Luanda - A Associação Angolana dos Direitos do Consumidor (AADIC) vai processar o Ministério da Educação, por responsabilidade solidária na cobrança indevida de propinas, por parte das instituições de ensino privado, garantiu Diógenes de Oliveira, jurista e presidente da instituição

Fonte: JA

“O consumidor em Angola ainda não é respeitado e o poder judicial é muito moroso”

Em que circunstâncias surge a AADIC?
Como sabe, todos somos consumidores e uma sociedade democrática e de Direito. Devemos primar por um consumo saudável, pelas normas e leis do país. Deste ponto de vista, a AADIC surgiu da necessidade de aferir que o direito do consumidor é um direito fundamental, salvaguardado no artigo 78 da Constituição da República. A instituição tem personalidade jurídica desde 2013 e é membro de pleno direito do Conselho de Concertação Social.

 

Que avaliação faz do contexto do país, relativamente aos direitos do consumidor?
Achamos que o consumidor está mais atento e exigente na defesa dos seus direitos. Há cinco anos, o direito do consumidor era pensado simplesmente para alguns e, aqui posso até sustentar, quase para a maioria das pessoas, o consumo era meramente comida e bebida. Importa esclarecer que o consumo abrange o transporte, educação, habitação, saúde, serviços públicos, enfim, tudo o que tenha, de um lado, um fornecedor e, do outro, o consumidor.

 

Hoje, os consumidores em Angola têm noção dos seus direitos?
Pensamos haver necessidade de que seja implementada, no ensino de base, a partir da quarta classe, uma disciplina sobre os direitos do consumidor. O país está em crescimento e existe a máxima necessidade de se olhar para o consumidor como tal.

 

Porquê a partir da quarta classe?
Porque achamos que os alunos das classes subsequentes ainda não têm o discernimento daquilo que é uma relação de consumo. Ainda é um consumidor embrionário; não tem, possivelmente, a capacidade de distinguir o que tem como garantia e direito na relação de consumo.

Já temos instituições no país a leccionar esta cadeira?
A única instituição a leccionar esta cadeira é a Universidade Independente de Angola. Nem mesmo a Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto tem uma cadeira específica de defesa do consumidor.

 

Qual é a realidade fora de Luanda?
As queixas que recebemos das outras províncias não são tão acentuadas como em Luanda. É preciso analisar que o fornecimento de produtos, o sistema económico-financeiro e outras prestações de serviços são feitos maioritariamente em Luanda. Fora da capital do país, os cidadãos dependem muito mais de produtos do campo, talvez daí as queixas não sejam tão acentuadas.

Quais os meios disponíveis para fazer chegar as queixas ou denúncias?
Em primeiro lugar, contamos com uma linha directa 24 horas, com o número 912317043. Como números opcionais temos o 943625501, 912317041. Temos ainda o e-mail:Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar., e o site:www.aadic.org. Importa dizer que, a par de Luanda, estamos representados em Benguela e Cuanza-Sul. Além dessas províncias, temos recebido reclamações de Cabinda, maioritariamente, ligadas aos incumprimentos nos horários das transportadoras aéreas; queixas das Lundas Norte e Sul, do Moxico e de outras partes do país. Há dias, recebemos uma reclamação do Cunene, relacionada com o sector da Educação.

A propósito do sector da Educação, como entender que todos os finais de ano surjam divergências sobre o pagamento ou não das propinas, a nível do ensino privado?
O que está a acontecer configura uma tremenda impunidade com anuência do Ministério da Educação e do Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação. O anúncio do aumento das propinas de ano para ano e a imposição do seu pagamento no mês de Dezembro é uma situação que se arrasta há quatro anos. Está em desacordo com a Lei de Defesa do Consumidor, porque só devemos pagar o que consumimos. Imagina, por exemplo, o estudante ter tido seis dias de aulas em Dezembro e ter de pagar o mês todo. Passou a ser uma prática obrigar os estudantes – de forma ameaçadora – a pagarem o mês todo, mesmo sem que consumam metade deste. É uma prática abusiva, disposta no artigo 22 da Lei de Defesa do Consumidor.

O que a AADIC pensa fazer para pôr fim a esta situação?
Vamos deixar muito bem claro que a AADIC está indignada, porque as autoridades sabem da ocorrência dessas situações e não percebemos por que razão não se coloca um fim. É importante também esclarecer que os estudantes na condição de devedor não devem ser expostos ao ridículo. Recebemos muitas reclamações de que as instituições colocam os estudantes fora da sala de aula, quando não cumprem o pagamento das propinas, o que é incorrecto por lei.

 

E em relação à anunciada subida dos preços das propinas para o ano lectivo 2018?
Por força do Decreto Presidencial número 206/11, de 29 de Julho, a subida dos preços compete ao Ministério das Finanças. Diante disto, ficamos sem perceber em que se baseiam essas instituições para implementar a subida. Importa referir que o serviço de educação está diante de preços vigiados e o seu regime decorre da necessidade de corrigir distorções na sua formação, sendo, como acima referi, uma competência do Ministério das Finanças.

 

Não se trata de uma actualização, para fazer frente à inflação?
Ainda assim, deve ser respeitado o Decreto Presidencial número 33/96 de 1 de Julho, que estabelece que a taxa de margem de lucros, por exemplo, para o regime de preços livres, não pode ser superior a 25 por cento. Mas não é o que temos visto. Existem instituições de ensino privado que, num ano académico, a propina é fixada em 32 mil Kwanzas. No ano seguinte, sobe para 38 mil e no ano a seguir para 42 mil kwanzas. Ficamos nos comentários e lamentações e o quadro não se altera.

Que mecanismos pensam colocar em prática para que haja alterações?
Vamos processar o Ministério da Educação, porque é o órgão garante da legalidade e bom funcionamento do sector. A petição inicial está elaborada e vamos dar entrada do processo na Sala Civil e Administrativa do Tribunal Provincial de Luanda. De arrasto, vamos levar os colégios Colina de Sol, Angola de Talatona, Emirais e o colégio Português de Luanda. Na nossa peça, estamos a pedir uma indemnização no valor de 500 milhões de kwanzas, a favor da União Nacional dos Trabalhadores Angolanos (UNTA). Não será o último caso.

Porquê estes colégios, de um universo tão vasto?
Temos de começar de alguma forma. Escolhemos esses colégios, porque são os que registam maior número de denúncias, de situações adversas e insatisfação do próprio consumidor. Vezes há em que ouvimos das direcções das instituições de ensino privado alegações de que as propinas referentes ao mês de Dezembro, que são cobradas na totalidade, servem para cobrir despesas com trabalhos administrativos, empregados, energia, e afins. E tem mais. Os colégios que dispõem de serviço de transporte obrigam também os estudantes a pagarem-no na totalidade, sendo que muitos usam-no apenas cinco dias no mesmo mês de Dezembro. Quando iniciaram o negócio, os colégios fizeram o estudo de viabilidade económica e essa questões tinham de ser acauteladas, sendo que não podem passar para a esfera do consumidor. Em abono da verdade, essas práticas podem ser também vistas como enriquecimento sem causa, que é uma ilicitude prevista no artigo 473 do Código Civil.


Como entender que este tipo de violação da lei seja praticada por instituições de ensino, inclusive, algumas que leccionam o curso de Direito?
É consequência da impunidade ainda existente. O poder judicial dever ser mais actuante. Fico boquiaberto quando uma instituição que tem a vocação de educar, formar e passar noções de boa conduta, rigor, respeito e bons costumes aos educandos ainda viola as leis do país. Deviam pautar a sua actuação pela legalidade, pois são instituições que formam o homem.


Em que sectores recebem mais queixas ou reclamações de violação dos direitos dos consumidores?
Varia de época para época. Agora que se aproxima a quadra festiva, temos recebido inúmeras reclamações do sector dos Transportes, especificamente, o transporte aéreo, e do sector da Educação. Temos também recebido muitas reclamações do sector da Saúde, sobretudo, do desempenho das clínicas privadas, com maior enfoque para a falta de responsabilidade e o sentimento de impunidade por parte dos médicos. Junta-se o sector do Comércio, uma vez que existem grandes superfícies comerciais que não respeitam o que está disposto na Lei 15/03 de 22 de Julho, Lei de Defesa do Consumidor.


Pode dar exemplos deste último sector?
Temos encontrado nas prateleiras de superfícies comerciais produtos expirados e com prazo para expirar muito curto e produtos em mau estado de conservação. Falamos de produtos perecíveis, que, em nosso entender e por força da lei, atentam contra a saúde humana, sendo esta prática inclusive prevista e punível no Código Penal.


Porquê é que essas práticas continuam a ser muito comuns, mesmo diante das leis existentes?
Quando o Estado não tem mão dura, qualquer aproveitador dita a sua regra. Os fornecedores sentem-se impunes, donos da razão e que de facto nada lhes vai acontecer. Automaticamente, ditam a sua regra, forma, conduta e impõem situações irregulares na relação de consumo.


Como avalia as sanções previstas na Lei de Defesa do Consumidor?
Para o contexto actual, as sanções previstas na Lei de Defesa do Consumidor são muito brandas. Podemos trabalhar com ela, mas achamos que devem ser feitas algumas melhorias. Temos de ter em devida atenção que é uma lei especial, dentro da hierarquia das leis. Por isso, devia ter um tratamento diferente. Muitas vezes, nós, os operadores do Direito, temos de recorrer a uma outra legislação, para fazer vincar os nossos interesses.


Pode explicar melhor?
Sendo uma lei especial não deveria haver necessidade de ser remetida a uma outra legislação. Por exemplo, o seu artigo 26º diz que as sanções são meramente administrativas: começam numa multa, apreensão do bem e acaba na suspensão temporária da actividade. Como vê, a Lei é muita branda. Vou-lhe dar dois exemplos: imaginemos que alguém coloque um produto expirado ou medicamento fora do prazo no mercado de consumo. Pode causar a morte ou problemas de saúde a outrem ou, provavelmente, danos morais e patrimoniais ao consumidor. Para fazer face a esses problemas, somos obrigados a recorrer a outras legislações, como seja, o Código Penal, onde está previsto e punível o envenenamento e o atentado à saúde pública. Achamos que dentro de três anos devíamos evoluir de Lei para um Código de Defesa do Consumidor.


Deste ponto de vista, o consumidor em Angola ainda não tem o seu direito devidamente acautelado?
O consumidor é o elo mais fraco na cadeia de consumo, porque é o garante da existência de qualquer empresa, instituição ou estabelecimento, que dá saúde económica ao fornecedor. Noutras realidades, como sãos os casos da Namíbia, África do Sul e outros países da África Austral, prevalece, de facto, o respeito pelo consumidor.


O que lhe diz a nossa realidade, neste aspecto?
Da experiência de cinco anos na AADIC, o consumidor ainda não é respeitado e faço questão de explicar. O poder judicial em Angola ainda é muito moroso e uma acção judicial intentada a um fornecedor pode demorar cinco a seis anos, até chegar a julgamento. São situações como esta que, às vezes, deixam o consumidor vulnerável e o fornecedor impune. Pensamos que é preciso que haja uma sala específica para dirimir situações relacionadas exclusivamente com o consumo. Ou, seja, depois de o processo dar entrada no Tribunal, ao fim do prazo de 60 a 90 dias, vai a julgamento.

 

Enquanto defensor dos direitos do consumidor, o que mais o deixa preocupado, em Dezembro, mês conhecido pelo consumo elevado?
Infelizmente, não temos a prerrogativa de sancionar. A lei é clara neste aspecto e, por isso, actuamos de maneira pedagógica, educativa e informativa. Gostávamos de ter poder sancionário. Se a Lei de Defesa do Consumidor for revista vamos lutar para conseguir este propósito.

 

Que esclarecimentos pode fazer do processo que AADIC intentou contra uma operadora de televisão por satélite, pela forma como retirou um canal da sua grelha de programação?
Não levámos o processo adiante, uma vez que, de forma extrajudicial, a operadora e a AADIC entraram em acordo, tendo-se a primeira comprometido a ressarcir todos os consumidores lesados. Na devida altura, informámos o que se estava a passar e a operadora passou a ressarcir, com um a três meses de bónus, os consumidores que se sentiram lesados.

 

E o processo intentado à EPAL?
Está no Tribunal e tem como sustentação a cobrança, por estimativa, da distribuição de água, muitas vezes sem qualidade, com interrupção no seu abastecimento, sem a devida contrapartida e altas taxas. Ao contrário de um processo que, há dois anos, intentámos contra a empresa FTU, esperamos que desta vez o Tribunal seja célere na decisão.

 

O trabalho feito nestes quatro anos deixa-os satisfeitos?
Gostávamos que a nossa actividade fosse mais abrangente e pudéssemos chegar em todo o país. Mas estamos limitados pelas condições financeiras. Sobrevivemos do esforço de jovens que querem ver um país melhor. Já cumprimos com os requisitos impostos por lei, para que a AADIC seja reconhecida como instituição de utilidade pública. O processo foi encaminhado, há um ano e oito meses, às entidades competentes e até agora aguardamos.

O que espera do futuro?
Trabalhar sempre e cada vez mais, na esperança de que, daqui a quatro ou cinco anos, o direito do consumidor em Angola esteja melhor. Para isso, é preciso que haja respeito na cadeia de consumo.

Perfil

Nome : Diógenes de Oliveira.

Estado civil : Casado e com quatro filhos.

Formação : Jurista de formação e presidente fundador da Associação Angolana dos Direitos do Consumidor (AADIC). Possui duas pós-graduações – em Práticas Notariais e Práticas Forense – feitas na Universidade Autónoma de Lisboa. Frequenta o mestrado em Ciências Jurídicas e Criminais, na Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. É docente universitário das cadeiras de Direito Bancário e Seguro e de Direito do Consumidor. É autor da obra “Guia Prático do Consumidor para uso em Angola e restantes PALOP”.