Lisboa - Relatório do chefe da Missão Civil de Cuba em Angola a Fidel Castro revela que dez meses antes dos acontecimentos fatídicos que marcaram para sempre a história de Angola as ações de Nito Alves já eram vigiadas.

*Luis Leiria
Fonte: Esquerda

Apenas sete meses após a independência, Agostinho Neto tinha posto Nito Alves sob vigilância. O presidente de Angola considerava o seu próprio ministro da Administração Interna “um problema”, por tender a “criar uma fração dentro do MPLA”. Numa conversa com o chefe da Missão Civil em Cuba, Jorge Risquet, Neto afirma não saber se “Nito é uma pessoa recuperável”, e acusa-o de se ter rodeado de “pessoas que se dizem membros do Partido Comunista de Portugal, mas que na verdade são pessoas que nunca fizeram nada pela revolução no seu país.”

A conversa é relatada num memorando enviado por Risquet a Fidel Castro em 13 de julho de 1976 (link is external). Este e outros documentos do arquivo de Cuba, fechado à investigação, foram trazidos a público pelo professor e investigador Pietro Gleijeses, que conseguiu convencer as autoridades cubanas a permitir a publicação dos documentos por ele citados no livro “Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991”. São eles que compõem um arquivo digital disponível desde outubro de 2013 no Wilson Center (link is external).


Memorando relata conversas entre Jorge Risquet e Agostinho Neto. Note-se que no topo do documento está escrito: "Segredo de Estado".
Apesar de serem públicos há três anos e meio, estes documentos, importantes para a compreensão da história recente de Angola e do que realmente ocorreu no 27 de Maio de 1977, passaram desapercebidos ao público português. (Veja também neste dossier do Esquerda.net “Memorando de Raúl a Fidel Castro relata desconfianças sobre papel da URSS”).

“Não posso dizer agora se Nito é uma pessoa recuperável”


Na conversa com o presidente de Angola, é o chefe da Missão Civil em Cuba que aborda o assunto, ao dar conta das sucessivas aproximações de Nito Alves a Risquet, propondo-lhe um intercâmbio de experiências e opiniões, “como internacionalistas, ultrapassando o estreito chauvinismo”. O cubano pondera que não podia continuar a esquivar-se, já que se tratava de um membro do Bureau Político e ministro.


Neto explica então que Nito Alves é para ele um problema, porque “fala muito e a sua atividade tende a criar uma fração dentro do MPLA e sabemos que há gente dentro do Movimento que o apoia.” E acrescenta: “Não posso dizer agora se Nito é uma pessoa recuperável. Estamos a vigiar as coisas de Nito.” Para o presidente angolano, tratava-se de alguém que fez algumas leituras mas não as digeriu bem.

 

“Tenta copiar mecanicamente algumas situações, fazendo comparações se este é igual a Kamenev, este a Zinoviev e este a Trotsky”, descreve, acusando o seu ministro da Administração Interna de achar que tem sempre razão. “Ainda agora critiquei-o por tomar posições que não são as do MPLA e não reagiu muito bem, por isso temos de estudá-lo.”


“Sabemos que Nito está rodeado de um grupo de pessoas que se dizem membros do Partido Comunista de Portugal, mas que na verdade são pessoas que nunca fizeram nada pela revolução no seu país”, prossegue Agostinho Neto, dando a entender que foi uma dessas pessoas que escreveu parte do último discurso de Nito Alves.


“Só confia no poder popular dos bairros de Luanda”



Outra acusação do presidente de Angola a Nito Alves que consta no relatório é a de desconhecer o papel das FAPLA, de não dar qualquer importância aos problemas económicos e de “só confiar no poder popular dos bairros de Luanda, como se Luanda fosse toda a Angola.”


Risquet pergunta-lhe então sobre as relações entre Nito Alves e Monstro Imortal (João Jacob Caetano), o chefe de Estado-Maior das FAPLA, ao que Agostinho Neto responde que “havia relações entre ambos, pois vinham da Primeira Região, mas que Monstro tinha um caráter muito diferente de Nito.”


O chefe da Missão Civil de Cuba em Angola propõe então ao presidente angolano aproveitar a oportunidade que “Nito me oferece insistentemente” para “explicar-lhe as nossas experiências e criticar fraternal e cuidadosamente os pontos de vista falsos e nocivos que podem encontrar-se nos seus discursos.” Isto, se Neto autorizasse e mantendo-o informado. “Se Nito for uma pessoa recuperável que procura honestamente as nossas experiências e opiniões, isto era útil”, ponderou Risquet. “Se Nito o que procura é congraçar-se connosco para obter apoio às suas posições falsas, então também seria útil, pois se daria conta de que estas não terão o nosso apoio e isto o faria necessariamente refletir.”

Agostinho Neto aceitou a proposta.

Infelizmente, não sabemos se a conversa entre Risquet e Nito Alves realmente aconteceu. Mas sabemos que três meses depois, em outubro (de 23 a 29), o Comité Central do MPLA decidiu extinguir o Ministério da Administração Interna, afastando Nito Alves do governo, e acusou Nito e José Van Dunem de “fraccionismo”. Formou-se então uma comissão de inquérito, presidida por José Eduardo dos Santos, para investigar a existência de fraccionismo no MPLA.


Menos de um ano após esta conversa, Nito Alves, José Van Dunem e Monstro Imortal já tinham sido fuzilados.

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