidade da punição penal de vários artigos da Lei da Probidade se aplicados ao Presidente da República. Quer dizer, oito artigos por eles identificados e citados, por força do artigo 127.°da CRA, são inconstitucionais, porque o Presidente da República apenas pode ser responsabilizado judicialmente pelos crimes praticados no exercício das suas funções quando expressa e exclusivamente como tal definidos pela CRA. Isto é, todos outros crimes que o PR pratique no exercício das funções, que não estejam definidos pela CRA, devem ficar sem punição. A consequência é que os artigos identificados e apresentados pelos professores Sinde Monteiro e Almeno Sá não se aplicam ao Presidente da República porque as normas jurídicas devem ser aplicadas em conformidade com a Constituição.
 
A formulação do artigo 127.° da CRA presta-se a outra discussão no quadro da doutrina das normas constitucionais inconstitucionais. Em minha opinião, o legislador constituinte angolano andou mal quanto ao que nele prescreveu. Todavia, tratar-se-á de outra discussão, que não vou desenvolver nesta sede.
 
 4. O PROCESSO JUDICIAL A CORRER OS SEUS TRÂMITES NO TRIBUNAL SUPREMO NÃO É UM PROCESSO CRIME
 
 
A acção popular e a providência cautelar impetradas junto do Tribunal Supremo de Angola enquadram-se no direito constitucional e administrativo. Os advogados, tanto quanto sei, não intentaram uma acção judicial penal, no quadro do direito penal. O processo que corre os seus termos no Tribunal Supremo não é um processo criminal.
 
5. O ACTO PRATICADO PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA É UM ACTO ADMINISTRATIVO E COMO TAL A SUA LEGALIDADE E CONSTITUCIONALIDADE PODE E DEVE SER DECIDIDA PELO TRIBUNAL SUPREMO
 
 
Ao nomear a Presidente do Conselho de Administração de uma empresa pública, a Sonangol, nos termos do n.° 2 do artigo 46.° da Lei n.° 11/13 de Setembro (Lei de Bases do Sector Empresarial Público), e por que também a Constituição lhe confere essa capacidade, enquanto titular do Poder Executivo, alínea d) do art. 120.° da CRA, o Presidente da República praticou um acto administrativo e os actos administrativos do Presidente da República podem e devem ser impugnados judicialmente junto dos tribunais competentes por inconstitucionalidade e/ou legalidade, porque tal o contempla o ordenamento jurídico da República de Angola: “Os Tribunais garantem e asseguram a observância da Constituição e das leis [...] e decidem sobre a legalidade dos actos administrativos”, art. 177.°/1 da CRA, e também, não nos esqueçamos, sobre a constitucionalidade dos actos administrativos, alínea m) do art. 16.° da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, e art. 49.° da Lei Orgânica do Processo Constitucional.
 
IV. O ARGUMENTO DO INTERESSE PÚBLICO
 
 
Ouvi, salvo erro, o professor Jorge Bacelar Gouveia defender a tese, que também não é nova no contexto da discussão pública em curso, de que a nomeação de Isabel dos Santos se justificava pelo interesse público. Como princípio regra o interesse público é definido por lei (Ver Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2003, p. 60) ou dela deduzido e não pelo livre arbítrio dos agentes públicos. A CRA e a Lei da Probidade Pública acolhem a probidade administrativa (pública) como um bem merecedor de proteção jurídica. E na relação entre a CRA e a Lei da Probidade Pública, Jorge Bacelar Gouveia (2014, p. 538), doutrina, bem, que a Lei da Probidade Pública constitui uma densificação (concretização pormenorizada, detalhada) do princípio constitucional da probidade administrativa, n.° 1 do art. 198.° da CRA. O nepotismo, proibido pelo n.° 1 do art. 28.° da Lei da Probidade Pública, e ao mesmo tempo um atentado contra a probidade administrativa, n.° 1 do art. 198.° da CRA, um bem constitucional, é reprimido pela ordem jurídica angolana. Logo não pode haver interesse público na prática do nepotismo por agentes públicos, porque, para além de tudo o resto, o nepotismo é legalmente definido como crime de prevaricação do agente público, sem prejuízo desta sanção penal não poder ser aplicada ao Presidente da República.
 
 
Dois ou mais bens constitucionalmente protegidos podem entrar em conflito. Quando tal acontece usa-se a técnica da ponderação de bens em conflito para decidir qual deles deve prevalecer sobre o outro, se não for possível harmonizá- los. Em que situação se poderia admitir uma justificação para a cedência do bem probidade administrativa, n.° 1 do artigo 198.° da CRA ou probidade pública, art. 5.° da Lei da Probidade Pública, em benefício do interesse público, no caso concreto da nomeação de Isabel dos Santos? A única hipótese que, na minha modesta opinião, poderia justificar a nomeação de Isabel dos Santos pelo agente público, seu pai, seria a inexistência de outra pessoa com competência e experiência para exercer o cargo de PCA da Sonangol! A engenheira Isabel dos Santos teria de ser a única pessoa possuidora de conhecimentos técnico- científicos e de experiência no ramo dos petróleos e de conhecimentos de administração de empresas que mais nenhuma outra pessoa tivesse e que fosse indispensável para a recuperação da Sonangol. E a justificação seria: em face da inexistência de outras pessoas tão ou mais capazes do que a engenheira Isabel dos Santos, o agente público, seu pai, por não ter outra escolha, em nome do interesse público – a recuperação da Sonangol – é forçado a nomear a filha!
 
 
Será razoável, do ponto de vista jurídico, admitir-se, sem nenhum meio idóneo para aferir a excepcionalidade das capacidades da engenheira Isabel dos Santos, que não existe mais nenhuma pessoa capacitada para exercer esse cargo? E que estamos perante a situação na qual só a engenheira Isabel dos Santos pode recuperar a Sonangol, por não haver mais ninguém tão ou mais capacitad(o)a do que ela para alcançar esse objectivo?
 
 
Note-se, bem, não pode ser apresentado o argumento de que só a senhora engenheira Isabel dos Santos está em condições de recuperar a Sonagol por ser filha do Presidente da República, por deter uma confiança especial do seu pai e ser intocável, porque ninguém ousará opor-se à filha do Presidente! Pois, bastaria que o agente público conferisse essa mesma confiança e apoio a outro ou a outra PCA da Sonangol. Ao contrário, estar-se-ia já a caminhar para a destruição da República e a consolidar o poder de uma família, resultado que os princípios da probidade e moralidade administrativas visam evitar.
 
 
Conforme defendi no mês de junho do ano em curso, a via para afastar o nepotismo seria o concurso público para selecção do ou da mais apta para o exercício desse cargo. Contudo, a lei não prevê que a nomeação dos gestores de empresas públicas seja feita com base em concurso público. Mas a sua convocação para o fim da discussão do problema em debate afigura-se pertinente porque nos permite salientar a insustentabilidade dos argumentos propagandísticos do mérito de uma pessoa que é apresentada como excepcional sem que, no entanto, tenha sido usado nenhum meio idóneo para aferir das suas capacidades comparativamente as de outras pessoas e igualmente salientar, em consequência, a parcialidade do acto do agente público, seu pai, que a nomeou.
 
 V. CONCLUSÃO
 
O parecer dos professores Sinde Monteiro e Almeno Sá, no essencial e quanto às consequências defendidas, na minha modesta opinião, parece-me não encontrar acolhimento doutrinal nem sustentação normativa por via da interpretação sistemática da Constituição e das leis ordinárias aplicáveis ao caso, que densificam (concretizam) a Constituição.
 
Primeiro, porque a Lei da Probidade Pública se aplica, sim, ao Presidente da República, enquanto titular do Poder Executivo, e sem dúvida aos actos administrativos da sua autoria.
 
 
Segundo, o n.° 1 do artigo 28.° da Lei da Probidade Pública não é inconstitucional. E proíbe aos agentes públicos, incluindo o Presidente da República, a prática do nepotismo. Esta lei densifica (pormenoriza, concretiza, desenvolve) o princípio da probidade administrativa, consagrado no n.° 1 do art. 198.° da CRA.
 
 
Terceiro, o processo judicial que corre os seus trâmites no Tribunal Supremo não é um processo crime. Trata-se, sim, de uma “acção popular” contra a “ilegalidade de uma acto administrativo”, art. 74.° da CRA, a nomeação pelo agente público da sua filha para o cargo de PCA da Sonangol.
 
 
Quarto, a inconstitucionalidade no todo ou em parte de algumas normas (penais) da Lei da Probidade Pública, concretamente as identificadas pelos professores Sinde Monteiro e Almeno Sá, a admitir-se como tal, não torna esta lei inconstitucional na sua totalidade, podendo e devendo aplicar-se a todos os agentes públicos a parte ou a totalidade das outras normas desta lei que não sejam inconstitucionais.
 
 
Ademais, deve-se dar primazia à interpretação conforme à Constituição, dentre várias interpretações possíveis. Pelo que aquelas oito normais (penais) identificadas pelos ilustres professores Sinde Monteiro e Almeno Sá não se aplicam ao Presidente da República na parte ou no todo nas quais forem inconstitucionais. Mas, repetindo, não o resto das normas da Lei da Probidade Pública que estejam em conformidade com a Constituição; numa das suas partes ou no seu todo.
 
 
O interesse público da nomeação da filha do agente público justificar-se-ia se não houvesse mais ninguém tão ou mais capaz do que a filha do agente público para exercer o cargo de PCA da Sonangol, tendo em vista a recuperação desta empresa pública. Não é essa a realidade. Logo, não pode ser invocado interesse público para fundamentar a nomeação da filha do agente público quando ela não é de facto a única pessoa capacitada (e ao mesmo tempo indispensável) para exercer o cargo de PCA da Sonangol.