É muito constrangedor ver que um povo que lutou, anos a fio, contra as injustiças sociais e pela igualdade racial esteja, agora, a submeter outro grupo de cidadãos às mesmas sevícias por que eles próprios viveram até recentemente, até 1994, creio. De facto - como já se escreveu - estamos perante um novo apartheid. Agora é de negros para negros.
As notícias de violência social são sempre preocupantes. Mais preocupantes ainda são os factos que, regra geral, se escondem por trás de convulsões sociais tão violentas. Pouca gente tem coragem para falar com suficiente abertura sobre esses factos que podem, no fundo, ajudar a entender o que se está a passar com o maior símbolo mundial da luta contra as desigualdades raciais.
Os ataques a estrangeiros negros começaram em Alexandra, numa zona pobre da África do Sul, mas rapidamente se espalharam para outras localidades daquele país. Não parece, pois, haver dúvidas de que a pobreza tenha sido o fósforo que acendeu o rastilho até à explosão do barril de pólvora, por muito que se queira culpar, por isso, um ou outro partido político.
Naquele país, o desemprego afecta pelo menos 40 por cento da população. Claro, os negros são a grande maioria entre os desempregados e estão forçados, por isso, a viver nos mesmos bairros degradados de onde, um dia, durante a luta empreendida contra a segregação racial, almejaram sair. Esse barril que explodiu na África do Sul não continha, apenas, pólvora. Havia, no seu interior, algo mais explosivo. Falo, é claro, das expectativas que se foram quebrando ao longo de todos esses anos desde o fim do apartheid. Muita gente, envolvida, agora, nesses ataques, sonhou com uma vida diferente, numa África do Sul com emprego e garantia de vida digna para todos. Está claro que isso não aconteceu.
As políticas de integração desenhadas pelo Congresso Nacional Africano (ANC) falharam, e isso também está claro. Houve, inclusive, uma política de capitalização de homens negros para que estes pudessem competir no mercado empresarial. Chamou-se, a essa política, Black Economic Empowerment, veículo através do qual antigos guerrilheiros da África do Sul enriqueceram e tornaram-se nos milionários de hoje. Cyril Ramaphosa e Tokyo Sexwale são os nomes mais conhecidos de um processo que, segundo se planeou na altura, deveria criar empregos entre os negros. Isso, simplesmente, não resultou. Os negros sul-africanos, mesmo por conta do apartheid, têm pouca instrução, não foram às universidades. Mesmo para os empregos que não exigem muitas habilitações académicas, a minoria branca que, no fundo, ainda controla o patronato, opta pela mão-de-obra dos imigrantes, que é mais barata e mais disposta a práticas normalmente recusadas pelos nacionais. Foi só acender o rastilho e, agora, o resultado é esse que aí se vê.
Parece-me haver algo de semelhante entre Angola e a África do Sul, neste capítulo particular. Depois de um longo conflito, em que uma grande maioria da população ficou privada de quase tudo, inclusive de poder frequentar universidades, há uma semelhança entre as políticas sociais e mesmo económicas que foram adoptadas por ambos. O Black Economic Empowerment, da África do Sul, tem o mesmo perfil que uma iniciativa de nome desconhecido - creio que é mais um MPLA Economic Empowerment - mas que está a transformar, em Angola, generais de ontem em grandes empresários de hoje, e governantes e antigos comissários políticos em milionários na actualidade. São os homens afectos ao MPLA que caíram na graça de quem decide e constituem, a custa disso, verdadeiros impérios empresariais.
Tal como na África do Sul, sente-se, aqui, uma fraca atenção dirigida às aspirações de um povo que lutou pela paz, na perspectiva de que, um dia, as suas expectativas fossem satisfeitas. Alguma coisa está a ser feita, é verdade. Mas a velocidade é, ainda, lenta e a eficiência, é fraca. As pessoas desejam qualidade de vida, empregos e possibilidade de progressão que lhes faça, ao menos, acreditar que a luta travada ao longo de tanto tempo teve, de facto, algum sentido.
Os negros sul-africanos, infelizmente, não tiveram tempo de chegar a essa conclusão e manifestam-se, agora, descarregando as suas frustrações contra o elo mais fraco; os imigrantes desprotegidos, já que os governantes vivem cercados nas suas residências cheias de guardas armados. Angola ainda vai, pois, a tempo de acelerar o passo em prol da justiça social, da repartição justa do rendimento para que, num dia destes, os angolanos não subvertam também o sentido da luta que todos travamos um dia.
Fonte: A Capital