Luanda - O alerta não é novo e tem vindo a ser reforçado em tempos de insegurança, desemprego e falta de recursos financeiros: a região da SADC está em recuo no que diz respeito às liberdades e garantias dos cidadãos. Angola não é diferente e a instabilidade na República Democrática do Congo (RDC) é um mau sinal.

É mais do que evidente que as autarquias deixam o MPLA em suspense

Fonte: RA
Mário Paiva é um experiente jornalista e analista político, com passagens pelo semanário Agora, entre outros, e uma forte ligação às instituições da sociedade civil africana que advogam a liberdade de imprensa e de expressão como direito humano essencial.

 

Foi um dos angolanos presentes em Windhoek, Namíbia, no dia 3 de Maio de 1991. Nesse dia, assinou-se a Declaração de Windhoek, uma proposta que defende a existência de uma imprensa independente e plural como base do sistema democrático. Em 1993, a Declaração de Windhoek foi ratificada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e a data passou a ser comemorada anualmente como o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa.

 

Em ano de eleições gerais, quando o país está em suspense perante a indefinição do MPLA e de José Eduardo dos Santos sobre uma eventual recandidatura, ao mesmo tempo que a economia não dá sinais da vitalidade necessária e as eleições autárquicas são invisíveis, Mário Paiva acredita que a mudança e o progresso dependem apenas de vontade política.

 

Sendo um jornalista com muita experiência, que opinião tem sobre a nova lei de imprensa e o restante pacote legislativo para a comunicação social, enquadrando estes factos com o que se passa noutros países da região da SADC? Há um retrocesso ao nível das liberdades e direitos?
Absolutamente. A questão legal, muito criticada principalmente no seio da classe (e nós concordamos com a opinião do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA)), entre outros actores, demonstra um retrocesso na auto-regulação dos jornalistas, um princípio básico dos estados de direito democrático. E também colocaria as críticas às várias limitações que existem ao nível da radiodifusão. Mas seria interessante reforçar as críticas que já foram feitas pelo SJA, como entidade profissional, e por outros sectores da sociedade civil e até alguns políticos, relacionando o novo pacote legislativo com as crescentes limitações de direitos e de exercício das liberdades que têm vindo a acontecer no país. A talho-de-foice podemos citar o processo judicial dos 15+2, que só após uma longa onda de protestos nacionais e internacionais e realização de greves de fome é que os presos foram libertados. Como também as próprias limitações do exercício do direito de manifestação, que são recorrentes. Ou a probabilidade de acontecer o uso desmedido da força, situação recorrente que envolve as autoridades nesse tipo de circunstâncias, que tem sido profusamente documentado por organizações da sociedade civil, como a Associação Justiça Paz e Democracia (AJPD), a Mãos Livres, só para citar algumas – e sem esquecer o trabalho de outras organizações como a Acção para o Desenvolvimento Rural e Ambiente (ADRA) ou a Omunga. Há um vasto leque de direitos e de liberdades que têm vindo a sofrer um retrocesso. E isto é uma situação muito grave. É uma situação que não fortalece o sistema democrático no país. Aliás, em minha opinião, continuamos a este nível devido a uma transição que não se consumou.


A que transição se refere?
No país é recorrente fazer referência às diferentes transições que têm vindo a ocorrer desde o fim da guerra civil, em 2002. Fizemos uma transição da guerra para a paz, uma transição de um sistema político em que durante a guerra, naturalmente, havia uma limitação grande em termos de direitos para um sistema, inicialmente, de exercício de direitos mais abertos. Em que o poder político pudesse, de algum modo, ser escrutinado, não apenas pelos processos eleitorais que ocorrem de tempos em tempos, mas por um vasto leque de cidadãos e instituições da sociedade civil – com o objectivo de se estabelecer e consolidar um sistema democrático. Ora, o que estamos a ver é um retrocesso ao nível destas transições todas – e faltou-me também referir a questão da justiça social, onde o problema do acesso à terra é o melhor exemplo. Temos assistido a um retrocesso geral, que abrange não só o exercício das liberdades, mas também o plano da justiça social. Há uma concentração maior da riqueza e não terá sido por acaso que o partido no governo colocou a distribuição da riqueza na sua agenda das eleições de 2012.

Foi o slogan do MPLA nas últimas eleições gerais: “Produzir mais para distribuir melhor”.

Justamente. Esta concentração excessiva da riqueza também está associada a um aumento da corrupção e da impunidade. Isto não está a acontecer só em Angola. É importante olhar para um conjunto de países da região, para nos situarmos ao nível da SADC. É um contexto muito negativo, que tem vindo a preocupar a sociedade civil, os jornalistas – que têm estado sempre na linha da frente nestas questões. Temos estado a ver as limitações, as perseguições, o fecho de jornais e, infelizmente, alguns casos de assassinatos de jornalistas. Mesmo naqueles países com sistemas políticos mais avançados, como é o caso da África do Sul e, em menor escala, da Namíbia. Estamos a ver ameaças crescentes à liberdade de imprensa. Vale a pena sublinhar que a declaração de Windhoek, que há mais de 20 anos tivemos a felicidade de ser testemunhas desse processo, estabelecia como princípios essenciais a independência editorial dos meios de comunicação, o pluralismo ao nível das ideias e a diversidade. São os três pilares essenciais para uma imprensa livre. O que é necessário é que a sociedade civil e os restantes actores políticos (e não apenas os jornalistas) reajam perante as circunstâncias. São processos que afectam toda a sociedade e merecem o exercício da solidariedade permanente e mútua de todos estes actores e organizações.

 

O pacote legislativo para o sector da comunicação social apareceu de surpresa e depois de vários anos em que algumas leis não chegaram a ser regulamentadas. E agora os factos estão consumados – a Assembleia Nacional já aprovou, tanto na generalidade como na especialidade, as novas leis para a comunicação social. Sem as alterações que a classe reivindicava. Sentiu alguma falta de solidariedade de fora do meio puramente jornalístico? Ou a solidariedade existiu mas o presidente da República e do MPLA, bem como a maioria dos deputados, não tiveram sensibilidade para este assunto?

Eu penso que temos aqui diferentes elementos. Por um lado, o governo, talvez em interesse próprio, escolheu um timing que se adequa às suas pretensões. Vêm aí as eleições, há também um agudizar das críticas, pelo menos em alguns sectores da imprensa e da sociedade civil face às práticas negativas. O governo utilizou uma ferramenta que, na minha leitura, favorece o próprio partido da situação. Isto, por um lado. Agora, quanto à questão da solidariedade, o problema é que este exercício tem de ser, do meu ponto de vista, um exercício permanente. As pessoas não podem solidarizar-se no fim do processo, quando os factores negativos estão consumados. A circunstância actual, seja no quadro parlamentar ou na relação política e social, não é assim tão favorável às forças do progresso. Algumas circunstâncias beneficiam as forças de bloqueio. A solidariedade tem de ser permanente, sempre que existem atentados à liberdade de expressão e de imprensa. E não pode ser exercida quando os problemas afectam aqueles que nos são mais próximos, deixando que aconteça uma certa atomização das organizações da sociedade civil, contribuindo ainda mais para a sua fragilidade. A solidariedade existe mas muitas vezes não é constante e só aparece quando os factos mais negativos são consumados.

 

Não deveria esta solidariedade estar consolidada à volta de algumas organizações que funcionam em rede, que já demonstraram independência e que são mais abertas ao dito progresso?

Também não é fácil. Devemos recordar que o país adoptou, há pouco tempo, uma legislação decalcada de outro país, neste caso a Rússia, relativamente às ONG e outras organizações da sociedade civil. Ao longo do tempo, registámos vários factores de bloqueio, como as contas bancárias trancadas administrativamente, já para não falar de outras situações mais desagradáveis. Ao nível de Angola, tanto no seio da classe jornalística como fora dela, entre a sociedade civil e os actores políticos começa a haver esta consciência de maior solidariedade. E penso também, como tinha referido antes, que ao nível da região é preciso retomar este espírito, que foi muito forte no passado. Foi esse espírito que nos permitiu fazer um série de desenvolvimentos.

Faz parte de uma geração de jornalistas angolanos e africanos que estiveram directamente envolvidos nestes processos históricos regionais – ainda há pouco contou que foi testemunha ocular da declaração de Windhoek, em 1991. Só para citar um exemplo, o Media Institute for Southern Africa (MISA, que tem representação em Angola) foi uma das organizações importantes no destapar de uma retórica sobre direitos humanos e liberdade de imprensa. Actualmente, o MISA parece uma organização amorfa e sem qualquer peso político ou social. Impõe-se na região austral o ressurgimento de uma dinâmica de diálogo e de influência sobre a sociedade a partir da sociedade civil?

Há aqui diversas questões. Em primeiro lugar, a necessidade que tenho sentido, quando estou em trabalho em vários países da região, não advém de organizações que já existem (hoje há mais organizações, mas o MISA é a mais antiga). As organizações independentes também sofreram muitos retrocessos, é um problema inerente aos desenvolvimentos que têm ocorrido em cada país e no conjunto da região. A classe jornalística não vive numa bolha. Apesar da evolução ao nível da diversidade, por exemplo, podemos olhar para o nosso país (onde vivemos e trabalhamos): é verdade que tivemos um aumento do número de meios de comunicação social, mas esse facto não se reflecte necessariamente nem no pluralismo de ideias e muito menos na independência editorial. É este processo que, de uma maneira mais ou menos similar, tem vindo a ocorrer nos outros países da SADC. Quer dizer, cada situação tem a sua particularidade, evidentemente, os contextos são distintos, houve alguns progressos, há mais meios de comunicação, mas não podemos esquecer que, infelizmente, a qualidade profissional não cresceu na mesma proporção. Também queria referir que sobretudo os padrões éticos também baixaram muito. Vivemos numa sociedade onde existe muita corrupção. Numa sociedade em que, do ponto de vista de Jure (da legislação, da lei) existe uma democracia. Mas quando olhamos para os meios de comunicação social não vemos ali o pluralismo de ideias. Não vemos o contraditório suficientemente reflectido. Muitas vezes, nos meios públicos (para não falar dos privados), vemos que o pluralismo, o contraditório e a independência editorial (elementos que proporcionam às audiências e aos leitores diferentes perspectivas sobre os factos da notícia) não são proporcionais. Houve um determinado retrocesso. Mas também é preciso não sermos absolutamente pessimistas.

 

Claro, o caminho é feito de avanços e recuos. Mas também é preciso que os espaços de diálogo sejam efectivos.
Já assistimos ao surgimento de um conjunto de organizações ao nível da sociedade civil e de novos actores no espectro político – falo do conjunto dos países da região – que de alguma maneira enriqueceram o processo. Há uma geração de novos elementos que, também ao nível dos direitos, como demonstra o processo 15+2 e outros processos, tem demonstrado ter valor. Que segue os princípios da democracia e dos direitos humanos. Temos aqui diferentes factores. É preciso conjugar esses factores – aqueles que advêm do passado e que reúnem experiência e qualidade ao nível das ideias – a factores novos que emergiram, progressistas novos, e fazer esse exercício de solidariedade e unidade. A unidade não tem de ser absoluta, não precisamos de estar todos a bater palmas num concerto unanimista.


Unidade é diferente de unanimidade.
Sim, não é nada disso. Os diferentes actores devem se pronunciar e demonstrar o seu consenso e o seu exercício como cidadãos. Há um conjunto de coisas que é preciso afinar. Mas é evidente que há desafios sérios à nossa frente, no conjunto da região, porque de facto é preciso que exista uma reacção do conjunto da sociedade contra os processos negativos, contra os factores de bloqueio que têm vindo a emergir em toda a região austral.
João Lourenço e as eleições

 

A forma como o governo comunica com os cidadãos tem sido motivo de muitas críticas. É normal estarmos a cerca de oito ou nove meses das eleições e o MPLA ainda não ter anunciado, com pompa e circunstância, o cabeça-de-lista e o número dois para as eleições gerais de 2017?

Bem, o MPLA lá saberá do seu próprio governo. O meu exercício é como jornalista e como cidadão. O que eu posso adiantar é o seguinte: nós sabemos que, ao longo da história recente, o MPLA foi um partido em que o poder esteve concentrado na figura presidencial. Isto foi sancionado durante a guerra civil ao nível dos famosos “poderes especiais” do presidente da República e voltou a ser reformatado ao nível da actual Constituição. Eu recordo-me de ter escrito no semanário Agora que a Constituição da República de Angola era um fato à medida dos desígnios presidenciais. O MPLA sentiu-se na necessidade de acomodar a pessoa e a figura do presidente da República, José Eduardo dos Santos, no sentido de dar continuidade à sua liderança. Evidentemente que escusado será dizer, e isto já tem sido escrito e debatido até à exaustão por diferentes analistas, que este exercício prolongado do presidente JES cria desgastes políticos evidentes.

 

Em que sentido?

Quando sabemos que este exercício prolongado também teve ou tem estado, de algum modo, associado à existência de um núcleo duro, de um inner-circle em torno da figura presidencial que, de facto, tem os comandos do partido no governo. E, por extensão, do país. Numa altura em que a guerra já terminou há bastante tempo, em que o partido se sente pressionado a fazer uma certa renovação – que mesmo assim não tem sido apenas lenta. Tem sido travada. A renovação das lideranças também faria emergir discussões políticas ou, se quisermos, ideológicas, embora a ideologia não tenha tanto peso no seio do MPLA. São processos que estão associados aos muitos casos de desgoverno, de impunidade em termos de corrupção, de má gestão, que aumentam o desgaste da figura do presidente JES. É um contexto que nos levaria sempre ao debate da sucessão – já para não falar nos factores puramente físicos e temporais. A sucessão presidencial seria sempre, ano após ano ou, se quisermos, legislatura após legislatura, colocada com maior acutilância. É uma pressão que vem da sociedade, da oposição, é uma posição que vem do interior do próprio partido.

O MPLA é muito fechado e controla directamente os meios de comunicação social públicos (realidade que limita a produção de informação acerca do partido), por isso é difícil conhecermos bem essas tendências. O que é certo é que, mesmo assim e sem ir ao passado, podemos referir os casos de Ambrósio Lukoki ou Marcolino Moco como críticos da actual direcção. Acabam por ser evidências das tais correntes dentro do partido.

 

Tudo isto conduziu ao anúncio do presidente da República [que prometeu se retirar da política activa em 2018]. Agora, o que nos diz a história? Não é a primeira vez que JES anuncia que se vai retirar. Desta vez foi muito mais preciso e até já houve eco ao nível de determinados dirigentes provinciais. O que é certo é que ainda não temos uma reacção oficial da direcção do MPLA. Pergunta-se: mas porquê?

Exacto, é a pergunta que se impõe. Quando vamos ter uma indicação oficial do MPLA sobre as candidaturas às eleições de 2017?

Julgo que a posição ainda não foi assumida porque nem todos os sectores dentro do MPLA estão de acordo com aquilo que se tem sugerido ao nível do cabeça-de-lista e da segunda pessoa.

 

Os nomes ainda não estão totalmente definidos?

Podem estar definidos, mas apenas a um certo nível. Nós ainda não sabemos. Em todo o mundo há política de bastidores, mas aqui ainda temos os bastidores por trás dos bastidores. Neste aspecto, o MPLA chegou a admitir a existência de tendências e agora voltou a anular esta ideia. É um partido que em vez de evoluir se fecha, onde nem se pode ouvir falar de eleições primárias, por exemplo. Essa história recente indicia que o processo de sucessão terá que ocorrer pelas razões que já referi. Em síntese, a mudança reflecte até as alterações no contexto político nacional e internacional, para além das reacções internas do MPLA e as razões físicas relacionadas com a idade de JES – a mudança terá que existir. Em primeiro lugar, parece-me evidente a existência de problemas ao nível da comunicação do MPLA. Também me parece evidente que nem todo o mundo estará de acordo com a saída de JES da Presidência da República – e o desacordo não é só com as pessoas que se alinham para o substituir mas com a maneira como o processo está a ser conduzido. É preciso ter em conta que há um grande receio – e eu diria que não é só o receio -, há uma percepção muito generalizada, devido ao exercício prolongado de JES (ainda por cima de forma tão concentrada à volta da sua figura), que indica que a sua retirada de cena, por menor que ela seja, vai alimentar as tensões internas do MPLA. É uma percepção quase generalizada.



Que tipo de tensões?

As tensões podem não ser, num primeiro momento, muito visíveis. Mas há vários grupos de interesse que se alinham ou se realinham no MPLA. Esses grupos, ao contrário do lugar comum das afinidades étnicas ou políticas, foram consolidando a permanência do MPLA no poder em torno de factores económicos e financeiros. É preciso dizer isto. Já não estamos naquela época em que os factores étnicos pesavam de algum modo. A evolução levou a que este realinhamento se tenha efectuado em torno do exercício do poder. O poder económico e financeiro tem de estar, naturalmente, encostado ao exercício do poder político. Essas tensões hão-de aumentar e de emergir. Só não sabemos como vão evoluir, justamente pelo carácter relativamente fechado do MPLA. Eu não dou de barato que este processo vá ser linear. E as alterações que o processo pode provocar também são um bocado complicadas, porque poderiam implicar até mudanças constitucionais.

 

Algumas pessoas sempre disserem que, no dia da saída de JES, seria o próprio MPLA a se movimentar rapidamente para alterar o texto da Constituição. Concorda com esta opinião?

Eu concordo. Vou explicar porquê – esta Constituição foi moldada para a própria figura do actual presidente da República. Penso que muita gente, no interior do MPLA, não estará confortável que o sucessor de JES, imaginando o cenário de vitória do MPLA nas eleições gerais de 2017, venha a deter os mesmos poderes. É a percepção que tenho. Ao nível da sociedade civil e dos partidos políticos, várias pessoas já se manifestaram por uma revisão da Constituição.


Por exemplo, Abel Chivukuvuku, durante o congresso da CASA-CE, realizado em Setembro, avançou que a revisão constitucional fará parte do seu programa de governo.

Até pode haver uma confluência momentânea de interesses, entre algumas correntes do MPLA e da oposição. É um cenário curioso. Este processo não será linear, ao contrário dos anúncios que estão a ser feitos. Toda a narrativa do MPLA enquanto partido, sobretudo enquanto partido no governo, ao longo das décadas, não aponta para este sentido.



E qual é a sua opinião sobre a forma como se está a organizar as eleições gerais de 2017? Está confiante que será uma eleição limpa e sem problemas técnicos e éticos?

Em primeiro lugar (esta opinião tem sido referida tanto ao nível da sociedade civil como das oposições), há muitos pontos de fragilidade na maneira como o processo eleitoral tem vindo a ser conduzido. Sobretudo, as entidades que deveriam dirigir e monitorizar as eleições desde a base (municipal ou comunal) confrontam-se com muitos pontos frágeis, que convinha que tivessem sido evitados. Para não criar as tradicionais dúvidas, independentemente do partido A ou B poder vir a ter vantagens eleitorais. Refiro-me mesmo ao próprio MPLA. São vantagens que não abonam em proveito de uma democracia que se quer mais transparente e consolidada. Também gostava de fazer referência a um ponto que não tem sido muito analisado: temos vindo a notar que há um grande crescimento do campo da abstenção.

 

Em 2012, a abstenção foi bastante elevada. Por que é que muitos angolanos não estão interessados em votar?

Por desencanto com a política. Porque as condições de vida da generalidade das pessoas alteraram-se muito negativamente nos últimos anos. São cidadãos que já não têm grandes expectativas. Muitos concordam com as críticas de vários partidos políticos mas não estão a ver de que forma isso pode se reflectir no resultado eleitoral. É um perigo grande para o país. Em relação ao sistema político, o facto do cabeça-de-lista à Assembleia Nacional assumir a presidência da República também bloqueia entendimentos ao nível da própria oposição. Este modelo político dificulta tudo. Podem até haver consensos políticos alargados mas pode não haver consenso para o cabeça-de-lista.


Talvez a CASA-CE, que nasceu como coligação mas que continua no impasse de se transformar em partido político, seja um bom exemplo dessa confusão.

Não quero particularizar, mas são situações que acontecem em vários partidos. Podem discutir consensos mas chegam a um ponto em que ficam bloqueados – quem vai ser o cabeça-de-lista? O consenso está bloqueado pelo modelo eleitoral. A oposição poderia tirar partido da conjuntura em que estamos. Mas também é preciso dizer que a desconfiança do eleitorado face à política, face ao sistema político tal como ele está desenhado, em que existe uma corrupção generalizada e um clima de impunidade quase absoluto, um aumento da desigualdade social, é um factor que pode afectar o partido da situação. Mas que também pode causar problemas à oposição.


Hoje em dia fica a sensação de que os cidadãos já não fazem uma grande distinção entre os diferentes partidos políticos. Todos são descritos como incompetentes, uma atitude que roça um niilismo que também demonstra falta de conhecimento e insegurança.

É um mau sinal. Assim não se podem produzir mudanças. Porque uma coisa é o descontentamento, que é essencialmente económico e social. E para esse descontentamento se traduzir na vida política tem de ser demonstrado no processo eleitoral. A soma do descontentamento das populações não é uma lição simples, do ponto de vista aritmético, em relação aos resultados eleitorais. É preciso evitar esta ligação.

 

Na eventualidade de ser o cabeça-de-lista do MPLA, em 2017, será João Lourenço a pessoa certa para enfrentar o contexto que nos tem descrito?

Se olharmos para o seu discurso, podemos identificar referências que vieram confirmar que se trata de uma pessoa da linha do conservadorismo político-ideológico, mais do que de uma linha de eventuais mudanças. Há aqui um caldo de cultura política, tanto na sociedade em geral como dentro do MPLA, que ainda pode trazer algumas novidades. Não leio assim à pressa e em definitivo os momentos que vêm a seguir. Gostava de referir que há outro traço igualmente negativo, que devo incluir na lista dos retrocessos, que é o adiamento sucessivo das eleições autárquicas. Está mais do que explícito que o partido no governo adiou as eleições autárquicas por razões que têm a ver com o receio do tal descontentamento (que se poderia traduzir de modo considerável neste tipo de eleições).


As autarquias podem, dependendo da estrutura legal e de auto-financiamento, mudar a forma como se estrutura o poder no país: neste momento, toda a vida está centralizada em Luanda e na actividade do Titular do Poder Executivo, que é o presidente da República. São dois factores inter-relacionados e que dificultam sobremaneira a descentralização administrativa e financeira em Angola. No dia em que as autarquias entrarem em vigor, naturalmente que a forma como o poder se organiza e implementa será diferente. Há a possibilidade de surgirem uma série de pequenos poderes (económicos, políticos e sociais de cariz local ou regional), que acabam por ser difusos e que desestruturam a forma como o MPLA tem controlado a situação. O MPLA tem receio de perder força num cenário de autarquias?

Nem lhes convém forçar a pressão nesse sentido. O MPLA, de algum modo, está a tentar arranjar uma solução que lhes permita equilibrar a balança. É mais do que evidente que as autarquias deixam o MPLA em suspense. Foi por isso que a realização das eleições autárquicas foi travada. Já vimos diferentes argumentos. Temos o problema das autárquicas, da corrupção, da impunidade generalizada, da má gestão, da justiça social. Se pudesse resumir, eu diria que enquanto não existir vontade política que possa configurar uma mudança, não vejo e não acredito que possam ocorrer grandes alterações.


Nem mudando o presidente da República?
Não acredito, porque a questão não é só da pessoa. É, em primeiro lugar, uma questão estrutural do sistema. Porque a pessoa pode mudar mas o sistema vai estar lá. Um novo rosto pode trazer algumas nuances. Depois, os eventuais candidatos que estão na pole–position, se apresentam com um discurso conservador. Não têm um discurso para a mudança. A evolução do contexto, de degradação da situação económica e social (é este o cenário em cima da mesa, seja por via de especialistas nacionais ou internacionais) vai fazer aumentar as tensões sociais – e políticas também. E nós, mais uma vez (gosto muito destas conexões porque não estamos isolados no mundo), temos a situação na República Democrática do Congo (RDC). Já com alguns fenómenos de confronto entre forças militares. E parece que vamos ter mudanças na atitude internacional perante os nossos vizinhos. Se a RDC for gravemente afectada, como já vimos acontecer ao longo da história, o contexto não favorece o surgimento de mudanças. Se as tensões começarem a aumentar, a tendência será conservadora. Só que o aumento da tensão também aumenta a conflitualidade no seio do país, que pode se agravar. É essencial que exista vontade política para propiciar um cenário de mudança generalizada.