Lisboa - Vivemos em Angola tempos desafiantes, onde todos somos compelidos a dar o nosso saber na construção de uma nação próspera, de paz, igualdade e progresso social, almejando que a ignorância seja sonegada pelo gosto da leitura na descoberta de novos valores para o Estado angolano em certa medida deprimido. É por essa razão que mais uma vez apraz-nos refletir no tema das autarquias locais, que tem sido a tónica do debate político e jurídico, embora considerado transversal à outras áreas do conhecimento científico.
Fonte: Club-k.net
O Estado angolano possui um conjunto de órgãos cujas atribuições e competências encontram-se previamente delimitadas ao nível do texto constitucional, propondo-se, assim, salvaguardar uma panóplia de interesses respeitantes aos cidadãos residentes nas distintas circunscrições do território nacional, não sendo possível nessa ordem de ideias as autarquias locais (enquanto realidade futura) substituírem a grande estrutura complexa que é o Estado, daí ser imprescindível nesse exercício a que nos propusemos, dissipar algumas dúvidas que há muito subjaz no seio da comunidade angolana, na interpretação à contrário senso que tem merecido a temática das autarquias locais – consideradas formas organizativas do poder local, cuja agenda fixada para a sua criação é ainda na presente legislatura. É completamente falacioso o argumento segundo a qual, as autarquias resolverão imediatamente os problemas dos angolanos de Cabinda ao Cunene, essa lógica utópica é inaceitável, porquanto, em nenhuma parte do globo terrestre onde o poder autárquico esteja consolidado tal é concebível, não obstante ser razoável esperarmos que as autarquias locais uma vez institucionalizadas ofereçam um modelo de governação local susceptível de privilegiar uma maior desconcentração e descentralização administrativas, traduzindo nesses moldes a ruptura de um modelo concentrado e centralizado pouco operacional na resolução dos anseios mais prementes dos cidadãos, para um modelo que se augura de forma incontestável puder oferecer maior eficiência, eficácia e celeridade no agir administrativo.
(i) Enquadramento
Para compreender as atribuições inseridas na esfera jurídica do Estado e das autarquias locais, urge num primeiro momento fazer uma pequena abordagem sobre o que quer dizer Estado?
Para responder a pergunta supra, há que realçar, a existência dos Estados justifica-se a partida desde os primórdios das civilizações humanas, com o surgimento de agrupamentos de pessoas formando uma comunidade, onde os cidadãos no desenrolar das suas actividades e vivências em geral, sempre pugnaram por uma organização social sedimentada na lógica de respeito por uma autoridade que pudesse exercer poderes sobre os demais membros. O processo de formação dos actuais Estados não deixa de levantar múltiplos questionamentos, na medida em que sua evolução depende da conjugação de uma série de factores. Assim, podemos salientar para quem a argumentação divina colhe, o Estado é produto de criação de um ser transcendental (DEUS), desde o começo do universo e criação do género humano e toda sequência de factos narrados em Géneses, considerado pelos cristãos como o primeiro livro escrito por Moisés, fazendo parte do Pentateuco. Já em relação aos sujeitos a quem a argumentação divina não colhe, através de um contrato social na visão de THOMÁS HOBBES “ transfere-se o direito natural absoluto que cada um possui sobre todas as coisas a um príncipe ou a essa assembléia e, assim, constituem-se, ao mesmo tempo o Estado e a sujeição a esse príncipe ou a essa assembléia.” Ou ainda numa inclinação jusnaturalista, o surgimento do Estado encontra fundamentos credíveis na própria sociedade bem como na ordem regular das coisas”, sem embargo de outras visões que podem perfeitamente ser objecto de ponderação nessa matéria. Pode se falar do Estado em vários acepções, maxime, “ Estado- oriental, Grego, Romano, Medieval, Moderno, Contemporâneo, Liberal, totalitário socialista, totalitário facista, social, e Estado pós- social e da modernidade do século XXI” ( cfr. Jorge Bacelar Gouveia: 2011).
A par das das acepções acima descritas sobre o Estado, num contexto governativo interessa-nos particularente entender o Estado- Administração, que é uma pessoa colectiva autónoma, não confundível com os governantes que o dirigem, nem com os funcionários que integram a Administração, nem com os cidadãos que com ele entram em relação, o Estado é uma organização permanente, os governantes são os indivíduos que transitoriamente desempenham as funções dirigentes dessa organização( Diogo Freitas do Amaral: 2015:195). Essa referida organização exerce a sua soberania sobre um determinado território, onde se propõe governar os interesses de um agregado de pessoas ali residentes, deduzindo-se que a satisfação dos interesses das pessoas constitui o maior desafio dos Estados dentro das suas fronteiras.
(ii) Estado e as autarquias locais
Já dissemos que existem vários sentidos de Estado, tendo perfilhado o sentido de Estado- Administração. A administração do Estado apresenta desde logo, vários aspectos, dos quais apraz distinguir a administração central do Estado e a administração local do Estado onde se enquadram as autarquias locais. Os orgãos da administração central do Estado desempenham as suas competências em todo o território nacional, ao passo que os orgãos e serviços da administração local do Estado estão limitados a uma determinada circunscrição territorial.
À luz do actual sistema de governo vigente em Angola, o poder executivo representado pelo seu expoente máximo - o presidente da República , se encarrega de dirigir a política geral de governação do País e da Administração pública tal como previsto nos termos da al. b. do artigo 120.da Constituição da República
de Angola, doravante (CRA). A nível das províncias os governadores são representantes do executivo central, competindo-lhes levar a cabo um conjunto de acções cuja finalidade é de elevar o desenvolvimento das comunidades ao nível local. Para além das províncias, do ponto de vista político administrativo, o país conta ainda com uma organização territorial municipal , representada pelo administrador municipal que é nomeado pelo governador provincial para desenvolver acções de governação naquela circunscrição municipal, sem perder de vista a existência das comunas e outros entes equivalentes. Ora com o surgimento das autarquias locais, sublinha-se, que teremos em Angola pela primeira vez pessoas colectivas públicas de população e território dotadas de personalidade jurídica, sendo-lhes reconhecida pela CRA autonomia administrativa e financeira para a satisfação dos interesses do agregado de pessoas residentes na circunscrição em que forem instituídas ( Nos munícipios). A coabitação destes entes com os õrgãos do poder central ou ainda com os governos provinciais que não desaparecerão no nosso modelo autárquico desenhado pela CRA, suscita como é óbvio algumas indagações, das quais cumpre-nos tentar responder nos pontos que se seguem.
(iii) As autarquias locais terão as mesmas atribuições do Estado?
Na percepção da questão supra, impõe-se assinalar de antemão que as atribuições do Estado são inumeras e por essa razão o mesmo não estar limitado territorialmente no exercício das suas diferentes funções, com realce para a função executiva, o que já não sucede em relação às autarquias locais que têm as suas atribuições delimitadas ao nível do artigo 219 da CRA, donde se pode ler “ as autarquias locais têm, de entre outras e nos termos da lei, atribuições nos domínios da educação, saúde, energias, águas, equipamento rural e urbano, património, cultura e ciência, transportes e telecomunicações, tempos livres e desportos, habitação, acção social, protecção civil, ambiente e saneamento básico, defesa do consumidor, promoção do desenvolvimento económico e social, ordenamento do território, polícia municipal, cooperação descentralizada e geminação”. É importante entender que após a criação das autarquias locais, observando um processo de sufrágio tendente a legimar seus representantes, deve ficar claro que as atribuições acima referenciadas não estarão totalmente disponíveis, ou seja deverão observar a lógica do alagarmento gradual das atribuições a que o n. 2 do artigo 242 procura acautelar.
(iv) Como as autarquias deverão realizar às suas atribuições constitucionais?
Antes de mais, é imperioso ter presente que as autarquias locais guiando-se pelo princípio da autonomia local( cfr.artigo 214 da CRA), estão vinculadas ao dever de gerenciarem os interesses vitais nascidos no seio da comunidade em que exercem jurisdição, ou seja os problemas dos cidadãos localmente são da responsabilidade dos seus representantes, que estão obrigados a satisfazê-los. Os orgãos do Estado surgem com a sua intervenção unicamente: 1. naquelas situações em que dada a incapacidade técnica e
financeira das autarquias locais, haja necessidade dos orgãos do Estado comparticiparem finaceiramente na realização de tarefas inerentes a satisfação do interesse público local. 2. No auxílio aos orgãos locais no que concerne a assistência técnica em estudos ou ainda projectos relacionados a obras públicas locais de grande invergadura, mobilizando obrigatoriamente a intervenção dos orgãos e serviços centrais do Estado. 3. O Estado através de seus orgãos e serviços centrais deverá igualmente intervir em actividades cujo carácter genérico, não sejam susceptíveis de serem contempladas em simples planos de governação locais, evoluindo para o âmbito nacional dada a sua abrangência;
As autarquias realizarão as suas atribuições em função da capacidade financeira que cada uma terá, pese embora, o texto constitucional prevê uma dualidade de receitas para as mesmas, nomeadamente às provenientes do orçamenento geral do Estado e as restantes obtidas através de rendimentos e impostos locais. O que deve estar patente por aqui é a lógica de proporcionalidade, ou seja, os recursos das autarquias locais devem ser proporcionais as suas atribuições constitucionais. O professor Marcello Caetano (1982:251) chamava atenção em Portugal para a necessidade de a autonomia das autarquias locais só poder se manter íntegra se as atribuíções forem limitadas. O autor em causa, densifica os seus argumentos com a circunstância de as autarquias locais, tendo a seu cargo importantes atribuições, muitas delas complexas e não podendo responder cabalmente com os mesmos desafios, tal facto implique a intervenção coordenadora e orientadora dos orgãos do Estado. Em nossa perspectiva tal visão é aceitável, e nos leva a reflerir seriamente no nosso processo autárquico, onde o texto constitucional estatui um conjunto de atribuições, mas que em rigor, só podem ser realizadas em função da capacidade finaceira das autarquias locais. Os grandes projectos de âmbito local nos variados domínios da vida pública exigem dinheiro, capacidade organizativa e recursos humanos, sem que se atente para esses pormenores aludidos, teremos sim autarquias locais, com o risco de algumas desaparecerem, ou ainda não terem capacidade de tomar decisões em relação a certas matérias que digam respeito a vida dos munícipes.
(v) Que vantagens se pode assinalar de um sistema de governação descentralizada?
O princípio da descentralização administrativa traduz-se na pedra angular de toda organização e funcionamento das autarquias locais, visto na visão do legislador constituinte de 2010 ( cfr. artigo 217.,n. 2 da CRA). Mas afinal o que se pode entender por descentralização administrativa?
A descentralização pode ser compreendida em duas acepções, nomeadamente , jurídica e político- administrativo no entendimento do professor Diogo Freitas do Amaral (2014) com quem corroboramos. Procurando interpretar o pensamento do autor citado, diriamos que um sistema é considerado descentralizado quando o exercício da função administrativa do Estado não esteja unicamente confinada à esfera do Estado, como também à outras pessoas colectivas territoriais, com realce para as autarquias
locais. Já sob um ponto de vista político- administrativo, teremos descentralização quando as autarquias locais previstas na Constituição sejam por um lado institucionalizadas no plano material e os seus orgãos sejam designados por sistema de votação,por outro lado, quando a CRA lhes reconhece um conjunto de atribuições e competências, estando para tal unicamente sujeitas a tutela administrativa ( de legalidade). Dito isto, as vantagens de uma governação descentralizada podem ser resumidas nos seguintes termos:
A criação de pessoas colectivas públicas distintas do Estado, como é o caso das autarquias locais propicia o surgimento de orgãos representativos das populações ao nível local, revestidos de legitimidade democrática para tomar decisões próprias que se reflitam na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos;
Quebra o centralização do poder, dando origem outros níveis de poder;
Oferece competitividade aos orgãos locais, no caso das autarquias locais, uma vez eleitos os seus representantes, estes estão implicitamente obrigados a darem o seu melhor, sob pena de não serem reeleitos para um segundo mandato, caso pretendam concorrer;
Dá lugar a maior participação dos cidadãos na tomada de decisões públicas;
Origina um sistema de administração pública plural;
Conclusão
O nosso principal propósito com o presente artigo foi de chamar atenção para o facto de as atribuições do Estado serem indeterminadas, o que não acontece ao nível das autarquias locais que têm o seu âmbito de actuação, bem como suas atribuições delimitadas no texto constitucional, restando-nos simplesmente sublinhar os seguintes detalhes:
A criação de autarquias locais trará enormes benefícios na dinamização de toda máquina administrativa angola, sobretudo por dar lugar a criação de novos centros do poder, observando o princípio da descentralização administrativa, embora nunca deverão substituir as funções do Estado. O Estado é Estado e tem de continuar a satisfazer as suas principais tarefas;
O funcionamento das autarquias locais não vai permitir que os problemas dos angolanos desapareçam da noite para o dia, o que é inconcebível, tenha-se presente que a capacidade de solução das necessidades primárias e secundárias dos cidadãos nos munícipios, dependerá em grande medida dos programas traçados pelos orgãos representativos das autarquias locais, desde que dotados de recursos financeiros propocionais para o alcance de tais objectivos;
O debate sobre as autarquias locais suscita vários questionamentos evidentemente, mas é importante não se criar ilusões através de discursos populistas exacerbados, somos a favor da criação das autarquias locais como imperativo reafimado na CRA de 2010.
“ Os tempos são outros”
Manuel G. Manjolo
“Jurista - Especialista em Direito Administrativo”