Lisboa - No dia 05 de Julho de 2017, o hotel Mercure, em Lisboa, acolheu a Conferência “Angola, Que Furturo”, uma iniciativa conjunta das associações portuguesas Frente Cívica e Transparência e Integridade e do jornal angolano Folha 8.

Fonte: Club-k.net

A conferência foi um espaço de debate que reuniu personalidades relevantes dos vários sectores da sociedade civil e política angolana e portuguesa, como Marcolino Moco, Paulo Morais, William Tonet e Sedrick de Carvalho, numa iniciativa apartidária que pretendeu examinar as oportunidades e desafios que se colocam ao desenvolvimento de Angola.


Partilhamos a comunicação feita na Conferência “Angola, Que Futuro“, 05 de Julho de 2017. Tema: "Angola: da Crise à Esperança." pelo orador  José Marcos Mavungo, Ativista Cívico dos Direitos Humanos e Membro da Sociedade Civil de Cabinda.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Queria começar por saudar a todos e agradecer o convite para participar nesta Conferência sobre o futuro de Angola. Pelo tema que me foi proposto – Angola, Que Futuro?-, pareceu-me difícil decidir se estamos a falar do Futuro de Angola ou de Angola do Futuro para, precisamente, deixarmos o debate em aberto. Em todo o caso, optei por fazer um afloramento da crise atual, para depois recensear as razões de sobra para renovar a esperança.

 

Com efeito, o angolano de hoje representa o plano de cristalização de todos os erros perpetrados no decorrer destes últimos seis séculos, desde a descoberta de Angola por Diogo Cão entre 1482 e 1496 até estes tempos que são os nossos, marcados por 42 anos de governação afro-estalinista, dos quais 27 de capitalismo selvagem2, que se consubstancia sobretudo pela acumulação primitiva do capital pelos homens do regime «en place». Esses erros circulam-lhe no pensamento como lhe circularia no sangue uma corrente congénita envenenada, herdada de antepassados levianos e desenraizados, sem sentido de Estado e de Dignidade Humana.

 

A cúpula de todos estes erros é a desmedida vontade individualista e de potência, as injunções e os interesses exóticos de terceiros poderosos, o desejo de governar sem referência a valores humanos que os atuais governantes angolanos se arrogam e segundo o qual, por assim dizer, vivem.

 

Angola entrou na senda dos erros com a colonização e a descolonização. Até então, aceitava-se a vida social fundada num humanismo Sagrado e integral, tudo era visto num clima de harmonia entre o homem e as instituições da governação, no qual o estilo de vida não só estava recheada de regras, como afigurava valores, entre os quais a fraternidade e a solidariedade. Assim como em toda a África, a existência do homem em Angola assemelhava-se a uma Grande Sombra (Mwanza, como se diz em Cabinda), onde os cidadãos tinha o poder de escolha das alternativas políticas possíveis.

 

Depois tudo mudou. A aculturação do indígena, o processo de assimilação colonial, que obrigava a que estes fossem educados debaixo dos preceitos e costumes do colono, acabou por operar a subversão dos valores humanistas africanos, e surgiu então a ideologia individualista, uma profunda subjetividade dos valores. Em seguida, vieram as corrupções e as debilidades da conjuntura geopolítica e internacional, da segunda metade do século XX, marcados pela Guerra Fria (1945 - 1991), que resultaram na vinda dos «simplificadores terríveis» dos problemas de Angola, de personalidades que, por meio da decisão cruel e dos interesses políticos sem limites, deitaram abaixo não só os valores tradicionais africanos – a fraternidade e a solidariedade – mas até aqueles codificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos Povos.

 

As atrocidades do passado colonial e da Guerra fria acabarão por alimentar a radicalização de paixões durante o processo de descolonização. Surgiram então as guerras por razões ideológicas e geoestratégicas, as paixões e os projetos partidaristas dos então movimentos angolanos de libertação. A imagem de Angola se ergueu no limiar de uma Africa em que vão entrar em choque violento as mais desmesuradas ambições das potências dirigentes da Guerra Fria, bem como os ódios mais radicais, disfarçados de nacionalismos.

 

A torre de Babel, que se ergueu aquando da acessão de Angola à independência, no rasto de violência e de sangue, de diversidade de linguagens ideológicas, não permitiu aos dirigentes dos então movimentos angolanos de libertação tornarem-se protagonistas de uma fraterna e solidária reconstrução do país. O fulgor de uma Angola, que emergiu de instintos militaristas, em que estavam desaparecendo os costumes coloniais, com os seus chicotes, arbitragens e compromissos colonistas, deu lugar a soldados afeitos aos senhores dos blocos da Guerra Fria, a serviço das ambições frenéticas e ilimitadas dos novos poderes político e militar.

 

A anarquia, a desordem, a incompreensão dos valores mais altos, características dos ultrarrevolucionários, atuavam no espírito dos então autores políticos como fortes ameaças ao seu labor e ao ambiente de que careciam para edificar uma Angola realmente independente, onde reinaria a justiça, a fraternidade e solidariedade. A argumentação da força, característica da «lógica das balas» de então, só podia ser sustida pelo espetáculo político, que acabará por criar muitos problemas em Angola, entre os quais a «Questão de Cabinda». É o chamado «desastre da descolonização portuguesa».

 

É assim que os privilégios dum território escandalosamente rico, estes privilégios do dinheiro criaram a «maldição dos recursos em Angola», a corrupção e os abusos de poder que continuam a fazer até hoje o seu trabalho: erguer obstáculos à realização plena do angolano num Estado de Direito Democrático; e manter os cabindas à sorte duma potência militar, sem qualquer estatuto ontológico-jurídico que os defenda. Todas as análises feitas atualmente sobre a situação do país concordam em afirmar que estes mais ou menos 42 anos de governação foram anos de desencanto, decénios perdidos.

 

É inegável, contudo, que Angola tem registado alguma melhoria em três níveis3: saúde (hoje a esperança de vida é de 52,3 anos, tendo registado uma subida de 12,1 anos entre 1980 e 2015), educação (hoje a escolaridade média é de 4,7 anos, tendo registado uma subida de 7,3 anos entre 1980 e 2015) e economia (hoje o PNB per capita é de 6 822 dólares, tendo registado uma subida de 59,4% entre 1980 e 2015).

 

Mas, as instituições da Governação e da Administração da Justiça em Angola funcionam bastante mal, e a incapacidade para os governantes de tirar as populações da miséria, da fome, das doenças, da corrupção, das injustiças, é um facto que enxerga a olho nu. Pela corrupção, despotismo e injustiças, a sabedoria abandonou os governantes angolanos e entregou-os à sua própria ruina. Todos os dias entre nós surge mais um escândalo que aponta o dedo à classe política dominante. Angola anda tateando no caos.

 

A comodado a uma governação própria a um Estado crocodilo, a classe política dominante em Angola confiscou para si os recursos do país, e redistribuindo a riqueza para cima e para fora, sob o seu controlo, acabou assim por ser instrumento de mais intensamente afligir os aflitos, os pobres. Hoje, dois terços dos angolanos vivem na pobreza extrema, com menos de dois dólares por dia.

 

Desta feita, o homem do regime «en place» em Angola assemelha-se ao lendário «Louvoumbou» de que nos canta o músico congolês François Luanbo Makiadi, esse personagem que ergueu uma grande família (Usala dikanda), mas que, por uma estranha lógica que ignora o valor da vida na comunidade, virou «Louvoumbou Ndoki» (antropófago), que devorava os filhotes que lhe nasceram das entranhas.

 

Qualquer um pode notar que na Angola, de hoje, assistimos um Estado que não consegue gerar uma Nação reconciliada, o desabrochar de um regime musculado e o arreigar de dados adversos à própria cultura das populações autóctones, para se forjar uma unidade nacional sem o devido respeito pela especificidade de minorias e periferias; uma monstruosa tirania. Além disso, as guerras ideológicas e fratricidas, que decorreram no quadro da guerra fria, e as debilidades da ordem económica mundial em que vivemos, acentuaram as destruturações económicas herdadas da colonização, abalaram a identidade cultural angolana e destruíram o sistema de ensino.

 

Porém, apesar desta situação, de tudo quanto se possa acreditar no ambiente do atual caos, do pessimismo radical e da falha fatalista que caracteriza muitas publicações sobre Angola de hoje, o país está a passar da crise à esperança. A esperança está nascendo através duma mutação profunda dos mitos sociais e das representações imaginárias, que questionam o mito do leader vitalício e visionário, o sistema de governação destes últimos 42 anos, e procuram novas vias para construir o futuro de Angola. Na base da vida desta nova visão domina gradualmente o patriotismo combativo que, apesar do feroz despotismo feudal ainda reinante, emerge das forças para construir uma nova ordem, na qual reinam Justiça, Fraternidade e Liberdade.

 

Trata-se duma mutação lenta e exigente, paciente e moroso; que não é ainda percetível a nível das exuberâncias mediáticas, mas que é atualmente firme nos espíritos e nos corações, nas inteligências e nas vontades, no imaginário coletivo de onde emerge aos poucos um novo tipo de homem e uma nova visão do mundo angolano.

 

Dois eventos canalizam este processo de mudança cultural em profundidade.

 

Em primeiro lugar, temos o balanço da governação destes últimos 42 anos de autodeterminação política. Nos impasses que manifesta e nos grandes problemas que levanta, este balanço constitui uma tomada de consciência das causas internas da falha política, económica e social do país; portanto um lugar fértil, no qual emergem firmemente forças para erguer uma nova maneira de pensar e de agir, uma nova capacidade de esperar e de acreditar.

 

As causas da falha de 42 anos de governação são facilmente explicáveis por um certo número de «tares» de comportamento. As mais características destes «tares» terão sido, nomeadamente, o autoritarismo estatal e a despótica gestão das instituições do país, a visão míope na política de desenvolvimento, a incapacidade em dar resposta às necessidades da população, os desvios do erário público em vista de sustentar as individualidades da classe política dominante e o regime político, a negação em implementar políticas macroeconómicas prudentes e transparentes, a perversão dos órgãos da ordem pública, do exército e da justiça à fins de ganho pessoal e partidarista, o desencorajamento dos investimentos privados e mais particularmente dos estrangeiros, e a falta de confiança dos investidores.

 

O segundo evento, fortemente ligado à esta falha, é a exigência de lucidez que vai apanhando aos poucos o angolano destes nossos tempos. A tomada de consciência desta exigência se manifesta cada vez mais por uma interpretação da história destes últimos quatro décadas que conduz inevitavelmente à conclusão sobre a necessidade duma nova angola, na qual a realização prática do cidadão passa por ações mais coerentes, mais justas, fundadas em valores humanos, e dotadas de instituições mais fortes, livres de «tares» de comportamento individualista e despótico, das arbitrariedades partidaristas, da corrupção generalizada do tecido social e da cultura do medo.

 

Assim, as atuais contestações políticas em Angola, o incremento de espíritos irreverentes, reformadores, que não param de criticar, de imprimir uma nota constantemente progressiva às ações da atual classe política dominante, têm uma dimensão ética que lhes confere o carater duma mutação cultural fundamental.

 

Certo, os obstáculos à mudança são uma realidade e assumem diversas naturezas: o autoritarismo estatal, as atitudes musculadas que nos transportam para o épico modelo soviético, assente na cultura do medo; a manipulação da lei, das instituições de administração da justiça e dos meios de comunicação social; a existência de pretextos incoerentes para elaborar leis em defesa do status quo, perseguir, prender e condenar ativistas sociais; e a recusa de criar condições para eleições livres e justas; o receio de uma mudança radical na organização das instituições do país.

 

Mas a luta pela mudança, a negação da lógica que governa o país desde os anos setenta tem vindo a impor-se em Angola nestes últimos três anos como uma realidade humana de fundo. Ela é visível todos os dias nas forças intelectuais e nas suas produções, em especial nos jovens. E o movimento juvenil designado por «Revus» é a expressão mais acabada desta contestação contra a monstruosa tirania que elegeu domicílio em Angola.

 

Por detrás deste combate político e intelectual, por detrás da revolta e da força do seu grito, está toda uma visão do mundo que é posta em causa na sua ossatura: a visão que tornou possível a prática do despotismo feudal, a corrupção generalizada do tecido social e a perversão generalizada do país que dá a impressão de se ter perdido o sentido do bem e do mal, da justiça e da injustiça.

 

É do surgimento desta força que importa dar o testemunho duma energia que induz uma mutação cultural de fundo: a passagem duma sociedade dominada pela procura abstrata duma identidade ideológica ou duma libertação doutrinária para uma sociedade que se quer restruturar segundo as exigências duma reconstrução total e integral de si própria. Sim, Angola está numa viragem capital: um momento de mudança do sistema cultural, o tempo de restruturação radical do espaço vital e do campo do seu ser como país africano e parte da humanidade.

 

Mas esta viragem não será bem-sucedida, sem a implicação da Comunidade Internacional, em especial da União Europeia, na qual Portugal está ligado por afinidades culturais e histórico-geográficas. A meu ver, a atual crise em Angola, a forma de gestão mundial dos problemas que este país enfrenta - entre os quais a problemática da democratização do país, da repartição justa da riqueza nacional, do respeito pelos Direitos Humanos, da debilidade do sistema de ensino e do conflito ainda reinante em Cabinda – têm, inequivocamente, posto a nu as debilidades da governação mundial, ou seja, as vicissitudes humanas nestes últimos seis séculos.

 

Importa pois que, neste momento de dores de parto vivido pelas populações angolanas, o mundo olhe para Angola com olhos de humanidade, venha em seu apoio. Eu tenho a firme convicção que a Comunidade Internacional tem o dever de ajudar Angola a erguer instituições verdadeiramente democráticas e a enfrentar os dilemas e os desafios que se colocam sobre a “Questão de Cabinda”, até porque a Comunidade Internacional não é só uma parte dos problemas, mas é também remédio e solução, podendo inspirar ao país estratégias que lhe permitam afirmar-se cada vez mais no limiar da Transparência, Justiça, Fraternidade, Reconciliação e Dignidade Humana.

Muito obrigado!
Lisboa, 05 de julho de 2017