Na verdade, tudo isso mostra um fio condutor: fazer de JES um «monarca», e dos seus filhos e filhas, «príncipes e princesas».

Um congresso de marcas partilha, na comunicação social pública, o mesmo espaço (ou até mais) com assuntos mais relevantes para o país. Um artigo de opinião de um filho do Presidente merece chamada de capa no Jornal de Angola com direito à foto – um privilégio só devido a esses raros autores. Tudo isso não acontece por acaso. Está claro que o propósito não é difundir as suas realizações. O que importa é «popularizar» essas figuras,condicionando as mentes dos angolanos para o que der e vier... No fundo, estamos diante de uma receita quase pavloviana.

Assim, temos que o cidadão compra o Jornal de Angola e só por sorte não dá de caras com JES. O cidadão senta-se no sofá para ver o noticiário da TPA e leva com uma carrada de informações pró-eduardistas no lombo; sintoniza os noticiários da RNA, idem aspas. Se o cidadão quer ouvir o pensamento de um ministro, o que vai ter é uma enxurrada de «Eduardismo». Quer ouvir o que um membro do BP de um partido com as responsabilidades do MPLA pensa sobre isso ou sobre aquilo e o que lhe entra ouvidos adentro é um banho de bajulação a JES. O cidadão acompanha as reuniões do CC do MPLA ou os congressos desse partido e a receita é a mesma: a clarividência e as sábias orientações do «Camarada Presidente».

Por tudo isso é que se diz que Angola está a passar por um estágio em que a generalidade dos seus quadros aparenta ter desistido de exercitar os neurónios, transferindo tal responsabilidade ao «Chefe supremo», apesar de isso ser, convenhamos, uma empreitada biologicamente impossível de concretizar.

O país tem de ser capaz de ter pessoas que valham por elas próprias e não por serem brilhantes bajuladores do Presidente José Eduardo dos Santos. O cidadão tem de ter o direito de saber que iniciativa tal é da autoria de fulano y. O cidadão tem de ter o direito de saber o  que pensam beltrano e cicrano.

Não é normal que ministros, alguns dos quais formados nas melhores universidades ocidentais, sejam incapazes de assumir a autoria de uma idéia, de um pensamento ou de uma decisão.

É anormal que economistas formados nas melhores universidades deste mundo sejam de todo incapazes de elaborar um programa econômico ou quando o fazem o atribuam ao Presidente José Eduardo dos Santos, que até nem  é versado em Economia ou Finanças. Aliás, está a fazer-se de JES um extraordinário gênio em tudo: agricultura, pescas, reconstrução nacional, águas. Enfim, em tudo o que dá certo neste país.

Todas essas manifestações de adulação à figura de JES, que não são espontâneas, pelo contrário, milimetricamente calculadas, comprometerão seriamente o futuro do país.

Se parte hoje da premissa de que tudo o que é feito nesta Angola (e esse tudo só engloba os aspectos positivos,já que JES sempre lavou as mãos sobre aspectos negativos como a corrupção,por exemplo) se deve à sabedoria e clarividência do Presidente, então está a admitir-se antecipadamente que o país soçobrará imediatamente à sua saída de cena.

Está a admitir-se que esta Angola só se pode manter de pé com JES ao leme. Donde, a sugestão: ou o país se agarra a JES até ao limite das suas energias físicas e mentais ou, então, os angolanos vão ter de engolir, sem recalcitrar, o sucessor que ele impuser.

E é aqui que entra a tal hipótese da monarquia de facto e não de jURE.

Ainda a anatomia do «Eduardismo»

Quem porventura tenha pensado que a abordagem acerca do «Eduardismo»,  exercitada na última edição do Semanário Angolense, era «sacrílega» e, por isso mesmo, desencadearia um maremoto, a esta altura já pode ir descalçando as chuteiras. O tecto não desabou sobre as nossas cabeças, o que só prova que a sociedade vai tendo maturidade para abordar, com a necessária descompressão e serenidade, questões consideradas «quentes». 

E ainda bem que assim é, pois esse exercício do SA – que sob ângulo algum pode ser tomado como uma contestação à figura de José Eduardo dos Santos, enquanto Presidente da República – deve ser entendido apenas como um convite à reflexão colectiva para a urgente necessidade de o país libertar as suas energias adormecidas.

Todavia, como é compreensível, um tema tão sensível como esse – pouco habitual nas páginas da imprensa angolana – não podia deixar de dividir a opinião. Recenseamos assim, por um lado, que há aqueles que continuam a defender, com unhas e dentes, a tese de acordo com a qual «no velho ninguém toca», e, por outro, aqueles que concordaram em absoluto que já não se deve persistir em fazer tabu do assunto e discuti-lo, se necessário, até à exaustão.

Salta à vista, contudo, que mesmo entre os que se opuseram ao tema, será difícil encontrar muitas pessoas que concordem integralmente com o sistema tal como o vivenciamos actualmente. Excluindo os beneficiários directos, nomeadamente os familiares e as pessoas que rodeiam o Presidente da República, não é crível que o «Eduardismo», na sua configuração actual, seja a unanimidade que o MPLA costuma fingir.

Por exemplo, a forma injusta e desproporcionada como o «Eduardismo» distribui o rendimento nacional é mais um factor de desagregação do que de união da «grande família». De sorte que todos aqueles que se barricaram na ideia de que José Eduardo dos Santos  não se deve desviar um milímetro do rumo que tem vindo a seguir, de excessiva discricionariedade e presença na vida dos angolanos, estão no mínimo a ser hipócritas.

Por isso, o melhor mesmo é debater o assunto abertamente, tal como o SA vem propondo. Folgamos, assim, que nesta edição tenhamos gente que aceitou o repto, entrando no debate e terçando argumentos sobre o «Eduardismo».

Reiteramos, em resumo, que José Eduardo dos Santos tem o seu lugar e papel claramente definidos e salvaguardados na Constituição. Não precisa de ser elevado à categoria de um Deus à face da terra. Isso nem sequer é bom para ele próprio.

Aliás, na última edição, o político Filomeno Vieira Lopes recordou um episódio que, na melhor das hipóteses, deveria embaraçar sumamente o Presidente da República. Na verdade, não é normal que, tendo tanta coisa para fazer, o chefe de Estado também reserve tempo para se tornar num intermediário entre um cidadão e um banco.

Fonte: Semanario Angolense