Luanda - A FpD, perante a grandiosa fraude de 5 de Setembro de 2008, não tendo obtido 0,5% dos votos validamente expressos, por força da clausula-sanção que consta da Lei dos Partidos Políticos (que foi resultado do pensamento autoritário confluente na Assembleia Nacional anterior) viu-se obrigada a empreender um processo de (re)fundação. Publicitou essa sua intenção, convocou os seus militantes para uma Convenção de extinção (nos termos da lei e dos seus estatutos) e, imediatamente a seguir, realizou uma outra convenção de fundação que aprovou, pelo voto, as linhas de força programáticas e estatutárias da nova FpD e legitimou um grupo de companheiros para integrarem uma Comissão Instaladora que deveria, ao ser credenciada junto do Tribunal Constitucional, dirigir o processo de registo do (novo) partido político, nos termos da Constituição e da Lei dos Partidos Políticos.

O Presidente do Tribunal Constitucional indeferiu “o requerimento para o credenciamento da Comissão Instaladora do Partido Político designado FpD”. O seu “Despacho”, exarado a 12 de Maio de 2009, depois de ter ouvido um representante do Ministério Público e os demais Juízes-Conselheiros daquele tribunal, fundamenta esta sua decisão na ideia segundo a qual o requerimento da FpD “visa, não apenas a criação de um sucedâneo do Partido FpD mas, sobretudo, a sua “refundação”, com a mesma designação, com o mesmo emblema, com o mesmo ideário e com o mesmo núcleo directivo”.

Para o Tribunal Constitucional esta atitude da FpD é “um exercício em fraude à lei que dispõe sobre o destino dos Partidos que não obtêm o mínimo de 0,5% dos votos nas Eleições Legislativas (Lei n.º 2/05 de 1 de Julho), isto é, traduz-se numa inequívoca tentativa de contornar os efeitos decorrentes da extinção de um Partido e, também, de frustrar a eficácia de uma decisão judicial” (putativa), já que “uma refundação e nos termos em que vem requerida, não pode ser consentida e legitimada por este tribunal por ser manifestamente defraudadora da lei, dos fins e valores que ela tutela e é, consequentemente, ilícita quanto ao seu objecto jurídico”. Assim sendo, para o Tribunal Constitucional, a nova FpD não pode existir porque seria entendida como a continuidade da anterior FpD e, esta, carece de “representatividade social mínima”.

Temos pois nesta decisão do presidente do Tribunal Constitucional vários impedimentos que fundamentam a sua recusa de credenciar a “Comissão Instaladora da (nova) FpD”. São eles, a “designação”, o “emblema”, o “ideário” e o “núcleo directivo”, ou seja, o capital simbólico, os valores e as pessoas que pertenciam a um partido extinto por não ter “representatividade social mínima”. O que quer dizer que este “despacho” está eivado de pendor ideológico pois visa impedir inquisitoriamente que uma “sigla”, um “símbolo”, um “ideário” e um grupo de pessoas tenham direitos e existência no espaço público. Esta decisão do Tribunal Constitucional que procura negar uma identidade e os seus direitos fundamentais, é digna de reflexão para que se compreenda o que está por detrás de uma tal orientação.

No entender do Tribunal Constitucional, um dos requisitos legais de existência dos partidos políticos é a “representatividade social mínima” e, em torno deste requisito estabelecido pela lei ordinária, o Tribunal Constitucional passa o rolo compressor por cima de direitos fundamentais dos cidadãos consagrados pela Constituição. Por outro lado, ignora que a própria lei ordinária estabelece três limites sobre a “representatividade social mínima” dos partidos políticos: um para a sua “constituição”, prescrevendo a necessidade do requerimento de inscrição de um partido político ser subscrito por um mínimo de 7500 cidadãos (artigo 14º, nº 1, da Lei 2/05, de 1 de Julho, Lei dos Partidos Políticos), outro para a sua “participação nas eleições”, exigindo que a sua candidatura às eleições legislativas sejam suportadas por 14000 eleitores (5000 para o circulo nacional, 500 por cada uma das 18 províncias do país) (artigo 62º, Lei 6/05, de 10 de Agosto, Lei Eleitoral) e um terceiro para a sua “continuação” após participação no sufrágio eleitoral, ao determinar a extinção dos partidos que não atinjam 0,5% dos votos validamente expressos no pleito eleitoral em causa (artigo 33º, nº 4, alínea i, da Lei 2/05, de 1 de Julho, Lei dos Partidos Políticos).

No último caso, entende o legislador ordinário que o limite não é absoluto, opus legis, como nos anteriores, mas relativo à vontade validamente expressa dos eleitores (no caso da FpD, substituídos pela mão invisível da fraude). O quer dizer que se atribui ao voto não apenas um sentido positivo mas também um outro negativo, já que não manifesta apenas a escolha positiva de um partido mas também exprime o carácter da sua repulsa em relação a outro. De tal maneira que aquele que não obtiver um número mínimo relativo suficiente de eleitores que se oponha a essa repulsa, é extinto. Não foi esse o sentido que os cidadãos deram ao voto, mesmo porque esta interpretação sobre o sentido do voto dos eleitores não é legítima e conforme à letra e espírito da Constituição e a concepção da democracia. A democracia não pode ser confundida com a ditadura da maioria. Uma das características fundadoras da democracia é a aceitação do Outro, é o estatuto de minoria, é a aceitação da liberdade de pensamento, de expressão, de organização. É, por isto, que a constituição dos partidos é resultado da vontade soberana dos cidadãos e não do seu registo no Tribunal Constitucional. Nunca é demais lembrar também que “o pluralismo de expressão e de organização política”, bem como, “o respeito e garantia dos direitos fundamentais do homem, quer como individuo, quer como membro de grupos sociais organizados” são fundamentos da República de Angola (artigo 2º, da Lei Constitucional) e fazem parte do seu núcleo intangível (artigo 159º, da Lei Constitucional), desde que esta passou a organizar-se em Estado democrático de direito.

Logo, a extinção de partidos políticos, baseada na vontade (putativa) de uma maioria é um verdadeiro anacronismo, próprio dos regimes autoritários. Mesmo porque a Constituição considera que os partidos políticos não são somente um dos meios de “expressão do sufrágio universal” mas também uma forma de “organização e expressão da vontade dos cidadãos” e de participação na vida política do país (artigo 4º, da Lei Constitucional). Na verdade, os partidos políticos são entendidos como uma das várias “formas de participação democrática dos cidadãos na vida política” e na expressão da soberania popular (artigo 3º, da Lei Constitucional). A livre constituição de partidos políticos pelos cidadãos é um direito fundamental (artigo 4º, nº 4, alínea b, e artigos 28º e 32º, da Lei Constitucional) e os direitos, mormente os fundamentais, não podem depender, na sua realização, senão dos próprios sujeitos. A teoria do direito é clara ao dizer que a um direito corresponde sempre um dever ou uma sujeição. A realização de um direito fundamental não pode estar dependente da opinião de outrem ou da autorização de uma autoridade. Se assim fosse não seria um direito.
  
Para além da “livre constituição”, os únicos “princípios fundamentais” que devem ser observados na “constituição e funcionamento dos partidos”, previstos pela Lei Constitucional, são os seguintes: carácter e âmbito nacionais, prossecução pública dos fins, liberdade de filiação e filiação única, organização e funcionamento democrático, utilização exclusiva de meios pacíficos, interdição de criação ou utilização de força militar ou militarizada e interdição de recebimento de contribuições de instituições governamentais estrangeiras (artigo 4º, nº 4, LC).

O legislador ordinário entra em várias contradições em relação ao papel dos partidos políticos. Umas vezes vai no sentido do entendimento da Constituição, outras afasta-se dela e até a viola. Os partidos políticos são entendidos pela Lei dos Partidos Políticos, em termos conceptuais como “organizações de cidadãos, de carácter permanente, autónomas, constituídas com o objectivo fundamental de participar democraticamente na vida política do país, concorrer livremente para a formação e expressão da vontade popular e para a organização do poder político” (artigo 1º, da Lei 2/05, de 1 de Julho). No entanto, em sede de extinção, os partidos políticos são entendidos como meros instrumentos de participação no exercício do sufrágio universal que não tendo uma “representatividade social mínima” deixam de existir.

Lamentavelmente, o Tribunal Constitucional não se refere nunca à Constituição e nem cita os artigos da Lei dos Partidos Políticos que são violados por esta pretensão da FpD. Constato até que o Tribunal Constitucional subordina a Constituição à Lei ordinária e à uma decisão judicial. O que denota que este se enganou na sua vocação: está mais preocupado com a legalidade (sticto senso) do que com a constitucionalidade. Hans Kelsen deve estar a revirar-se na tumba. Não há noção de hierarquia da lei, da diferente força vinculativa das normas em função da sua natureza e do seu corolário escalonamento numa hierarquia em que no vértice da pirâmide aparece irrevogavelmente a Constituição que é fonte de validade das demais normas, não podendo, por isto, ser afastada por nenhuma delas. E, por isso, aquilo que a Constituição permite não pode ser denegado por nenhuma outra norma ou decisão judicial (real ou putativa, como é o caso). Em nome dessa hierarquia, apenas no quadro da filosofia e economia normativa da Constituição poderemos aferir a validade da “lei, dos fins e valores que ela tutela

Segunda constatação, entende o Tribunal Constitucional que a lei proíbe a refundação de partidos extintos por lei. Em lei nenhuma isto é dito! Tratasse apenas de uma pretensão ideológica. A lei não proíbe a refundação de um partido extinto. A lei apenas regula a fundação de partidos políticos que é um direito constitucional dos cidadãos angolanos e, até, uma das formas de exercício da soberania popular (artigo 3º, da Lei constitucional). A explicação sobre a ilegitimidade da intenção de uma “refundação”, como é pretensão da FpD, deveria e poderia ser encontrada através de um exercício de hermenêutica jurídica que esclarecesse a ratio da lei em debate. Nada disso foi feito e apenas expendidas convicções ideológicas que entendem a “democracia” como a ditadura da maioria. Porque o Tribunal Constitucional entende que a lei pode não só extinguir partidos políticos mas também perseguir “ideologias” e pessoas, já que o Tribunal Constitucional acha que o pedido de inscrição da Comissão Instaladora da nova FpD “visa, não apenas a criação de um sucedâneo do Partido FpD mas, sobretudo, a sua “refundação”, com a mesma designação, com o mesmo emblema, com o mesmo ideário e com o mesmo núcleo directivo”. Onde está a ilicitude de uma tal pretensão? Qual a lei, a norma que impede isto? A lei é clara em relação a “designação e o emblema” dos partidos políticos, diz apenas que nenhum partido pode adoptar uma sigla já existente ou que se preste a confusão com a de outro partido (artigo...). Tendo sido o partido extinto deixou de existir, logo nada impede que exista um outro com uma mesma “designação e emblema”. E tanto é assim que o próprio Tribunal Constitucional aceitou como concorrente às eleições de Setembro de 2008, uma coligação que adoptou o mesmo nome, e os mesmos símbolos que outra que já havia existido nas eleições legislativas de 1992. Como aceitou a inscrição de partidos políticos que adoptaram designações pré-existentes na história política do país.

Terceira constatação, no seu “despacho”, o presidente do Tribunal Constitucional lembra que “por Acórdão já transcrito em julgado, proferido recentemente (15 de Janeiro de 2009) o Tribunal Constitucional “considera extinta o partido político Frente para a Democracia, FpD por decisão voluntária dos seus filiados, com efeitos a partir de 5 de Outubro de 2008” e, consequentemente, “cancelou o seu registo”. Tendo, na mesma altura, considerado de “inútil” (e persecutório) o pedido do Procurador-Geral da República, ao requerer a extinção de um partido que já se tinha auto-dissolvido. Então, o Tribunal Constitucional não pode agora aceitar como boa a Convenção de Extinção da FpD apenas para efeitos da sua extinção e não aceitar as demais deliberações tomadas ai que vão precisamente no sentido da transmissão de todo o património material e simbólico da ex-FpD a um novo partido a fundar, cumprindo com o que está disposto, em particular, na Constituição e na Lei dos Partidos Políticos.

Enfim, entendida tal como está expressa a decisão do presidente do Tribunal Constitucional equivale a dizer que nunca mais poderá haver um partido designado Frente para a Democracia, nem nenhum outro que use a sigla FpD, a mulemba como símbolo, que defenda o ideário da democracia participativa e do Estado Social de Direito e que tenha como núcleo directivo Filomeno Vieira Lopes, Justino Pinto de Andrade, Palmira Africano de Carvalho, Luís de Nascimento e outros cidadãos que passam, a partir de agora, a estar fichados por aquele tribunal. Uma tal atitude corresponde a uma sentença de exílio interno, de confinamento de um grupo, portador de um ideário incómodo, através de uma designação e sigla que são contrárias a um índex, não literal mas ideológico, do regime. Esta “sentença” de confinamento, no interior da própria sociedade, corresponde a uma capitis diminutio para todos esses cidadãos e também para todos aqueles que querem ver a FpD, como partido nacional, a participar da vida política do país. 


* Nelson Pestana  (Bonavena)
Fonte: FpD