Lisboa - Em Bissau, conheci Luís Cabral apenas de vista. Do que se falou dele depois do golpe de Estado de 14 de Novembro, confesso que a princípio, as imagens das ossadas das valas comuns apresentadas ao mundo por Nino Vieira, convenceram-me de que estávamos perante um ditador. Mais ainda, os discursos do Conselho da Revolução, argumentados com uma total harmonia de posicionamentos de testemunhas que sempre foram fieis aos princípios do PAIGC e à Direcção Superior do Partido não podiam deixar ninguém indiferente, ou a favor de Luís Cabral, que tinha sido escolhido para ser o primeiro Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau.

Vivia-se a euforia de uma revolução, de um grupo auto-denominado "Movimento Reajustador", que tinha no seu seio, maioritariamente, militares, figuras destacadas da luta de libertação nacional e que por essa altura ainda tinham credibilidade no seio do povo guineense, credibilidade essa aparentemente justificada pelo seguidismo de um monopartidarismo que impedia, de certa forma, a livre reflexão, análise e avaliação da real situação política e social da Guiné-Bissau. 

Um grupo que sempre quis esconder as verdadeiras motivações que incitaram a uma revolta calculista, objectivamente assente em contornos xenófobos e de ambição desmedida pelo poder.
Das acusações proferidas e que justificavam o derrube de Luís Cabral a 14 de Novembro de 1980, rapidamente se começou a constatar que as mesmas tinham sido verdades de uma grande mentira, que permitiu a ascensão de João Bernardo "Nino" Vieira, ao poder.

Os efeitos dessa grande mentira fomentaram divisões na estrutura identitária guineense, contribuindo para a segregação dos designados "burmedjus".

Porém, o tempo, juiz de todos os juízes, acabou por demonstrar que o Golpe de Estado de 14 de Novembro afinal, tinha no denominado "Movimento Reajustador", os reais executantes das matanças de cidadãos guineenses.

O tempo, juiz de todos os juízes, acabou por demonstrar que da obra conseguida durante a Presidência de Luís Cabral e que permitia empregar mão de obra nacional, gerar riqueza e bem-estar aos trabalhadores guineenses, o "Movimento Reajustador" fez tábua rasa, destruindo tudo.

Mas o tempo ainda demonstrou mais. Demonstrou que João Bernardo " Nino" Vieira, fez questão de eliminar todos os que lhe podiam fazer frente, acabando por tornar-se no mais rico e poderoso guineense. O tempo, estava a mostrar que afinal, os problemas da Guiné, apontados pelo "Movimento Reajustador" contra Luís Cabral, tinham outra responsabilização, Nino Vieira!

Em  Portugal, cruzei-me com Luís Cabral pela primeira vez no início de 1990. Trabalhava eu em Alcântara e num dia que saí para almoçar num restaurante, vi-o em frente à Embaixada de São Tomé e Príncipe. Cumprimentei-o, houve um aperto de mãos e um sorriso de muita simpatia por parte dele.
Nunca mais o vi, nem me interessei mais por ele, até porque nessa altura e até 2003, nada me tinha conseguido motivar a comprometer-me com a Guiné-Bissau, tal como passei a estar.

Quando comecei a escrever, voltei a recuperar as minhas memórias e a figura de Luís Cabral passou a fazer parte das minhas reflexões, sem contudo constituir prioridade, pois a sua postura depois de se ter exilado em Portugal, tinha sido impecável, pois jamais tentou prejudicar o país, procurando, pelo contrário, reaproximar-se dos guineenses e projectando positivamente a imagem do país.

Em 2006, senti-me tentado a contactá-lo para um trabalho que tinha e ainda tenho em mente, denominado "Em Busca da Verdade". Um trabalho que visa incentivar os combatentes da liberdade da Pátria quer guineenses, quer cabo-verdianos, a fazerem depoimentos sobre diversos períodos e situações da luta de libertação, como também, aos que participando na governação da Guiné-Bissau, se decidissem por partilhar, como registo histórico, as suas experiências e conhecimentos.
Infelizmente não fui bem sucedido a nível dos contactos que fiz e, lamentavelmente, algumas pessoas faleceram desde então, empobrecendo mais ainda o campo de recolha.

Quem aceitou falar abertamente sobre qualquer assunto que eu quisesse abordar, foi Luís Cabral.
Para conseguir o seu contacto, falei com a Iva Cabral, sua sobrinha que me foi dizendo, Didinho, olha a saúde do meu tio...

Primeiramente resolvi enviar um mail, que partilho neste trabalho, ao Luís Cabral, mas como estava a demorar a resposta por e-mail, resolvi telefonar.

Quando consegui falar com ele, a receptividade foi total e pressenti estar perante um Homem Simpático, que se sentia injustiçado e abandonado. Disse-me logo, podes vir todos os dias, menos dia tal e a hora que quiseres, que a porta estará sempre aberta!
Marcamos o dia e fui.

Não podia ter sido melhor recebido!


O Luís e a Josefina foram tão simpáticos e carinhosos comigo, que jamais me esquecerei das suas posturas.
Perante um ambiente tão acolhedor e, sabendo ao que ia, lá comecei por apresentar as razões de querer ouvir Luís Cabral. Conversamos muito e notei-o bastante entusiasmado. Parecia que há muito queria falar a sério com alguém sobre a Guiné-Bissau e, finalmente, estava perante alguém disposto a ouvi-lo, mas também, a colocar-lhe questões complicadas sobre o seu passado de Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau.


Uma das mais importantes questões que tinha para lhe colocar era relativamente às valas comuns com as ossadas de antigos comandos africanos que serviram o exército português, dadas a conhecer por Nino Vieira ao mundo, como sendo um acto ordenado por ele, Luís Cabral.


Ficou sério, muito sério. Olhando para mim, olhos nos olhos, encolheu os ombros dizendo-me o seguinte: Já naquela altura, quem mandava eram os militares... O Nino Vieira não era militar?! Como é que podia dizer que eu é que tinha ordenado os fuzilamentos?!


Quer dizer-me que a sua autoridade era limitada e condicionada pelos militares, perguntei, acrescentado de seguida, sem esperar pela resposta, que assim sendo, foi conivente com eles, pois não os denunciou, nem renunciou ao cargo de Presidente do Conselho de Estado da Guiné-Bissau.


Ficou em silêncio por instantes, para de seguida dizer que nada podia fazer...
Notei então muita tristeza e mágoa na face de um homem que parecia ter feito uma viagem ao passado das suas memórias, um homem que também mostrava sinais de arrependimento por "ter deixado acontecer" coisas que mereciam reprovação e condenação da sua parte.


Não pretendo ilibar Luís Cabral das suas responsabilidades, a minha iniciativa de ouvi-lo não se enquadrou nesse sentido, mas no de conhecer pessoalmente a sua versão dos factos e partilhá-los para registo histórico e fonte para outras buscas e avaliações do percurso da sua Presidência até 14 de Novembro de 1980. Continuamos a falar sobre outros assuntos tendo marcado um novo encontro. Antes de me ir embora levantou-se e foi buscar 1 exemplar do seu livro "Crónica da Libertação", que me ofereceu.
Quando voltei a encontrar-me com ele, sempre em sua casa, já tinha lido uma boa parte do seu livro e, mais questões tinha para lhe colocar. Ao receber-me disse logo: Fico contente por ver um guineense comprometido com a Guiné. Fazes-me lembrar o Amilcar...


Voltamos a falar, mas sentia que se emocionava demasiado e o estado de saúde dele não aconselhava toda essa entrega, toda essa emoção forte que o fazia reviver a sua Guiné. Porém, voltei a ver nas suas expressões o sentimento de tristeza, de abandonado pelos camaradas de luta e do Partido e de alguém injustiçado por uma campanha destrutiva que nem o tempo tinha conseguido corrigir.


Fui fazendo as minhas recolhas ouvindo as respostas às questões que lhe colocava.
Ao despedir-me dele e da Josefina, disse-me: volta depressa para te mostrar alguns filmes sobre a luta de libertação nacional.

Deixei passar uma boa temporada, até que fiquei a saber que ele tinha sido internado em Abril de 2007. Telefonei e falei com a Josefina que me deu a conhecer o seu estado de saúde. Prometi ir visitá-lo assim que tivesse alta.

Tempos depois, telefonei, já depois dele estar em casa e falei com ele, convidando-me a ir lá para conversarmos. Disse-lhe que sim, que ia, mas acabei por não ir.

Tinha lido e relido o livro que me tinha oferecido, que hoje mais parece um caderno de rascunhos, tantas as referências e apontamentos que fui registando nas páginas que mais me despertaram a atenção e aproveitei para lhe sugerir uma nova tiragem do livro e que se fosse necessário, angariava-se fundos para esse fim, ao que me respondeu que já tinha pensado numa nova edição e que provavelmente iria pedir apoio de instituições como a UNESCO para o patrocínio da segunda edição do "Crónica de Libertação".

Numa das nossas conversas disse-me que ainda tinha matéria para escrever mais um livro e eu aproveitei para lhe encorajar a fazê-lo, disponibilizando-me para ajudá-lo no que fosse preciso, dado o seu estado de saúde. Disse-lhe mesmo assim: Senhor Luís Cabral, não leve nada consigo na hora de partir...se precisar de escrever e não for capaz, chame-me a qualquer hora que venho logo ter consigo!

Acabei por não mais ir ter com Luís Cabral, porque queria poupá-lo, sabendo que o seu estado de saúde estava a degradar-se e não queria que as emoções das nossas conversas alguma vez traíssem o bater do seu coração. Com muita pena, sem dizer-lhe isso, fui adiando e só hoje, 31 de Maio, 1 dia após a sua morte voltei a entrar em casa de Luís e Josefina em Miraflores.

Vi por lá muita gente, entre guineenses, cabo-verdianos, são-tomenses, portugueses...O Luís era um PATRIOTA e um Homem Bom!

Descansa em Paz, tu que soubeste ouvir quase tudo e quase todos contra ti, da forma mais natural possível, ou seja, fazendo Fé que Deus um dia iria clarificar as injustiças da verdade da grande mentira que te derrubou do poder e traçou o rumo da desgraça para a Guiné-Bissau.

Não foste nem te tornarás Santo, mas em vida, não foste mau como os que o tempo acabou por confirmar como tendo sido os piores filhos da Guiné-Bissau!


Para onde fores, continua a ser PATRIOTA, continua a pedir o melhor para a tua Guiné-Bissau e para os teus irmãos guineenses!
Até sempre!
 
De: Fernando Casimiro
Enviada: terça-feira, 15 de Agosto de 2006 11:18
Para: Luís Cabral
Cc: Cabraliva
Assunto: Estabelecer contacto
 
Exmo. Sr. Luís Cabral,
 
Venho através desta mensagem, propor-lhe um encontro para falarmos sobre a Guiné-Bissau: Passado e presente.
 
Também quero falar consigo sobre Amílcar Cabral e o PAIGC
 
Chamo-me Fernando Casimiro (Didinho) e consegui o seu contacto através da sua sobrinha Iva que está em Cabo Verde e que me deu inclusive o seu contacto telefónico. Não consegui falar consigo por telefone porque a primeira vez que liguei o Senhor não estava em casa, tendo falado com uma sobrinha sua a quem deixei recado e o meu número de contacto.
 
No dia seguinte voltei a ligar, mas creio que não estava ninguém em casa.
Vou continuar a tentar falar consigo por telefone.
 
O que me leva a contactá-lo é que escrevo artigos de opinião sobre a Guiné-Bissau e tenho 2 sites na Internet sobre a Guiné-Bissau que
aproveito para convidar o Senhor a visitar.
Os endereços são estes:
 
http://didinho.no.sapo.pt
http://guinebissau.no.sapo.pt
 
O senhor sabe que o golpe de Estado que o derrubou da Presidência do Conselho de Estado da Guiné-Bissau, deixou marcas de suspeição
relativamente a muitas questões de então, entre os mais referenciados destaca-se a questão dos fuzilamentos de antigos comandos africanos e
vários cidadãos acusados sem julgamento, de terem pertencido à PIDE.
 
Apesar de ter escrito alguns apontamentos sobre o que se disse em relação à sua responsabilidade nesta matéria, penso que o Senhor tem
direito a ser ouvido. Ou melhor, gostaria de ouvir a sua versão sobre esta matéria. Pois o Senhor tem o direito de se defender e de
esclarecer o que realmente aconteceu na Guiné-Bissau durante a sua presidência.
 
Como tenho referenciado: É urgente e imprescindível a participação dos que directa ou indirectamente se envolveram no processo de libertação, no sentido da correcção e registo da História recente, não só como forma de honrar a memória dos que tombaram pelas independências da Guiné e de Cabo Verde, mas também, para a reposição de verdades até aqui ocultas e falseadas!
 
O Senhor é uma peça-chave para a busca e reposição da verdade sobre muitos assuntos da luta de libertação nacional e do pós-independência
da Guiné-Bissau. O Senhor tem direito ao benefício da dúvida sobre as acusações contra si proferidas por quem o derrubou.
 
É neste sentido que pretendo ouvir o que tem para dizer, pois é preciso fazermos o registo e a correcção da nossa História. Obviamente que será escusado dizer que o registo das suas memórias será um excelente CONTRIBUTO para podermos compreender muitos problemas com que hoje a
Guiné-Bissau se vê confrontada.
 
Fico por aqui aguardando a sua resposta.
 
Cumprimentos
 
Fernando Casimiro (Didinho)

Fonte: www.Didinho.org