"...mostrar à sociedade que há pessoas intocáveis"

Foi uma entrevista rica em revelações e equívocos da entrevistada.  Lendo o pensamento estratégico de Welwitchea dos Santos Pego (WSP) podemos perceber a confusão de conceitos e de linha estrutural de que enfermam todos os canais que estão sob sua coordenação e o que pode vir a acontecer no canal principal da Televisão Pública de Angola.  É por isso que nos convém tratar separadamente de cada dos assuntos levantados pela Sra.  deputada WSP.

A incompatibilidade e o processo contra a Luísa Rogério - Luísa Rogério agiu muito bem ao levantar oportunamente a questão das incompatibilidades. Fê-lo em nome dos jornalistas angolanos que representa e era bom que os jornalistas angolanos não virassem costas à luta. É hora de união e de levarmos este processo até às ultimas consequências, sob pena de um dia nem sequer podermos opinar sobre coisa nenhuma.  A conquista pela diversidade, pelo direito à opinião foi dura. Não podemos permitir que se instale novamente a lei da rolha, sobretudo quando estão em causa bens públicos, ou seja, nossos, dos angolanos. Os fundadores do SJA, os membros dos SJA e todos os que defendem o direito à opinião, consagrado constitucionalmente, devem estar nesta hora unidos e comparecerem todos ao julgamento para se baterem contra esta tentativa de renascimento do crime de delito de opinião. É preciso criar um claro movimento de rejeição à tentativa de silenciar vozes críticas.

Nada do que foi dito pela secretária-geral do SJA fere a honra e o bom nome da deputada. Por isso, não acreditamos que o objectivo final da deputada seja realmente a defesa da honra. A intenção é, porventura, mostrar à sociedade que há pessoas intocáveis, tal como os actos em que elas estejam envolvidas. E havendo esses cidadãos mais cidadãos que outros é-nos vetada, a nós simples cidadãos, a possibilidade de nos pronunciarmos sobre elas e seus actos. Mas isso, como se imagina, é um grande equívoco. Somos angolanos e bem angolanos, somos cidadãos com direitos e deveres e, portanto, ninguém nos intimidará ou nos privará de direitos constitucionais como o de ter uma opinião. A estratégia é, possivelmente, condicionar o livre pensamento com ameaças de processos judiciais e outras mais veladas. Os juízes que tenham a coragem de ser independentes e de decidir em nome dos interesses de Angola.

O segundo equivoco tem a ver com a alegação de que não há incompatibilidades por se tratar de uma consultoria. A questão das incompatibilidades incorpora sempre duas vertentes.

A vertente formal e jurídica, a do direito, e a vertente moral e comportamental, a da ética. Em qualquer delas há incompatibilidade e uma grande incompatibilidade.  Do ponto de vista formal, um deputado é eleito pelo povo para fi scalizar o governo, legislar sobre os problemas do povo e, sobretudo, representar os interesses dos eleitores junto do órgão executivo. Uma pessoa nessas condições não pode ser gestora nem consultora de instituições ligadas à gestão pública.

O aconselhamento (consultoria) à gestão pública entra em contradição, formal, com a fi scalização formal que se incumbe a um deputado. Quem fi scaliza não pode, na calada da noite, aconselhar a gestão ou traçar linhas para a gestão. À luz do dia, depois, não tem condições para discernir entre a vontade do seu eleitorado e a sua própria vontade enquanto autora moral ou integrante de actos de gestão corrente. E aqui voltamos ao processo contra o SJA porque um tribunal sério vai certamente requerer os contratos que ligam a TPA à empresa de WSP. O Ministério Público, que deveria ter a competência de lançar um inquérito sério sobre este assunto, sem esperar pelo SJA, nada tem feito e nem vai fazer. É pena, porque esta oportunidade deveria ser boa para saber como são usados os meios públicos, o que ganha o Estado com os tais contratos de gestão e quais os critérios de escolha. Sabemos todos que com este MP isso não vai acontecer.

A questão das incompatibilidades não começa na Comissão de Reestruturação da TPA. No genérico de uma série de programas da TPA 2 a deputada WSP fi gura como coordenadora. Tem funções executivas, sim. Tem decisões que influenciam a linha editorial de um órgão público, o que perfaz em si uma violação.

No caso vertente, é difícil de entender que alguém, que é eleito pelo povo, com o poder maior que há, que é o poder da votação, queira tanto estar na gestão de um órgão público. Na sessão de tomada de posse, WSP disse que nem sequer pensava ser deputada. Mas agora é. Tem de comportar-se como tal. Não pode pretender ser tudo. Podia ter recusado o convite do Ministro da Comunicação Social. Mas ao longo da entrevista vemos que o perfi l psicológico da deputada WSP difi cilmente a levaria a recusar coisas do género.  «O maior teste para a ética é a relação de poder. Se a ética tem menos forças do que o poder, se os princípios éticos e as regras podem ser atropeladas pelas manifestações da maioria, a felicidade humana é impossível, porque a felicidade se produz com a ética.  Pelo bem e não pelo poder» (Lobo, Luiz, escritor brasileiro, editora Gama Filho).

Ser coordenadora (como diz o genérico dos programas da TPA) de uma subcontratada da TPA deveria ser bastante do ponto de vista ético, do comportamento, da correcção, da transparência, da lisura, para não estar numa comissão de reestruturação da contratante.  O problema não é de quem convida. Todos os ministro deste país gostariam de ter uma deputada, fi lha do presidente, disponível para os seus projectos.  Ela é que é a representante do povo. Cabia-lhe colocar-se acima disso. «À mulher de César exigese não só que seja mas também que pareça».

Uma empresa pública é, por defi nição, isso mesmo: pública, de interesse público, com financiamento de todos nós, virada para os nossos interesses. Por vezes, a gestão diária e as estratégias do dia a dia chocam coma expectativa dos cidadãos e aí entram os eleitos para, em nome do povo, pedir contas, solicitar uma adequação da política dos órgãos público aos interesses dos cidadãos. Com a deputada WSP essa relação passa a estar ferida de morte porque ao ser membro da comissão, sendo ou não consultora, perde a condição de fi scalizadora. Torna-se parte da gestão, ainda que fornecendo pareceres.

Do ponto de vista informal, todo o processo de envolvimento de WSP na TPA foi marcado por zonas cinzentas. Sempre pairou no ar um cheiro a tráfico de influências, suspeição essa que resulta do facto de não terem havido concursos públicos para a adjudicação, nem uma prova conclusiva sobre a os ganhos (técnicos, fi nanceiros e de conteúdos) para o interesse público de uma tal parceria. Para isso, os gestores do canal dois deveriam ter submetido a sua proposta editorial de programação a entidades de fi scalização do tipo CNCS ou sociedade civil. Nunca o fizeram. Pelo contrário, abriram um canal internacional que, por defi nição, deveria ser o canal de promoção de Angola, aproximado até do Ministério das Relações Exteriores. Mas o que vemos é um canal convertido num espaço de promoção de marcas, eventos de duvidoso interesse público e num espaço de reposição de programas do canal 2, incluindo o que ele exibe de mais supérfluo e carnavalesco. Temos dúvidas que exista uma estratégia pensada segundo o interesse nacional, ou seja orientada para a satisfação dos interesses da grande maioria dos angolanos.

A experiência de trabalho - É desejável que, como nota prévia, se esclareça que a experiência não tem directamente a ver com a formação académica. Os licenciados em Comunicação Social são como os juristas. Só passam a advogados ou jornalistas depois de estágios devidamente acompanhados e reconhecidos.

Precisam de provas materiais (trabalhos feitos) e do reconhecimento de terceiros (aceitação entre pares por via do relatório de aprovação do orientador de estágio).  Portanto, um mero licenciado, mestrado ou doutorado não é necessariamente uma pessoa com experiência. A maior parte das vezes não o é.

Tudo indica que a origem do convite é a experiência de trabalho que a Sra. deputada WSP diz ter acumulado como jornalista de publicações como a Caras e Revista Tropical, mentora dos canais 2 e Internacional ou como produtora de espectáculos e outros eventos. Com todo o respeito para esse curriculum, confessamos muita difi uldade em ajustar e vislumbrar por que razão se torna óbvia, necessária, inevitável, incontornável a sua presença (seja como consultora ou não) numa reestruturação da TPA. Fazer revistas ou espectáculos nada têm a ver com conceber estratégias, programação e informação de uma televisão pública.

O canal 2 à moda de West Side/ Semba tem um ano de vida e o canal internacional menos do que isso. A menos que se decida adoptar no canal 1 da TPA os mesmos conteúdos vulgares e o mesmo consumismo que se assiste no canal 2. A juntar ao seu CV, a deputada WSP teve a frase marcante de duvidar que mais algum angolano possa ter dado mais provas do que ela na TV. Só pode ser uma provocação. Aliás, tal afirmação deveria merecer da parte da deputada um pedido formal de desculpas a todos os profissionais da TPA. É claro, é obvio, está documentado que há sim centenas e centenas de pessoas que deixaram nestes mais de 31 anos da TPA provas de grande conhecimento e a todos os níveis. Sem carro, sem condições técnicas, sem esquemas e favores, sem privilégios, sem cursos, a nossa televisão sempre teve gente a dar provas de competência. Foi assim que ela sobreviveu. Não caberia aqui citar todos os técnicos, câmeras, repórteres com provas dadas.  Com o devido perdão àqueles de que neste momento não nos lembramos, podemos passar rapidamente por alguns, apenas alguns nomes, cujas folhas de serviço deixaram história, provas e saudades. Os manos Henriques, Ritz, José Manuel Nunes, Kikas, Patrick Luvuezo, Júlio Guerra, Rui de Carvalho, Carlos Cunha, (sobretudo na sua fase inicial), do Ramalhoso, Mateta, Nelson Rosa, Ramiro (que outrora tinham uma politica informativa mais sólida), para alem de inúmeros programas e profi ssionais de muito boa memoria. Mesmo que se tenha como base os casos de pessoas que vieram da imprensa parece-nos obrigatório uma referência ao curto período em que Adelino Marques de Almeida e Graça Campos introduziram na TPA inovações como debates e reportagens do quotidiano. Talvez até nos lembremos mais facilmente das velhas reportagens de investigação do Guanje ou do ar refrescado e informal trazido pelas reportagens da Joana Tomás do que do material insonso ou copiado de Portugal com que nos brinda a TPA 2. Num rebate de consciência, todos estes profissionais e mais centenas de outros mereciam um pedido de desculpas por tão infelizes palavras da Sra. .deputada Welwitchea dos Santos Pêgo.

Uma Televisão sem brilho -segundo a deputada WSP, o ministro Rabelais está satisfeito com o canal internacional e com a TPA 2. Em nosso entender, não há razões para satisfação. O canal internacional é oco e sem estratégia.  É um repetidor de programas do canal 2 (maioritariamente ). Não tem uma programação equilibrada e ajustada às necessidades do país no exterior e das comunidades angolanas. Deveria ser um braço promocional da cultura angolana, da realidade do nosso país em todas as vertentes, da cultural ao desporto e da política ao social. Francamente está muito longe disso. Além de que o suposto facto de o ministro da Comunicação Social estar pessoalmente satisfeito com o desempenho do canal é algo que só a ele pessoalmente engaja.  Ninguém disse que o país todo se revê nos gostos do ministro.  O canal 2 apresenta ainda mais problemas. O primeiro deles é a sua falta de complementaridade com a TPA 1. Ao invés de ser complementar é concorrente.  Temos duas estações públicas generalistas, cada uma com a sua gestão, cada uma com a sua publicidade e cada uma com os seus custos operacionais. A empresa de publicidade TVC, que é da TPA, só atende o canal um. A produção e a gestão dos meio técnicos não é comum, representando um acréscimo dos custos operacionais.  A programação assenta em dois ou três programas concebidos e realizados na lógica do espectáculo. O gosto cultural do canal nem sempre é convergente com o interesse público e muitas vezes se confundem as posições entre gestores e anunciantes, acabando por ser inúmeras vezes um canal público promocional das iniciativas dos gestores. O canal 2 não tem brilho nem originalidade.  Não há nada que nos surpreenda.  É uma mesmice. Grande parte dos formatos são copiados da realidade portuguesa e sem que haja nada, absolutamente nada, de arrebatador.

É claro que a velha TPA necessita de uma reestruturação. O Canal 1 não está melhor. Porém, a solução tem de ser pensada por via da complementaridade dos canais, redução dos custos operacionais e rentabilizar as estruturas de apoio como a publicidade, estúdios e meios técnicos.  A solução passa por preservar a fi losofi a e o perfi l de canais públicos.  Defi nitivamente, a gestão privada dos canais públicos não nos convence nem demonstra responder ao interesse público.  No formato e na composição da comissão de reestruturação tudo aponta para que a vulgarização e o consumismo do canal 2 se transfi ram para o canal 1. E não se surpreendam se amanhã o telejornal abrir com entrevistas aos candidatos do Bounce ou com os tópicos da Hora Quente dessa noite. Além de necessitarmos de uma discussão sobre a televisão angolana, a TPA necessita de definir uma estratégia correcta para fazer face à concorrência da Zimbo.  Se tomarmos o canal 2 como referência corremos o risco de inviabilizar a TPA 1. A TV Zimbo vive ainda dos efeitos da novidade mas, ainda assim, oferece já propostas de comunicação de massas viradas para a grande luta das audiências. Curiosamente, a TPA 1 ainda está mais bem preparada que a TPA 2, que foi a que mais sofreu com a entrada da Zimbo.  Essa comissão de reestruturação pode, se tomar a experiência do Canal 2 como exemplo, levar à consagração da Zimbo por demérito da televisão pública. Não somos adivinhos. Vamos esperar para ver, mas os indícios são maus, ou melhor são péssimos.

E temos de aplaudir com medo de processos?Façam-nos o favor!

* Ismael Mateus
Fonte: SA