ImageLuanda - Fazer um levantamento das inconstitucionalidades, quer por acção, quer por omissão, praticadas por JES nos seus 25 anos de consulado não é tarefa simples pois demanda um trabalho que não estou em condições de fazer aqui e agora. Por outro lado, creio que esta missão seria fastidiosa a partir de determinado momento pois o actual Presidente da República passa a governar em sistema de golpe de Estado permanente e, por isso, a violação da Constituição passa a ser o seu método normal de governação e o discurso da legalidade, pontual e esporádico, transforma-se em simples meio de legitimação.

A partir daí, não é mais o poder que tem que ser exercido sem violar a Constituição mas, pelo contrário, somente se aplica a Constituição quando esta não se opõe ao interesse do poder pessoal e patrimonial do PR. Direi, pois, que se o actual PR se coloca acima da Constituição, a violação desta surge, aos seus olhos, como conatural. Mas, tendo sido adoptada uma ordem que define Angola como um “Estado democrático de direito”, é evidente que o golpe de Estado permanente que sustenta o poder de JES não pode aparecer na sua brutalidade pura, na sua ilegitimidade total, como conspiração permanente contra a República e a Democracia, precisa de se apresentar como um poder consentido pelo corpo político nacional.

Toda a ordem social que se arrisca a deixar seus significados e valores flutuando no espaço vazio destrói seus fundamentos metafísicos. E, por isto, nenhuma ditadura, por mais feroz que o tenha sido, ignorou completamente a necessidade de se inscrever num sistema de legitimação. Aquelas que menos cuidaram desta tarefa, foram as que menos duraram. Nenhum regime se sustenta, durante muito tempo, sem um quadro de valores partilhado, aceite ou tolerado, pelo menos, por uma parte considerável da comunidade nacional.

O regime angolano não é diferente. Por isto, se desdobra em fazer crer que o seu poder assenta não no clientelismo e na violência mas na legitimidade democrática. E quando não pode recorrer a legitimidade racional e legal, recorre quer a tradição revisitada e modelada em função de interesses circunstanciais ou ao carisma do chefe, agora apresentado como um chefe de guerra que embora inspirando temor (violência simbólica) é magnânimo.

 A eficácia de todas estas construções depende da capacidade dos "ideólogos" do regime em transformar os defeitos do chefe em virtudes, de fazerem dele, não o dinossauro dentro de uma loja de cristais que a cada gesto parte um objecto e ameaça partir os demais, mas o iluminado que desinteressadamente procura o “melhor” para o país, o dirigente atento que escuta o povo (mas não cede) e apenas se limita a fazer a síntese das várias vontades em presença (numa visão corporativista hegeliana perfeita).

Por agora, os esforços recentes de alguns "ideólogos" vão no sentido de desresponsabilizar o Príncipe do facto de mais uma vez, este ano (depois de 1996 e 2000), os angolanos virem a ser privados da liberdade de escolha dos seus representantes (e governantes).

Na verdade, se a guerra não justificava os atropelos à democracia, o fim desta, na expectativa geral, deveria corresponder ao retomar da normalidade constitucional, nomeadamente, retomando-se o calendário eleitoral constitucional em 2004, quer para as eleições legislativas, quer para as autárquicas. Mas como o poder não está disposto a ceder na sua intenção de prolongar a ditadura e a predação, o actual PR, teimando no golpe de Estado permanente, procura por “guerrilha” de baixa política e por gestos de pura diversão, impor ao país o seu calendário político pessoal, sobrepondo-se aos interesses nacionais, desprezando as oposições (mesmo internas), não dando ouvidos às sensibilidades da sociedade civil que lhe parecem incómodas, enquanto transfere para outros a responsabilidade legal que é só sua, para justificar (o injustificável) a falta de eleições, de liberdade de empreendimento, de justiça social, o incumprimento reiterado da ordem constitucional, a continuação do seu poder arbitrário, a predação da riqueza nacional e o subdesenvolvimento que lhe está associado.

Este é o quadro geral de inconstitucionalidade permanente em que governa JES que tem o seu auge no último esforço dos seus “ideólogos” para convencer a Nação de que a Constituição vigente é inconveniente para o país porque não conforta a prática governativa do Príncipe absoluto que desde sempre se mostrou partidário do comando único, do centralismo e do autoritarismo; um empedernido adversário da separação de poderes, da responsabilidade dos governantes perante os governados e da participação dos cidadãos no espaço público. Ainda na I República, a sua libido dominandi levou-o a querer cada vez mais poder e cada vez menos responsabilidade diante dos governados.

Desde os primeiros anos do seu consulado requisita para si, junto dos seus colegas de direcção do partido único, “poderes excepcionais” a juntar a todos os poderes que já concentrava na sua própria pessoa.

A sua atribuição foi uma violação da ordem constitucional revolucionária que embora tendo na “revolução” um prius em relação à Lei, atribuía “a direcção do Estado e da sociedade” a uma “vanguarda” e não a um líder iluminado que se permitia alterar, directamente ou taravés dos seus assessores, resoluções ou leis da Assembleia do Povo. Aliás, a existência do “governo” paralelo no Futungo sempre foi mantida em flagrante violação da Constituição. Também, na sua relação com os órgãos da Justiça, quer o Ministério Público, quer os Tribunais, a primazia é a inconstitucional instrumentalização destes, desde que JES se opôs à independência dos delegados provinciais do Procurador da República em relação aos Comissários provinciais (então tidos como “os representantes do PR na província”) e à subordinação destes à Lei como era defendido pela corrente da “legalidade socialista” que pretendia construir um “Estado legal” mesmo no quadro da “revolução socialista”. Ou ainda inconstitucionalidades administrativas primárias e risíveis como a exoneração directa, pelo PR, de directores de empresas públicas ou de um simples redactor da Angop.

Na II República, ele próprio assumiu o poder em contravenção das normas constitucionais e sobrepondo-se aos demais órgãos de soberania, já que a sua própria “eleição”, dada como concluída por força dos factos, foi também uma solução violadora da Constituição e, nomeadamente, da sua Lei de Revisão. E, como JES, apesar da nova ordem constitucional, vai governar quase sempre em regime de excepção (que não sendo declarada nos termos da Constituição e sendo permanente, melhor será dizer; em regime de subversão) como os seus “ideólogos” procuram explicar até para a crise do lixo de Luanda, não é de estranhar que as inconstitucionalidades se amontoem umas atrás das outras.

Na verdade, desde a crise pós eleitoral, JES nunca mais se preocupou em respeitar a Constituição da República: profundamente convencido de que ele é a própria encarnação da ordem política nacional, exercendo o poder segundo a ideia de que “o Estado sou eu” (como dizia Luís XIV [1638-1715]), exonerou arbitrariamente Marcolino Moco, cuja legitimidade decorria da composição política da Assembleia Nacional, e era sustentada pela maioria parlamentar eleita (não a actual maioria administrativa) e que, por essa razão, apenas poderia ser exonerado de forma legal (constitucional), não tendo este apresentado a sua demissão, através de uma moção de censura (como foi o caso, por exemplo, em S. Tomé e Príncipe, onde um governo MLSTP-PSD caiu por efeito da sua própria maioria, tendo o mesmo partido, logo de seguida, formado outro governo saído do seu seio). Ou então, fazendo funcionar os mecanismos constitucionais de dissolução ou de excepção. Nem uma, nem outra coisa foi feita. Pelo contrário, JES, ao estilo do partido único, exonerou este PM contra a sua própria maioria na Assembleia Nacional, escorado nas manifestações "populares" que organizou através do seu "Movimento Expontâneo”: organização de choque que não se coibiu de utilizar propósitos tribalistas contra Moco, dos quais JES, até hoje, não se demarcou.

Depois de França Van-Dúnem a restauração autoritária é quase completa, a situação de ilegitimidade e ilegalidade brada aos céus e, aí, o paroxismo do despotismo vai ao ponto de dizer: se não quero PM, não nomeio o PM, mesmo se a Lei a isso me obriga. Eu posso, mando e faço, o resto que se cale! – o resto, neste caso, é a Nação. Assumiu ele próprio directamente a governação escorado em argumentos risíveis como o facto de o PM não ser eleito. E quando decidiu finalmente nomear um PM, tendo-se ele próprio declarado chefe do executivo, esvaziou o cargo e fez dele um simples tarefeiro que não controla o Governo mas que tão somente coordena algumas áreas da governação e serve de saco de pancada para a oposição e a opinião pública. Já antes havia privatizado as Forças Armadas e levado à intervenção destas nos dois Congos sem autorização da Assembleia Nacional, somando mais uma grave inconstitucionalidade às anteriores. Privatizou a diplomacia nacional colocando-a, em parte, ao serviço exclusivo do seus interesses pessoais – o que é também inconstitucional.

 A sua relação com os Governadores provinciais continua a ser de tipo consular e não republicano, o que é uma violação da ordem constitucional. Enquanto Presidente da República tem uma relação de favorecimento em relação ao seu partido, o que constitui também uma flagrante violação da Constituição, quer em relação aos demais partidos, quer aos cidadãos em geral. No domínio económico e financeiro aliena o património nacional e contrai dívidas sem autorização da representação nacional.

Durante anos a fio ignorou a sua obrigação de nomear o Presidente do Tribunal de Contas e quando o fez atropelou a Lei Constitucional para colocar no lugar um seu comissário político. Continua a teimar em não nomear os juizes do Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça apesar das suas promessas públicas desde há anos. Bloqueia a democracia municipal e também utiliza o seu poder em flagrante desrespeito da Constituição e das instituições para “castigar” aqueles que acha que são irreverentes e não lhe afagam o superego, e teima, há 12 anos, em não dar posse ao Secretário Geral da FpD no Conselho da República, de que este, sendo líder de um partido parlamentar, é, por força da Constituição, membro de jure.

Em suma, JES governa de costas para a Constituição e tem, até, manifestado uma radical intolerância em relação a sua filosofia de fundo, republicana e democrática (baseada no principio da Liberdade, da igualdade perante a Lei e da separação de poderes) e, por isso, faz questão absoluta de a substituir por uma simples lei de autorização que fundindo a ordem político-jurídica na sua pessoa, autorize a ele próprio a ditar a lei, no mais genuíno estilo do absolutismo medieval.

*Cientista político
Publicado inicialmente in jornal AGORA.

Fonte: www.fpd-angola.com