Luanda - Na última das suas criações, no caso um artigo publicado na revista África 21 do mês de Maio, Pepetela – igual a si mesmo na excelência com que (d)escreve as nossas malambas – brinda-nos com uma crónica de cerca de 1000 palavras intitulado “A Voz Total”, no qual conta um “sonho”. Pepetela sonhara que...
 
... Era uma vez, num país rico em petróleo havia um rei usando capas de cetim, se atirando sobre enormes almofadas de penas de cisne, e príncipes endinheirados rolando em enormes limusinas e comprando inutilidades caríssimas; haréns de belas mulheres, infelizmente invisíveis. O rei tomava todas as decisões. De vez em quando reunia uma assembleia, conselho de ministros, conselho de Estado, coisas assim. Ficavam todos os participantes na expectativa, sem tomar a palavra até algum adivinhar pelo semblante do soberano o seu desejo. E o vivaço exprimia opinião. Quando acertava, o rei sorria, o suficiente para o sortudo provocar a inveja dos outros, e todos ja sabiam o que dizer. Se pelo contrário o primeiro atrevido dissesse algo fora da sintonia, o ar do soberano ficava ainda mais fechado e o atravido ruminando medos atrozes. Finalmente, o rei dava por encerrada a reunião, ditando as suas conclusões para a acta.
 
Acontecia nessas reuniões alguém arriscar o “sim” e o rei a seguir dizer “não”. Imediatamente muitas mãos se erguiam pedindo a palavra para apoiarem aliviada e cómicamente o não do soberano, e se alguns tinham dito sim anteriormente corrigiam o tiro com discursos argumentando a favor do não. Havia assim consenso e mesmo unanimidade à voz total do rei.
 
No sonho de Pepetela, os príncipes assistiam a essas reuniões bocejando de tédio, na esperança que talvez o pai depois lhes explicasse os diferentes passos dos debates inexistentes. Mas isso era segredo de Estado, ninguém conhecia as conversas privadas do potentado. Nem a imprensa, sempre paternalmente repreendida por querer descobrir mais que o devido. Um dia o rei morreu... e ninguém mais se entendeu. Todos contra todos numa balbúrdia total, cada um apoiava o príncipe que lhe apetecia, enquanto estes morriam de tédio nos seus haréns impedidos de passar férias nos lugares da moda. Pepetela acordou sem o seu sonho cumprir a praxe de “... e viveram felizes para sempre”.
 
Estava eu há dias matutando que esta estória do “Kôta Pepas” cheirava a algo que não era novo –  sem me atrever a suspeitar que tamanha sumidade tivesse feito um plágio qualquer de uma outra estória lida antes e escondida algures nas funduras da minha cachimónia – quando folheando um dos semanários do fim de semana (o Angolense, no caso) deparei-me com um interessante artigo escrito – imaginem – por um leitor, Alberto Carvalho da sua graça intitulado “Já que discutimos a Constituição, porquê não uma Monarquia?”.
 
Nesse artigo – tão ou mais magistral que o “sonho” do Pepetela –  o autor contava a neura que sentiu por um kamba que no bar defendia que a próxima Constituição devia consagrar a monarquia como sistema de Estado. Que tivesse um rei e rainha, que os filhos do casal real fossem príncipes que dessem grandes festas. O primogénito com direito a sentar-se à direita do pai, a família real tivesse no seu palácio uma corte que lhe cantasse as hossanas todos os dias, e o povo vivesse feliz por ter o rei como pai. Mais; dizia que não se assustassem pois não propunha “... nada diferente do que já temos...” numa “...mistura atrevida que lhe dava um toque especial e um pouco escandaloso...”. Conta o leitor-cronista que, de raiva – seria mesmo raiva ou...? – largou o gozão do kamba no barengue (que de certeza só tinha chupado uns dez finitos) e deu às de vila-diogo pró kubiku. Perdoe-me o amigo Alberto Carvalho, mas o meu lado mwangolé não resiste a esta... “estiga”. Assim acaba esta segunda estória, também sem o tal “...felizes para sempre”.
 
Flash: Lugééé!!! Fez-se de repente luz na minha mente. Descobri de onde tanto o Pepetela como o Alberto Carvalho tinham “plagiado” as suas crónicas. Mas como Pepetela, fiquei “... com medo de falar alto naquela penumbra do despertar: a voz total se tornou uma sinfonia totalitária de vozes”.
 
Não sei porquê, veio-me aquele pensamento segundo o qual se é com as massas que se vencem eleições, é com as elites que se governa. Contas feitas por alto, se de cem tiramos oitenta e dois, ficam dezoito. Dezoito porcento pode muito bem ser a quase totalidade dos intelectuais de Angola. Os intelectuais são famosos na História como mestres da esquindiva; eles geralmente não sancionam nem vozes totais nem monarquias absolutas, sob pena de perderem esse estatuto. Os intelectuais, mesmo contra ventos e tempestadas – mordaças e garrotes também, de vez em quando – preservam e exercitam a liberdade, em último caso, ao menos sonhar sonhos de liberdade. Último caso: será esse o nosso caso? Ou, como termina Pepetela a sua “Voz Total”, é sempre assim?

Fonte: SA