Brasil - A “noite colonial” estava no auge quando Margarida Paredes teve a “insolência” de realizar, nas arcadas do actual Banco Nacional de Angola (BNA), em Luanda, uma “exposição de rua” que lhe valeu uma detenção por parte da sinistra Polícia Internacional e Defesa do Estado (PIDE) por ter deduzido que tal amostra constituia uma afronta ao então regime de Lisboa.


*Jorge Eurico
Fonte: F&N

Naquela altura, Margarida Paredes vivia a «primavera» da sua vida (entenda-se juventude). Foi naquele mesmo período que tomou consciência das injustiças praticadas pelo regime colonial contra os angolanos, o que a levou a aderir ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) como guerrilheira. Contava, então, com 19 anos.


Ela e outras angolanas deram o «corpo ao manifesto» em prol da causa do MPLA de forma abnegada e denodada. Consentiu, a par das suas camaradas de armas, inúmeros sacrifícios para que os propósitos do MPLA vingassem. Até à altura em que se deu o «divórcio político-ideológico». Corria então o ano de 1977. Foi testemunha ocular da tragédia do «27 de Maio». Viu muitas companheiras serem seviciadas e outras levadas ao «paredon».

Depois da independência muitas guerrilheiras do MPLA não foram tidas nem achadas no que tange a um reconhecimento político justo, merecido e apropriado. Todavia, é bom que se diga, tal injustiça não se restringe ao partido no Poder, mas às demais forças políticas que emprestaram o seu concurso à Luta de Libertação Nacional de Angola.


Este é, de resto, o mote de um estudo da ex-guerrilheira e actual Cientista Social Margarida Paredes transformado num livro, que se afigura de transcendental importância para o conhecimento de uma versão da recente História política de Angola no feminino. Intitulado «Combater Duas Vezes: Mulheres Na Armada em Angola», o livro de Margarida Paredes confunde-se com sua trajetória de vida. As páginas do referido livro são, na verdade, memórias de uma guerrilheira que se dedica ao estudo da vida de outras guerrilheiras no pós-independência; são “páginas da vida” da vida de uma guerrilheira sobre as outras

Figuras&Negócios – O seu livro “Combater Duas Vezes, as Mulheres na Luta Armada em Angola”, resultado da sua tese de Doutoramento em Antropologia, versa sobre o papel das mulheres nas Lutas de Libertação e na Guerra Civil. Qual foi, de facto, o grau de engajamento da mulher angolana para que se conseguisse ganhar uma bandeira, um hino e um território no dia 11 de Novembro de 1975?
Margarida Paredes - As mulheres angolanas estiveram em todas as frentes, na luta política e na luta armada. Na luta armada foram muito sacrificadas e correram muitos riscos como provedoras da guerrilha, transportavam armas, plantavam lavras, cuidavam dos guerrilheiros, a logística estava a cargo destas mulheres, a maior parte delas camponesas que depois da independência não foram reconhecidas como guerrilheiras porque não tinham arma e por isso ficaram abandonadas à sua sorte. As mulheres de origem urbana mais escolarizadas também participaram na Luta de Libertação sobretudo na mobilização para a guerrilha, na Educação, na Saúde e algumas como guerrilheiras, no meu livro apresento o testemunho de muitas ex-combatentes que lutaram de armas na mão. Sem a participação das mulheres a Luta de Libertação anticolonial não teria triunfado e Angola não seria independente.


F&N - A Igualdade de género e a emancipação feminina em Angola reflete o que foi a participação da mulher na Luta de Libertação?
M. P. – É impossível entender o lugar que as mulheres angolanas ocupam na sociedade hoje em dia, sem entender o que fizeram na Luta de Libertação. A luta pela emancipação feminina em Angola começou quando as mulheres angolanas vestiram um camuflado, pegaram em armas e exigiram participar na Luta de Libertação como guerrilheiras junto com os homens. Esse gesto simbólico e fundador da luta pela igualdade entre homens e mulheres no MPLA começou com o treino militar de Deolinda Rodrigues e das outras guerrilheiras da coluna “Camy” em Dolisie, no Congo Brazzaville, se não estou em erro em 1966. Considero Deolinda (Rodrigues) uma feminista “avant la lettre”, uma mulher intelectual e emancipada que refletiu sobre um “Feminismo Negro” antes de este ter sido formulado ou teorizado no continente. A morte de Deolinda (Rodrigues) foi uma perda enorme para a OMA que teria sido muito mais combativa dos Direitos das Mulheres do que tem sido. Fomos testemunhas há dias na Assembleia Constituinte, das deputadas do MPLA terem votado a criminalização da Interrupção Voluntária da Gravidez sem se levantar nenhuma voz discordante na bancada. A OMA com esta posição não percebeu que a Interrupção Voluntária da Gravidez não é uma questão moral ou religiosa, é uma questão de Saúde Pública e que a criminalização do aborto condena as mulheres mais pobres a correr risco de vida com abortos clandestinos e a serem julgadas e presas por isso. As deputadas da OMA que votaram pela criminalização do aborto, votaram contra as mulheres. Veja bem, em Moçambique o aborto foi despenalizado e legalizado, Angola com esta posição junta-se às vozes mais conservadoras e retrógradas do Continente.

 

F&N - Quais são as dificuldades e frustrações das ex-guerrilheiras, hoje, na situação pós-colonial em relação à falta de reconhecimento pelos seus feitos no passado?
M.P. - Como se sabe nenhuma nação no mundo reconhece às mulheres os mesmos direitos que aos homens, mesmo que a Constituição dos seus países garanta que são todos iguais, em Angola não tem sido diferente, os homens foram reconhecidos como os heróis fundadores da nação e as mulheres ainda andam a lutar para verem a sua participação na Luta de Libertação e na construção da nação reconhecida. Há uma grande desigualdade entre homens e mulheres na aplicação da “Lei do Antigo Combatente de Guerra” e no Direito à Proteção Social das ex-combatentes. As mulheres da elite do MPLA têm conseguido reivindicar esse reconhecimento, algumas foram patenteadas como general, coronel, brigadeiro, major, mas as mulheres das margens sociais dificilmente veem os seus processos despachados ao que não é alheio à liderança masculina do Ministério dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria e do Ministério da Defesa. Mas as principais vítimas desta situação têm sido as guerrilheiras da UNITA que foram afastadas das negociações do Processo de Paz e dos benefícios da desmobilização e da desmilitarização dos exércitos e vivem em situação de grande precariedade sem Direito à Proteção Social. As mulheres da UNITA são as grandes vítimas da guerra, os homens da UNITA de uma maneira ou outra viram os seus interesses acautelados. Tenho vários depoimentos de ex-combatentes da UNITA no meu livro que são testemunho do quanto estas mulheres têm sido sacrificadas e da superação pessoal e social que são capazes.


F&N - A direcção da UNITA, neste aspecto, deixou as suas guerrilheiras entregues à sua própria sorte, enquanto o estado vai dando, não a devida, mas, alguma atenção?
M. P. – As mulheres da UNITA ficaram entregues à própria sorte porque ficaram fora do processo de paz, como já referi. O processo de desmobilização e desmilitarização dos exércitos foi da responsabilidade do Estado angolano sob supervisão da ONU e um dos argumentos adotado para excluir as mulheres da UNITA foi não lhes reconhecer o estatuto de combatente e assim relega-las para o lugar de esposas ou viúvas de combatentes, o que as afastou dos benefícios outorgados aos combatentes. No regresso às cidades muitas nem conseguiram ter os seus diplomas de professoras ou enfermeiras, reconhecidos e há mulheres que ainda não têm os filhos nas escolas porque não têm Bilhete de Identidade.


F&N – E as guerrilheiras da FNLA?
M.P. – Pelo menos uma das mulheres da FNLA que entrevistei, Ana Maria Conceição Fernandes, também tinha submetido o seu processo de ex-combatente ao Ministério dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria e esperava há vários anos que fosse despachado. A pesquisa que fiz para o meu doutoramento é de 2011, espero que nestes últimos anos a situação se tenha alterado.


F&N - Qual foi o papel das mulheres ligadas ao MPLA no processo conhecido como «27 de Maio de 1977»?
M. P. - Apesar da operação de esquecimento e invisibilidade que existe sobre o papel das mulheres no 27 de Maio de 1977, elas tiveram um papel de liderança na revolta. É sobejamente conhecido o papel da dirigente política, Sita Valles, o próprio Bureau Político do MPLA considerava-a e cito, “a ponta de lança dos novos fraccionistas, na sua estratégia de controlo de todo o movimento”. Na liderança da revolta militar encontramos o Destacamento Feminino das FAPLA comandado por Elvira Maria da Conceição, Virinha e Fernanda Digrinha Delfino (Nandi), Destacamento que se encontrava integrado na 9.ª Brigada Motorizada. Foram estas oficiais das FAPLA que comandaram os tanques que atacaram a prisão de S. Paulo e a Rádio Nacional na madrugada do dia 27. Nandi estava grávida de 8 meses e isso não a impediu de vestir o camuflado, pegar na arma e subir num tanque de guerra. Na posterior repressão à revolta do 27 de Maio comandada por Agostinho Neto, ambas foram fuziladas, Nandi foi levada pela DISA à maternidade “Lucrécia Paím” para ter o filho, abandonaram a criança na maternidade e depois fuzilaram-na. O filho não tem nome de mãe nem de pai na Certidão de Nascimento ou no Bilhete de Identidade e em criança chamavam- lhe o “Filho da Fraccionista”. A repressão pós-27 de Maio abateu-se sobre homens e mulheres e sobre as suas famílias.


F&N - Você foi testemunha ocular do processo da tragédia do 27 de Maio?
M. P. – Sim. No dia 27 de Maio estive no Quartel General e devo ter sido a última pessoa civil a ter estado com o comandante “Monstro Imortal” antes de ter sido fuzilado. Quando estive com ele já se encontrava sob vigilância, de manhã a situação no Quartel General era muito indefinida e tensa mas ele ainda estava armado. Pediu-me para informar o Comando que queria falar com Agostinho Neto. Posteriormente soube que o levaram ao presidente Neto e que depois disso foi fuzilado.


F&N - À distância dos factos e do tempo, por que razão não se discutiu, em sede própria, a mudança que se pretendia no que à mudança de direcção política do MPLA se pretendia?
M. P. - Após a independência, Angola era uma República Popular dirigida por um partido único e Marxista, o MPLA, qualquer transformação política só poderia acontecer pela força, num regime autoritário e comunista não havia espaço para oposição e muito menos para o diálogo. O MPLA tem uma cultura política de não permitir dissidências internas.

 

F&N - Daí razão do «27 de Maio»?
M. P. - Sim, havia muito descontentamento popular em 1977. Tinha-se formado uma elite dirigente no MPLA que beneficiava de muitos privilégios como as «Lojas dos Dirigentes» cheias de produtos, enquanto as «Lojas do Povo» estavam de prateleiras vazias e sujeitas aos «Cartões de Racionamento». Isso deu origem à fome e à especulação, o dinheiro não tinha valor e o abastecimento fazia-se pelo sistema de troca direta de bens e produtos. O povo começou a culpabilizar a elite dirigente, sobretudo os da burguesia mestiça e branca que tinham conseguido reconfigurar os seus lugares de poder, e o conflito político e social foi discutido na base da fratura racial.


F&N - Por que razão o partido no poder recusa-se a discutir abertamente a tragédia que foi o «27 de Maio»?
M. P. – Para ultrapassar tragédias como foi o «27 de Maio» há sociedades que escolhem o silêncio de maneira a poderem continuar a viver todos juntos. O problema é que essas memórias continuam a fazer sofrer as pessoas, para ultrapassar o trauma é preciso falar do sofrimento, é preciso que as pessoas façam o luto dos seus entes queridos e isso não é possível em Angola porque as famílias não receberam atestados de óbitos dos que foram fuzilados ou desapareceram, nem sabem onde os seus familiares foram enterrados. Por outro lado, muitos dos responsáveis desta tragédia continuam nas estruturas do Poder e o regime não permite memórias acusatórias que o ponham em questão. Devia ter sido criada uma «Comissão de Verdade e Reconciliação» que abordasse e esclarecesse todos os vazios desta tragédia. As famílias e as novas gerações merecem a verdade.


F&N. - O que teria sido de Angola se o 27 de Maio não tivesse acontecido?
M. P. - A repressão pós-27 de Maio foi um conflito dentro da mesma “família política”, o MPLA teve como alvo os jovens estudantes liceais e universitários. Era a geração mais preparada de Angola e que desapareceu nessa altura vítima da repressão. Uma das acusações que lhes faziam era que tinham o 7º ano do liceu. Ainda hoje se sente a falta dessa geração no MPLA que está anquilosada pela gerontocracia. Seriam eles que estariam à frente do país e é impossível dizer o que seria Angola sem este hiato geracional.


F&N - Na sua pesquisa quando entrevistou as vítimas do 27 de Maio qual foi o sentimento que elas carrega (va)m pelo facto de saberem que os seus algozes andam pelas ruas do país e de Luanda impunes?
M.P. - Fui surpreendida pela generosidade de algumas das minhas entrevistadas, há uns anos uma arranjou um emprego para um dos seus carcereiros e outra refere-se a um dos guardas prisionais como “o meu amigo mucubal”. Mas a maior parte está muito traumatizada com as torturas que sofreram, há quem sofra de dores de cabeça e insónias até hoje por causa do “nguelele”, um instrumento de tortura tchokwé, e há quem não consiga recordar o que passou sem chorar copiosamente, outras só conseguem falar com a voz entrecortada pelo sofrimento e muitas disseram-me que era a primeira vez que se abriam sobre as torturas que sofreram na prisão. Veja bem, eu entrevistei mulheres que sobreviveram para narrar as suas histórias, mas muitas foram mortas.


F&N - Você aderiu ao MPLA em 1973, aos 19 anos, participou na guerra de Libertação Nacional e foi testemunha dos acontecimentos de «27 de Maio». Experienciou de forma directa ou indirecta estas torturas de que falam as entrevistas no seu livro?
M.P. – Jorge Eurico, nunca estive numa prisão, não fui testemunha nem presenciei nada diretamente. No meu livro transcrevo os depoimentos que me foram dados pelas mulheres que sofreram essas torturas. Mas é possível cruzar fontes para confirmar a veracidade das declarações, curiosamente há um oficial das FAPLA que já faleceu mas que é celebrado publicamente como um herói do MPLA, creio que há uma rua de Luanda com o seu nome, que duas entrevistadas que não se conhecem, o acusam de estupro e assassínio, refiro-me ao comandante Evady.


F&N - Então os acontecimentos do «27 de Maio», enquanto militante e ex-guerrilheira das FAPLA, não a afectaram directa nem indirectamente?
M. P. - O «27 de Maio» afetou a todos e além disso acabou com todos os nossos sonhos e esperanças em relação ao processo de construção da nação. No meu caso pessoal eu estava para casar com o comandante

“Dangereux” que foi morto pelos nitistas.

F&N - Como é que surgiu a ideia de escolher o tema para o seu livro?
M. P. - Como digo no meu livro, a ideia não foi minha. Foi de uma amiga ex-FAPLA, hoje Embaixadora na Áustria, Dra. Maria de Jesus Ferreira que me telefonou de Luanda e me desafiou para eu ir a Angola estudar as ex-combatentes, desafio que aceitei uns anos depois. Digamos que fiz a pesquisa na dupla condição de cientista social e de ex-guerrilheira das FAPLA.

 

F&N - Como é que as mulheres angolanas lidam com a memória da guerra?
M.P. - Curiosamente tanto as mulheres da UNITA como as do MPLA e da FNLA lutaram por causas nacionalistas em que acreditavam e muitas delas narram a sua participação nas guerras através de um viés heroico e isso influencia positivamente a memória que têm da sua participação nas guerras. As mulheres que lutaram demonstram, de uma maneira geral, grande confiança e autoestima, o que não quer dizer que algumas não estejam traumatizadas. Mas o que é preciso pensar é que nas guerras as mulheres não são apenas vítimas, têm agência, são protagonistas e também podem ser perpetradoras da violência.

 

F&N - De que forma é que uma mulher guerrilheira de arma na mão pode subverter códigos sócio-culturais?
M.P - Uma mulher armada subverte sempre códigos culturais e sociais dominantes porque as armas e o camuflado são vistos como marcadores sociais que empoderam a mulher. Uma mulher fardada e armada, por exemplo, as mulheres-soldado nas FAA ou as mulheres-polícias da PNA, têm muito orgulho do que fazem e da sua profissão.

 

F&N - Qual foi a conclusão do seu trabalho com as ex-combatentes?
M.P – Uma das conclusões mais gratificantes é ter chegado à conclusão que existe uma comunidade de mulheres ex-combatentes angolanas que se reconhece como parte duma comunidade imaginada de Mulheres que Combateram, independentemente do lado da guerra em que lutaram e ultrapassando a categoria de “inimigas”. Isso abre perspetivas muito interessantes para a construção de uma estratégia comum para as diferentes Organizações de Mulheres lutarem pela emancipação e a Igualdade de Direitos das Mulheres angolanas e assim promoverem uma maior igualdade de género no país.

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