Luanda - Depois de abordado o problema da invocação de imunidade, na qual chegamos à conclusão que à luz dos recentes desenvolvimentos do Direito Internacional, admite-se, como válida, em razão do seu carácter de Alto Representante do Estado, a posição que o Vice-presidente goza de imunidade pessoal absoluta, equiparada a do Chefe de Estado, sem prejuízo de alertar, que o mesmo não se qualifica na qualidade de deputado. Neste contexto, importa analisar, à luz do Direito Internacional Público, a questão da Transmissão do Processo, de Portugal para Angola, conforme solicitado pelas autoridades angolanas. O processo judicial contra um (ex) Vice-presidente de um Estado tem sempre contornos e implicações políticas. Porém, numa visão puramente jurídica, evitando abordagem, por desconhecimento, na perpectiva política ou das relações internacionais, importa tecer os seguintes comentários.
Fonte: Club-k.net
Dez Breves Notas de Reflexão Jurídico-Internacional.
1- A posição de Angola em solicitar à Portugal a transmissão do processo é juridicamente válida. Esta decorre de normas internacionais expressas previstas no Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Angola e Portugal (art.º 55). Para o efeito, deve-se preencher os requisitos especiais previstos no art.º 56 e seguintes do mesmo tratado. Da leitura da norma, acreditamos que estão preenchidos todos os requisitos especiais. A única questão legal em dúvida, é que da leitura do tratado, determina que o impulso processual pertence ao Estado de detém o processo e que, por diversas razões, em especial, a prevista na alínea e) do art.º 56 (impossibilidade do suspeito ou arguido ser presente no Estado que detém o processo - Portugal -, podendo sê-lo no Estado requerido - Angola -), decidi transmitir o processo. Neste sentido, coloca-se a seguinte questão: estando preenchidos os requisitos legais para a transmissão (o que, ao que parece, sucedeu), haverá ou não a obrigação de Portugal em transmitir o processo?
2- Antes de abordar a obrigação ou não de transmissão do processo, uma vez solicitado e preenchido os requisitos legais, importa, desde logo, alertar para o problema da "possível" nulidade, ab initio, com base na tese "The Poison Tree", do próprio processo contra Manuel Vicente. Assim, considerando que o processo criminal em Portugal se deu início quando MV era Vice-presidente de Angola, e, por conseguinte, tendo em atenção, à luz da jurisprudência internacional do Caso Yerodia, determinou que outros titulares de altos cargos, também gozam de imunidade pessoal absoluta no direito internacional, pode significar que o próprio processo crime é nulo, ab initio.
3- O DIP estabelece, de modo claro, que aqueles sujeitos que gozem de imunidade pessoal absoluta, não são permitido que sejam processados, criminal ou civilmente, em outros Estados (Casos Mugabe, Fidel de Castro, Zemin). Logo, ao admitir que o processo em Portugal iniciou contra um representante de outro Estado, que goza de imunidade pessoal absoluta, estar-se-ia a violar as normas internas portuguesas e internacionais. Em consequência, o processo é nulo à partida, considerando que há a proibição de investigação para efeitos de responsabilidade criminal ou civil (immunity from prossecution). Logo, todos os actos subsequentes praticados, com base na Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (The Poison Tree), são inexistentes.
4- Sendo o processo nulo, ab initio, não se coloca a actual condição de MV como deputado, que como já dissemos, goza apenas de imunidade interna. Assim, apesar de considerar que apenas após a decisão do Tribunal Internacional de Justiça no caso Nguema, haverá a certeza se existe ou não imunidade pessoal absoluta do Vice-presidente, esta questão não deve ser descurada. Nesta senda, estamos inclinados, em razão das altas funções de representação do Estado, em aceitar a afirmação pela positiva. O argumento da "a lei que permite o mais, permite o menos", deve ser considerado. Se um Ministro dos Negócios Estrangeiros tem imunidade internacional pessoal absoluta, logicamente, o Vice-presidente (seu superior) também goza.
5- No que concerne à obrigação ou não de Portugal de transmissão do processo para Angola, importa, desde logo, analisar o preenchimento dos requisitos (internos e internacionais). Uma vez solicitado, a transmissão do processo não é automática. O outro Estado pode recusar. Os requisitos de recusa vêm claramente previstos no próprio tratado, mormente, no art.º 33, que qual expressa que se pode recusar o auxilio judiciário, quando as alegadas infracções tenham natureza políticas ou conexas, ou mesmo, quando o Estado requerido considerar que a execução do pedido ofende a soberania, segurança ou ordem pública e os seus interesses essenciais. Fora destes casos, existe um dever de cooperação e auxílio.
6- Sucede, porém, que os fundamentos da Justiça portuguesa, para recusa da transmissão do processo, não tiveram nenhum sustento legal admissível claro e objectivo, quer no Direito Internacional Público, quer no próprio Direito interno. Consequentemente, o despacho de recusa não foi menciona qualquer norma do tratado entre Angola e Portugal, mas sim, alega que "não tinham garantias de lisura e objectividade no tratamento deste processo pelas autoridades angolanas".
7- O presente argumento fere, de modo claro e objectivo, o tratado internacional sobre a matéria, uma vez que, a recusa do auxílio, não se faz com base em critérios objectivos, mas sim, numa avaliação subjectiva e destituída de base legal, interna e internacional para o efeito. Ademais, o próprio juízo valorativo "depreciativo" do papel das autoridades judicias angolanas, viola as regras de cortesia, prudência e bom-senso. Convém ressalvar, Portugal só poderia recusar transmitir o processo, com base nos fundamentos do próprio tratado, e nunca, com pré-juízos valorativos, no sentido negativo, das autoridades angolanas.
8- Assim, torna-se evidente, que a não fundamentação de Portugal sobre a recusa da transmissão do processo de MV com base no tratado, viola claramente uma obrigação internacional e, por conseguinte, a posição de Angola, quanto à esta questão, é legal, soberana, legitima e, acima de tudo, justa.
9- O debate deste complexo caso tem sido prejudicado por questões externas. Por um lado, a parte portuguesa, despido de fundamento legal de acordo com o tratado em vigor, recusou a transmissão do processo MV, "desconfiando" de possível "inacção" das autoridades angolanas. No que concerne à parte angolana, sobretudo na académia, não tem havido a destreza necessária para, com base em argumentos jurídicos sólidos, procurar solucionar em definitivo a questão, em defesa do interesse nacional. À título de exemplo, argumentos públicos como a invocação da Lei da Amnistia para o caso (que não é possível, uma vez que a Lei 11/16, apenas tem aplicação territorial em Angola e os alegados crimes foram praticados em Portugal), não têm ajudado e aumentam, no aspecto subjectivo, alguma desconfiança por parte das autoridades portuguesas. Igualmente, considerámos que há alguma ingenuidade, na defesa feita por alguns académicos, que o processo deve transitar para Angola e que, a decisão será será o arquivamento. Lógico, se nós anunciamos publicamente esta solução, as possibilidades do processo transitar diminuem drasticamente. Há que ter estratégia,preparação, foco e serenidade para resolver esta questão muito complexa.
10- Em suma, conclui-se que, à luz dos dados apresentados, Angola tem legitimidade para solicitar a transmissão do processo. A recusa do mesmo por Portugal, apesar de admissível, deve ser feita, exclusivamente, com base nos requisitos previstos no Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Angola e Portugal. Não foi o que sucede! Logo, a posição portuguesa, além de ferir a soberania nacional, é inconsistente com o direito internacional.
Solução: Existem duas formas de resolver o problema nos termos que Angola quer, respeitando o direito internacional. Ou o processo é transmitido para Angola, sem pre-juízos de valor e as autoridades judiciais angolanas, aplicam para a solução do caso, a lei prevista no tratado internacional (lei angolana, por força do estatuído no art.º 57, além de que, é a lei mais favorável, nos termos da mesma disposição). Ou, em última e excepcional situação, nomear Manuel Vicente a uma função que de modo claro e inequívoco, goza de imunidade internacional pessoal absoluta (Ministro dos Negócios Estrangeiros ou mesmo.
*Docente da FDUCAN/ Mestre e doutorando em Direito Internacional.